quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Regresso às aulas

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

- as mulheres são a minha perdição!

Filosofava o Manuel João… amaciando não se sabe que antigo desgosto…
O Manuel João trabalha na construção civil. De dia é um bom trabalhador, à noite é borracho e também faz versos!
… ai as mulheres… ai as mulheres!...
Que outro lamento há-de inventar o Manuel João que na lonjura do amor sonha com as carícias da taberneira desenhadas na morneza da noite, enquanto lhe serve, vagarosamente, vinho tinto, rubro de vida.
O Manuel João cansado da guerra do ultramar, veio ao mundo num bairro clandestino, entre facas e brigas.
E agora aqui está o Manuel João no anonimato da cidade, cumprindo o seu fadário de vida, ou morte… como se a cidade não precisasse dele, na incapacidade de se rever nas casas que nascem, como por milagre, das suas mãos de operário.
A cidade é feita à sua medida e à sua imagem, numa criação única e ecuménica, como quem recorda o milagre do princípio dos tempos e grita ao caos que se faça ordem.
Conheci o Manuel João num tempo antiquíssimo. Queria frequentar as aulas da noite para fazer o 2ºano, pois este homem tinha sede de vinho e de saber, na sua condição de poeta e filósofo.
Este homem que inventava o acto da criação, trabalhava entre o cimento e o abismo, doze horas. À noite ia bêbado para a Escola. A professora de português gostava muito dele e o Manuel João esqueceu as carícias da taberneira. Um dia de maior perdição escreveu uma carta terna, convidando a professora para a entrega total, absoluta, na cama mais lavada, da melhor pensão da cidade. Ele pagava tudo!
A professora não gostou. O Conselho directivo perguntou-lhe porque fez aquilo.
O Manuel João, como um santo injustiçado, defendeu-se:
- Ela deu-me pistas de querer… até o senhor faria o mesmo e já é velho!
O Conselho de turma fez a sua parte e o Manuel João foi expulso.
O Manuel João… a sala dos professores… a lonjura do amor… o Manuel João fazia casas como ninguém… fazia escolas!
Eu dizia que era amigo do Manuel João… e também lhe recusei a aula e a vida!
Ai a pedagogia, Sr, professor!
Fecho apressadamente o livro de ponto. O Manuel João foi riscado da lista.
Sem saber porquê sinto vergonha… a aula é deserta como o deserto e só a taberna é amiga e acolhedora, no consolo ternurento dum caldo de couves ainda a ferver.


Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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