domingo, 25 de setembro de 2022

O vinho de lagar rupestre pode ser um dos “chamarizes” de Trás-os-Montes

Fazer vinho como os romanos, em lagares escavados na rocha. Este ano, há pelo menos três produtores a utilizar a técnica protegida para a região vitivinícola desde 2020.


A portaria que protege a técnica para Trás-os-Montes saiu em 2020 e o primeiro vinho de lagar rupestre certificado ali, na única região que pode ostentá-lo nos rótulos, é de 2018. Quatro anos volvidos, são três os produtores a pisar os seus mostos nos lagares escavados na rocha pelos romanos. E um quarto, no Planalto Mirandês, estudava ainda o assunto à data da nossa reportagem.

Francisco Gonçalves, dos vinhos Mont’Alegre, respondeu ao desafio de fazer a pisada do seu primeiro vinho de lagar rupestre em Vilar de Perdizes, terra da sua mãe, Idalina – avó Chiquinha para a família –, e do Padre Fontes. E, em proporção, o território que em Trás-os-Montes tem mais lagares rupestres – escavados na rocha – identificados, afiança o produtor e enólogo.

“Os lagares são escavados em penedos, uns são mais artesanais, outros mais evoluídos. O que hoje vamos usar tem uma lagareta, é maior e mais evoluído”, explica. Mais evoluído não seria utilizar toda a tecnologia e condições de que dispõem hoje produtores e enólogos – e os vinhos Mont’Alegre têm, ainda por cima, adega nova, na zona industrial de Montalegre? Porquê levar as uvas para o meio do monte para as espremer a céu aberto?

“A Comissão Vitivinícola Regional de Trás-os-Montes incentivou-nos a pegarmos no património das vinhas velhas e a explorar um pouco isso. Vou fazer um branco de bica aberta mas pisado em lagar com as películas, como um tinto. E vamos ver o que vai dar”. Uma experiência, portanto, à qual o enólogo que estagia vinho no mar, a 15 metros de profundidade, não podia voltar as costas.

Não basta pisar em lagar rupestre, há outros requisitos. Ana Alves, técnica da CVR de Trás-os-Montes, com as pastas da Enologia e Promoção, explica quais são. “Só permitimos a adição de conservante, nada de leveduras adicionadas, nutrientes ou produtos enológicos extra conservante. Tem de ser obrigatoriamente uma vinha velha, com mais de 40 anos, para promovermos as vinhas velhas que são um valor da região. As vinhas têm de estar cadastradas e vistoriadas. O lagar tem de estar identificado e higienizado – a CVR faz esse controlo prévio. Permitimos mistura de uvas brancas e tintas, porque é essa a realidade das nossas vinhas velhas. A pisa é a pé. O final da fermentação e o estágio devem ser em barricas usadas. E as vinificações podem ser de bica aberta ou curtimenta”.

E os vinhos são bons? Ressalvando que o que a portaria 222 de 9 de Setembro de 2020 protege é “a técnica produtiva, não o produto em si”, Ana Alves explica que para ser certificado o vinho deve respeitar os requisitos da Indicação Geográfica Protegida. “É regional transmontano para permitir que todos os produtores acedam a esta possibilidade” e porque há lagares fora das Denominações de Origem Chaves, Valpaços e Planalto Mirandês, justifica.

“Para os enólogos, é um desafio”, sim. Mas, sublinha a responsável, aqueles só têm de garantir “a higienização correcta do lagar e as melhores massas vínicas possíveis”.

Lagares rupestres e vinhas velhas

Voltando a Vilar de Perdizes e ao lagar que encontrámos numa zona outrora plantada com vinha, hoje paisagem desoladora – queimada por um incêndio em Julho: “o estágio destes vinhos tem se ser feito em pipos velhos, para [a madeira] não marcar o vinho. Este ano, para experimentar, vou fazer um pipo, 225 litros, com uvas da vinha velha de Carvas, na zona de Murças”, partilha Francisco Gonçalves. Se a experiência correr bem, chegarão ao mercado 300 garrafas, uma brincadeira no contexto de uma produção anual que ronda as cerca de 100 mil garrafas.

Carla Cascais, arqueóloga, Umbelina Moura, da Associação de Defesa do Património de Vilar de Perdizes, e Francisco Gonçalves, produtor e enólogo dos Vinhos Mont’Alegre. MARIA JOÃO GALA

As uvas são de videiras que contam mais de 60 anos, concretiza o produtor que faz “vinhos de altitude” e que em 2017 plantou e registou a vinha mais alta de Portugal (na altura, era-o de facto) noutra aldeia de Montalegre, Donões. Uma povoação de 60 habitantes, onde o tratam por Chico Tó.

Não são só os lagares rupestres que funcionam como cartão-de-visita da região. As vinhas velhas serão porventura o maior activo de Trás-os-Montes – a par da orografia da região, que pode dar vinhos elegantes e finos, assim a saibam trabalhar os produtores. Nelas, encontramos, as castas Bastardo, Tinta Amarela, Tinta Carvalha, Tinta Barroca, Cornifesto, nas tintas, e Verdelho, Fernão Pires, Malvasia Fina e Códega do Larinho, nas brancas, e Bastardo Russo, rosada. Cepas que já se entendem muito bem com os solos pobres, graníticos, muito arenosos, da região.

E à procura de aumentar a área de vinhas velhas (6 hectares no total de 16 hectares de vinha do projecto), os vinhos Mont’Alegre querem aprofundar a ligação a Vilar de Perdizes. “Andamos à procura de vinhas velhas lá e ainda não conseguimos concretizar os negócios. Mas paralelamente a isso, vamos plantar 1 hectare de vinha lá para o ano”.

Entretanto, a pisa decorria. Maria de Lurdes Vilela já passou as 80 primaveras e, quando sai do lagar, fala-nos de outros tempos, do contrabando, de quando tudo ali era vinha, e de como “todos tinham vinho em casa”. É ela quem nos explica o que é a cheiroça, uma mistura que vemos ali numa lata. As raparigas juntavam arruda, lã de ovelha suja, caca de galinha e enxofre numa lata a que chegavam o fogo e que metiam na adega, para forçar os rapazes a saírem cá para fora como estivessem, normalmente em ceroulas. “Aquilo cheirava muito mal. Eu era a chefa”.

“Havia gente na nossa aldeia que produzia 400 almudes de vinho – um almude são 25 litros. Eram uns três ou quatro só, mas havia várias vinhas”, conta, por seu turno, presidente da Junta de Freguesia de Vilar de Perdizes, João Araújo.

A acompanhar a pisada estavam Umbelina Moura, da Associação de Defesa do Património de Vilar de Perdizes, e Carla Cascais, a arqueóloga que em 2020 propôs ao Município de Montalegre fazer o levantamento dos lagares. “Temos 41 lagares rupestres identificados num raio de 5 Km. Mas há muitos mais. Quando viemos cá lavar este lagar, identificámos pelo menos mais quatro. Estou muito convencida que andaremos muito perto dos 100 lagares”, diz-nos a primeira. “Será uma ponta do véu o que descobrimos aqui. Esta zona estava intransitável. E este era um património desconhecido. Mas havia quem se lembrasse e fomos por pistas”, completa a segunda.

Ana Villarino, alcaldesa de Oímbra, localidade ali perto na vizinha Espanha. “Vamos ter uma pisada assim, no dia 9 de Outubro. Temos um lagar como este, mas montámos uma prensa ao ar livre. O lagar de Xan Preto. Já lá fizemos vinho em 2018 e 2019 e este ano estamos com ideias de engarrafar o que pisarmos”. Do outro lado da fronteira, a autarca ainda tenta perceber com o Conselho Regulador da DO Monterrei como certificar o vinho. Para já, e do lado de cá, Oímbra aderiu à LARUP – Associação Portuguesa de Lagares Rupestres, criada em Valpaços. Com 30 lagares identificados, é “o concelho galego com mais concentração de lagares rupestres”, o que já motivou a criação de uma rota.

A primeira certificação e uma rota na calha

É o que espera conseguir fazer no próximo ano Valpaços, conta a arqueóloga Fátima Machado, quem fez o levantamento dos lagares existentes neste concelho. “São cerca de 120 lagares. Só um é que é em xisto, na freguesia de Curros, o resto é em granito. Santa Valha tem cerca de 30 lagares identificados, desde lagares com indícios da época dos romanos até à alta idade média”.

Em 2010, o livro “Lagares Cavados na Rocha”, de Adérito Medeiros Freitas, um geólogo de Carrazedo de Montenegro e professor no liceu em Chaves, trazia uma primeira relação deste importante património. Mas, explica-nos Fátima Machado, muitos lagares foram na altura limpos e as grainhas das uvas desapareceram, o que impossibilitou chegar a datas exactas. “Como é que podemos então dizer que são romanos? Porque existem muitos vestígios dessa época à volta. Balizámos”.

Valpaços está “a tentar criar uma rota que passa por uns dez” lagares. Simultaneamente, a autarquia tem multiplicado contactos para atrair outros territórios portugueses com idêntico património para a LARUP, “um trabalho que vai demorar algo tempo”.

Fátima Machado, arqueóloga da Câmara de Valpaços, na Casa do Vinho / Loja Interactiva de Turismo de Valpaços, em Trás-os-Montes. MARIA JOÃO GALA

Foi no lagar das Tecedeiras, mais evoluído – com calcatorium (tanque), veios laterais, lacus (lagareta) e buracos onde entravam a prensa e a estrutura da cobertura –, junto à ecovia do Rabaçal, que a CVR de Trás-os-Montes, a AVITRA – Associação dos Viticultores Transmontanos, o Município de Valpaços e a Junta de Freguesia de Santa Valha fizeram o vinho Calcatorium em 2018. “Esse vinho foi feito sobretudo com o intuito de promoção. Conseguimos obter um patamar de qualidade para avançar para a certificação. Serviu de base à argumentação junto do Instituto da Vinha e do Vinho”, explica Ana Alves, da Comissão Vitivinícola e que assumiu a enologia desse vinho porta-estandarte, que em 2016 já ali havia sido ali ensaiado.

“Um chamariz” para o resto

E é lá que voltará a vinificar na próxima segunda-feira Nuno Miguel Neves, da Quinta do Salvante – eram suas as uvas usadas nos vinhos Calcatorium Rosé e Tinto 2018.

Quando visitámos o produtor de Santa Valha, Valpaços, corria o processo de certificação do seu Torcularium (palavra que designa a adega ou o local onde se fazia o vinho), um rosé e e um tinto – que estiveram um ano em barrica –, da vindima de 2021. “Faço uma barrica de cada, 225 litros / 300 garrafas cada. São aproximadamente 600 / 700 quilos de uva”, explica o transmontano, oitava geração de uma família de viticultores e que na enologia conta com a consultoria de Francisco Gonçalves.

“Dá-me mais trabalho do que fazer um lagar dos meus que me leva 8 mil quilos [tem três desses], mas é para mostrar a toda a gente que aqui já se fazia vinho há 2000 anos, que houve uma forte presença dos romanos aqui na região. Tinham as terras em Chaves, as minas de ouro em Tresminas e faziam vinho em Valpaços”, confessa o produtor.

Por outras palavras, o vinho de lagar rupestre “é um chamariz”, que Nuno espera que venha a “despertar interesse em muita gente”, que indo a Trás-os-Montes “ver umas coisas acabe por ver outras”. Só na Quinta do Salvante – que tem ao todo 16 hectares de vinha – produzem-se 85 mil garrafas de vinho por ano.

Nuno Miguel Neves, da Quinta do Salvante, em Valpaços, Trás-os-Montes, junto a uma videira que "terá 200 anos". MARIA JOÃO GALA

As uvas usadas no Torcularium nascem na vinha das Travessas, uma parcela plantada em 1916. Mas essa não é a vinha mais velha da Quinta do Salvante, projecto que renasceu há três anos com a construção de uma adega nova e se abriu ao enoturismo (com visitas, provas e passeios de charrete ou de jipe, inclusive aos lagares rupestres). Noutra parcela, a do Salvante – “onde tudo começou” –, há videiras que “terão 200 anos” e são anteriores à filoxera.

“A Quinta do Salvante esteve quase 100 anos sem plantar uma videira. Só replantava. Não há parcela da minha bisavó que tenha morrido. Das videiras de que ela cuidava hoje cuido eu”, conta-nos, com evidente orgulho. Tanto que Nuno vai prestar homenagem à viúva que em 1950 se viu sozinha no mundo com oito filhos menores para criar e que nos anos seguintes ajudaria a fundar a Adega Cooperativa de Valpaços. “E [ela] não vendeu propriedades, pelo contrário, até adquiriu”. O vinho que lhe quer dedicar, um tinto de vinhas velhas (field blend) com 16,5 por cento de álcool, chamado Dona Alicinha, chegará ao mercado no Natal. Assim como um monovarietal de Bastardo Russo.

Vinho para a festa da aldeia

A nacional 315 e uma paisagem marcada pela cultura da vinha levam-nos de Valpaços a Mirandela, onde a Junta de Freguesia de Vale de Telhas, uma aldeia com um dinamismo invulgar, se estreou na produção de vinho por causa da descoberta de lagares rupestres no seu território.

“É mais um evento. Trás-os-Montes também tem bons vinhos. E cada vez as nossas zonas estão mais desertificadas. Se tivermos projectos em comunidade, diferentes, e actividades que promovam a preservação do nosso património, isso dá frutos”, explica Sónia Mota, membro do executivo da autarquia local, que está a explorar uma vinha centenária de um viticultor da terra.

Para que a aldeia se tornasse atractiva, terão contribuído iniciativas como o Serrar a Belha, que acontece entre o Carnaval e a Páscoa e que começa a ganhar tracção. É uma sátira que conta a história de uma velha muito má e um evento que na última edição, em 2019, chamou 4000 visitantes.

Para o evento em torno da pisada do vinho de lagar rupestre da Junta de Freguesia de Vale de Telhas, em Mirandela, apareceram cerca de 150 pessoas. MARIA JOÃO GALA

Na pisada do último domingo, no lagar do Poulão, num dos extremos da aldeia, alguém dizia: “Se correr bem o Serrar a Belha, metade do vinho consome-se nesse dia”. O vinho são os cinco pipos (725 litros no total) feitos no lagar rupestre: dois pipos de palhete, um de branco, um tinto de bica aberta e um tinto de curtimenta. Era este que pisavam os locais quando o PÚBLICO esteve em Vale de Telhas, onde estão identificados cinco lagares. O resto das uvas tinham sido vindimadas 15 dias antes e esses pipos estavam já numa adega improvisada.

No futuro, o plano da Junta de Freguesia é conseguir recuperar um edifício que lhe foi doado este ano, e que terá sido o tribunal de Pinetum – assim se chamava a outrora cidade – no tempo dos romanos, e fazer ali uma adega de raiz e um museu.

A presidente da Câmara de Mirandela, Júlia Rodrigues, promete ajudar numa eventual candidatura a fundos comunitários. E assim que o vinho for engarrafado pensa inclui-lo nas ofertas institucionais do município, que já costumam levar o azeite das oliveiras da cidade.

Do lagar do Poulão, ouvimos a cantoria: “De beber, de beber, não posso deixar. Se o vinho é que alegra a gente, eu fico contente de me emborrachar”. Quando se fez silêncio, Maria do Carmo Marques, sentada na soleira de uma casa contígua, contou-nos que em miúda brincava ali mas que hoje vive em Mirandela. “Fingíamos que pisávamos aí uvas. Sabíamos o que era, apesar de já não ser utilizado. Ah, mas malhavam aqui os chícharos. Sabe o que são? É como chamamos ao feijão-frade. Vim matar as saudades”.

Por lá ouvimos dizer (e confirmámos): o Barroso não tem cerimónias. Para matar saudades ou (re)descobrir, os lagares rupestres são um pretexto tão bom ou melhor do que outro.

Ana Isabel Pereira (texto)
Maria João Gala(fotografia)

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