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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 19 de novembro de 2023

A Matança do Porco (memórias duma infância de paz e guerra)

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

O dia amanheceu claro, com um sol melado fazendo esquecer a noite fria em que a geada, deste mês de Dezembro, espalhou farinha branca, abundantemente, pelas hortas e lameiros num anúncio breve do Presépio que no aconchego da Igreja fará esquecer todos os frios da alma.
- Que geada caiu hoje!...
Comentou todo contente o tio Jeirinhas para a sua comadre que esfregava uma caldeira de cobre com palha e cinza até ficar reluzente como um brinquinho no prelúdio da matança do porco que estava para breve.
- Pois é, já estais a pensar em tirar o chiadouro aos cevados?!

- Já tio Jeirinhas, agora já engordaram o que tinham que engordar, já só estão a dar despesa e mais nada...
- E quem vai ser o matador este ano...sim que eu já não posso!
Diz muito simulado o Jeirinhas, naquela seu ar matreiro de se oferecer para a mais nobre das missões de Inverno nas tarefas da casa transmontana.

- Pois quem havia de ser, tio Jeirinhas, senão Vocemeçê. Não nos queira fazer agora essa desfeita de não nos querer matar os porcos?

Disse a comadre muito convicta e respeitadora das tradições.

- Mas os novos sabem melhor?

Comenta o Jeirinhas a pedir mais elogios da sua comadre!

- Os novos, agora não sabem fazer nada, tio Jeirinhas, ainda na semana passada o seu sobrinho que já pensa que é gente enterrou a navalha ao porco da Maria Angélica e ele passado meia hora ainda se levantou do banco e fugiu com a navalha enterrada.

- Pois eu até me ia com os ciganos se tal me acontecesse, que não é para me gabar, mas porco a quem eu enterre a navalha morre que nem um tralhão.

- Pois lá para a semana vá-se preparando...para enterrar a navalha aos porcos mais valentes da redondezas.
- Pois então está bem. E até vou estriar uma navalha nova que corta como uma lança, comprei-a ao ferreiro da Vila na outra feira. Que agora estão caras, o diabo das navalhas.
Como combinado o dia da matança chegou, o tio Jeirinhas foi avisado com antecedência não fosse ele para outra casa. A palha seca já estava guarda na loja para chamuscar o porco que depois será bem lavado com água e esfregado com pedras e carquejas.

Enquanto o Jeirinhas preparava o banco, os homens da casa procuravam as cordas, os alguidares para aparar o sangue e mais preparos. A comadre já tinha ido à taberna encomendar uma bica de tripas para as alheiras e uma saca de sal para salgar os presuntos.
Então começa o ritual da matança, os porcos grunhem num alarido de morte trágica, enquanto os garotos fogem perante este espectáculo horrendo, só regressando quando o silêncio é prenúncio de morte. Então sim, apressavam-se a pedir ao matador que lhe corte o rabo do porco. O matador sempre dizendo que não lá vai cortando o rabo aos pedacinhos que distribuí como uma prendar pela garotada que corre a deitar umas areias de sal no rabo que logo em breve assará nas brasas rubras para arrelia das mulheres atarefadas que com grande espavento recomendavam aos garotos para não estorvarem.
Já o porco estava limpo e sem tripas. As mulheres vão para o ribeiro naquela azáfama de lavar nas águas correntes as tripas que servirão para fazer chouriças e salpicões.
Os homens terminaram a sua tarefa, lavam as mãos na torneira do quintal e preparam-se para comer o sangue do porco, cozido, com molho de azeite, cebola, alho e vinagre. Enquanto no lume se assam as molejas e tiras da barbada do porco que é um petisco comido no pão acabado de cozer para as alheiras.
Hoje é dia de festa. Os homens para não atrapalhar o trabalho das mulheres que na cozinha preparam a ceia da matança, vão para a sala onde já está uma braseira acesa. Então no descanso do Senhor e na alegria da casa cheia jogam toda a tarde às cartas, enquanto o vinho escorre como azeite acompanhado de alcaparras e presunto velho.
Anoiteceu, o Senhor Padre já chegou, como principal convidado para a ceia da matança.
A sopa onde se cozeu a vitela, o presunto velho, as chouriças e salpicões cheira que é uma delícia na terrina, amolecendo o pão de trigo.
Depois é servido um cozido à portuguesa com estas carnes, batatas, couves cenouras e arroz feito com a água do cozido.
No final o Sr. Padre levanta-se satisfeito e como enviado do Senhor reza pela alma das intenções da casa, pela alma daqueles que noutros Invernos já distantes da mesma forma prepararam a grande ceia da matança do porco e agora descansam na eternidade.

Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 

Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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