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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

UM ÚLTIMO OLHAR

Por: Paula Freire
(Colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


 Creio que um fotógrafo se reconheça, acima de tudo, na solidão. Capta formas vivas entre cintilâncias e obscuridade. Compõe, com os dedos da vontade e da paciência. Vigilante do que escapa aos outros, grava detalhes que, na loucura da rotina, passam despercebidos à perceção de muitos.

E, por inerência, o fotógrafo é um poeta. Um guardador de cores e emoções. Contador de histórias boas e más. O clique é um poema silencioso. A revelação, uma confidência de bocas que emudeceram, lágrimas que secaram e rostos que fugiram.

A máquina, essa, é tão só a extensão da memória. Às vezes, guarda o que nos assombra depois de nos permitir captar, não somente o que se revela na claridade, mas também o que a escuridão, obstinada, nos escondeu. Talvez por isso, secretamente, sempre temi o instante em que o brilho do reflexo fica desabitado de si e se remete ao simples, mas profundo, momento da recordação.

Não pensava nisso, porém, quando naquela tarde, movido por um desses impulsos que se confundem com saudade, me dediquei à limpeza do pó das caixas de cartão empilhadas nos cantos da casa. Acessórios decorativos consagrados ao lar dos solitários. Quinquilharias que envelheceram por fora enquanto aguardavam, adormecidas, pela minha coragem para me sentar, as abrir e escutar o que tinham para me dizer. Acredito que existem objetos que conseguem esperar muito mais do que os homens.

Perdidos entre mudanças e esquecimento, lá estavam o antigo tripé e os rolos inteiros da velha Rolleiflex. Uma pilha de negativos dobrados. Remotas fotografias que já não reconhecia. E, à espreita, no fundo da tralha, um envelope fechado, desbotado, com um selo da década de 70, já gasto.

Olhei-o desconfiado. De repente, o coração calou-se por um segundo. Depois, sorri sozinho. O carimbo mostrava a data de 31 de outubro desse ano. Aquele mesmo dia… 

Bom, estes mistérios não acontecem duas vezes! Julgo que a curiosidade é uma mania dos que não sabem envelhecer. Por isso abri-o, devagar, com a ponta do dedo. Uma reverência involuntária num gesto quase supersticioso. 

Numa folha dobrada, reconheci a longínqua caligrafia, redonda e ingénua. A letra era minha: 

“As pessoas nunca partem. Apenas mudam de lugar dentro das fotografias. 

Registar o tempo é reter a permanência, e ninguém o faz acidentalmente.”

Há frases que não nos lembramos de ter escrito porque, quem sabe, tenham sido ditas por nós numa outra vida. Mas havia ali uma verdade inquietante. Para desarrumar o desconforto, voltei o olhar para a janela, onde as luminescências do fim de tarde desenhavam a última curva sobre o berço da noite.

Quando os meus olhos regressaram ao interior da caixa aberta, detiveram-se na nostalgia de uma fotografia a preto e branco, bem por cima do amontoado de bugigangas. Jurava ser impossível não ter reparado logo nela. 

Segurei-a entre os dedos enquanto pensava na teimosia das coincidências. 

Era de um grupo de amigos, num dia de verão, com a impertinência do sol a incandescer as gargalhadas soltas. E eu, de câmara em punho, a acreditar na inocência da vida.

Olhei para cada um deles com a estranha impressão dos que observam uma constelação já extinta. Ali estavam, estáticos, naquele pedaço de papel. Mas vivos, afinal, pela substância que deixaram ficar em mim. 

Dois levados pela morte. Outros quantos, fugitivos sem aviso prévio. 

E ainda aqueles que eu próprio expulsei, pela traição, ou por segurança, por me recusar a continuar a ser o que não queria quando estava junto deles. E com pudor, prometi esquecer. Desapareceram. 

Mas, a verdade, é que reconhecemos sempre o cheiro do que nos fizeram. Palavras que cortaram, gestos que magoaram, presenças que deixaram cicatrizes. Recordações que, por hábito, não nos largam.

Almas que teimam em permanecer. Lembranças que vagueiam connosco ainda que estejamos certos de que escolhemos partir delas. Que continuam a acontecer-nos enquanto, disfarçados de indiferença, fingimos seguir em frente. 

E percebemos que o passado pode tornar-se uma prisão. Porque nunca se vai embora sozinho. Nunca.

Constatei como as paredes são realmente honestas quando não temos testemunhas! 

A fotografia latejava, muda, nas minhas mãos. Repentinamente, afastei-a, aturdido. Senti um desses frios interiores que não nos chegam do corpo, mas de uma invulgar premonição. 

Seria pelo ângulo da luminosidade ou pela insistência do meu olhar, reparei na subtileza de uma bizarra distorção daquela imagem: as sombras de fundo moviam-se, como espectros com um sopro contido, a exalar uma espécie de silêncio semelhante ao medo. Havia em alguns daqueles olhos… um nítido traço de súplica.

Sim, esses rostos sorriam. Mas alguma coisa mudara. Os olhos… Ah, os olhos não podiam fugir!

Então, compreendi. Ali, quietas, as figuras não atiçavam unicamente reminiscências… Algumas delas, eram cativas daquele espaço. O tempo a negar-lhes liberdade. 

E, então, compreendi. Pode ser isto, também, a fotografia. Uma cela silenciosa. Uma forma de punição discreta. Perfeita. De certa forma, justa.

É igualmente uma escolha, com o poder de imprimir uma marca que ninguém consegue apagar. Ao fotografar, eu decido quando parar o tempo. Do outro lado da objetiva define-se, frequentemente, aquilo que se deseja perpetuar, aprisionado nessa eternidade imóvel. A eternidade do que se deixa no coração de quem fez o registo. Amor ou dor.

Porque, “registar o tempo é reter a permanência, e ninguém o faz acidentalmente”.

Fechei a caixa. Sorri para mim mesmo. Sorriso interior, inaudível, prolongado, de alívio.

Debrucei-me sobre a janela. Vi a irrevogável réstia luz de outubro a estender-se pelo mundo. Atravessou o vidro e pousou, como uma benção, em cima das minhas mãos. 

Um último olhar. 

“As pessoas nunca partem. Apenas mudam de lugar dentro das fotografias”. 

Há segredos assim. Acasos destes que têm qualquer coisa de espantoso. Decerto divino. Porventura, sobre-humano.

Ou, eventualmente, não tenham sido aquelas pessoas que mudaram de lugar mas, simplesmente, eu. Um fio que coze o passado ao futuro e basta uma fotografia para, nuns minutos, se encontrar paz. 

Entender é, talvez, a maior libertação que a memória nos pode conceder.

E continuarmos a caminhar sem nos deixarmos perturbar pelo que não nos serve, com a certeza de que ainda vive beleza em tudo aquilo que nos fica quando o que é mau já partiu.


Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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