Duas horas passaram naquela modorra. Estava muitíssimo calor. Nem parecia primavera. Todos pareciam aproveitar ao máximo a frescura das suas casas.
A vida ia voltando lentamente. Ouvi o motor de um tractor. Uma carvalhada gritada e levada pelo vento. Um relinchar, as campainhas de um rebanho a tilintarem. Uma carroça puxada por uma pujante mula. A torneira do tanque a jorrar água fresca.
A minha avó, silenciosa, apareceu na varanda. "Que calor filha!" "É verdade avó! Está mesmo calor!" "Eu e o avô vamos plantar cebolo. Queres vir?"
"Não sei avó... temos um convidado." "Aonde? Não vi ninguém." Apontei para a lareira. Só então a minha avó viu o homem.
"Quem é?" "Não sei. É inglês ou algo que o valha."
Embora falássemos baixo, o Peregrino acordou. Espreguiçou-se ligeiramente e levantou-se. Apertou o olhar por causa da intensidade da luz e apareceu no terraço, fresco, como se tivesse dormido umas boas oito horas.
Cumprimentou a minha avó com deferência e pediu desculpas pela invasão da sua casa.
Ouvi a tosse característica do meu avô que não demorou a aparecer. Parou desconfiado. O estrangeiro estendeu a mão para cumprimentar o meu avô, que retribuiu.
Sentámo-nos os quatro e o meu avô cravou os olhos inquisidores no homem.
"Sou natural de England, quero dizer de Inglaterra. Saí do meu país, já lá vão dez anos. Já corri a Europa toda e a Ásia também e agora estou prestes a dar por terminada a minha viagem. Cheguei a Portugal, última etapa da minha peregrinação."
"Dez anos é muito tempo para andar fora de casa e da família...". Disse calmamente o anfitrião.
"É verdade! Começo a estar cansado e, pelo menos por algum tempo, regressarei para os meus. Depois... logo se vê."
"Mas o que é que anda a procurar? Já encontrou?"
O inglês riu-se delicadamente. "Encontrei muita coisa, conheci muita gente. Embebi a minha alma em paisagens maravilhosas. Passei fome e frio, fui maltratado por alguns, poucos. Recebi muito amor fraterno, sem segundas intenções. Tive a sorte de lidar com gente muito boa. Passei maus bocados em algumas fronteiras... enfim, vivi intensamente durante esta década da minha vida. Quando iniciei esta jornada, nunca me havia passado pela cabeça fazê-lo. Se me pergunta porque é que o fiz, dir-lhe-ei que ainda não sei."
"Oh homem, há aí qualquer coisa de loucura, de desvario. Que idade tinha quando saiu por aí?"
"Trinta e três. Já dava aulas in the University of Oxford e foi na sequência de uma das minhas investigações que decidi, quase inconscientemente, esta jornada. Sim, parece um ato de loucura! A minha família tentou dissuadir-me sem sucesso... olhe sr. Manuel, não sei o que nos passa pela cabeça às vezes. Sei que senti uma necessidade premente de sair em busca de algo. Tenho milhares de páginas de notas. Posso escrever uma enciclopédia sobre tudo o que vi e vivi mas, falta-me algo. Estou na reta final da minha aventura porque assim me obrigo. Espero que este peregrinar não tenha sido em vão e eu consiga descobrir o que me fez sair do conforto da minha vida."
Eu e a minha avó ouvíamos o relato como quem está sedento e vê água fresca a gorgolejar na fonte.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.pt
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(Henrique Martins)
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terça-feira, 15 de maio de 2012
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