1 – Um pouco por toda a região transmontana, as tradições da Semana Santa apresentam-se preenchidas com rituais cristãos e pagãos, que representam, em muitos cenários, um claro regresso a ambientes medievais. Às vias-sacras, endoenças, autos da paixão e procissão dos “sete passos”, juntam-se as queimas do judas, o enterro do bacalhau, a corrida dos rapazes aos sinos, entre outras.
2 – As tradições dos ovos e coelhos da Páscoa, bem enquadradas no espírito consumista dos nossos dias, nada têm a ver com as raízes nacionais. São importadas de outras culturas, com reminiscências pagãs, associadas ao culto da fertilidade, sem origens definidas, que tanto podem vir da Europa Oriental como da China. Em Portugal, sobretudo em Trás-os-Montes, a tradição gastronómica incide sobre a confecção dos folares. São particularmente famosos os de Vinhais e de Valpaços. Após o prolongado jejum da quaresma, os folares da Páscoa aparecem recheados das melhores carnes que, ao longo de semanas, estiveram escondidas e arredadas das mesas dos camponeses.
3 – Quanto aos autos da paixão, as endoenças, as vias-sacras ou a procissão dos “sete passos”, traduzem cenários de luto, de reflexão dolorida, expressos dos tons roxos e negros das celebrações. Algumas aldeias ainda conservam as 14 cruzes, ou cruzeiros, que representam as 14 estações que a via-sacra cumpre simbolizando o calvário de Cristo a caminho da crucificação.
4 - A tradição dos “sete passos” mantém-se em Freixo de Espada à Cinta como caso único no país. Embora seja mais intensa na Sexta-Feira Santa, trata-se de um ritual de raízes medievais que tem lugar em todas as sete sextas-feiras quaresmais. Num cenário bem ao jeito de um filme de terror, em plena escuridão, dois homens encapuçados de negro, ao soarem as badaladas da meia-noite, lançam ruidosamente sobre as lajes de granito do átrio da igreja correntes de ferro que prendem nas pernas e arrastam pelas calçadas das ruas produzindo barulhos estridentes e assustadores. O ritual prossegue com a saída de uma “velhinha” vergada sob um negro manto e capuz, transportando numa mão uma lamparina de azeite e na outra um cajado em que se apoia, bem como uma bota de vinho com a qual vai dando de beber aos populares que se ajoelham à sua passagem e devotamente o solicitem, pois a vinho é o símbolo do sangue de Cristo derramado. O cenário é ainda acompanhado por grupos de cantadores que junto aos cruzeiros entoam melodias angustiosas, próprias de ambientes lúgubres medievais.
5 – Por sua vez, mais comuns em Trás-os-Montes, os autos da paixão, enquanto representações de teatro popular, que narram os últimos dias de Cristo, desde a traição até à morte e deposição na cruz, envolvem cerca de quarenta figuras humanas recrutadas no seio do povo, muitas delas pessoas idosas e iletradas, pelo que conservam na memória, durante décadas e décadas, os dizeres das personagens que encarnam. Alguns dos seus papéis eram, outrora, desempenhados com tal emoção e realismo, que, no ato de agredir ou chicotear, as vítimas chegavam a sair em braços e ensanguentadas de verdade das respectivas cenas, havendo ainda casos em que os atores ganhavam, pela vida fora, as alcunhas dos papéis que representavam, como por exemplo, Cristo, Judas, Caifaz, Pilatos, Fariseu ou Diabo.
6 – No concelho de Vinhais, a vida dos camponeses muda radicalmente a partir de Quinta-Feira Santa. Na aldeia de Espinhoso, ao meio dia toca o sino e as pessoas param por completo de trabalhar mal ouvem soar a primeira badalada. Com exceção dos mínimos afazeres domésticos, ninguém trabalha na aldeia até sábado à mesma hora. Durante este período, há um homem que corre o povo tocando matracas, em substituição dos sinos, para chamar as pessoas à via-sacra. Finalmente, ao meio-dia de sábado voltam a tocar os sinos e a aldeia regressa à vida normal. De assinalar também que, nesse período de tempo, as pessoas mais idosas não se penteiam (porque podem “arrepelar Nosso Senhor”), não cozem pão porque dizem que aparece sangue na massa ou nas broas (é o “sangue de Nosso Senhor”), não lavam a roupa porque dizem que aparecem manchas de sangue nos panos (as “chagas de Nosso Senhor”).
7 – Em Vinhais está também muito viva a tradição das endoenças, um ritual carregado de emoção, especialmente quando narra a procura desesperada de Cristo por Nossa Senhora, ora seguindo pelas ruas o seu rasto de sangue, ora perguntando a uns e outros se alguém o viu.
8 – No Sábado de Aleluia, à meia-noite, havia outrora a tradição de os rapazes correrem a tocar os sinos das igrejas, que quebravam o silêncio quaresmal. Até então, os toques dos sinos eram proibidos, sendo substituídos por pungentes matracas de madeira e arame, que emitiam sons ritmados, com as quais um mensageiro percorria as ruas apelando ao recolhimento, à reflexão e à oração. A retomada do toque dos sinos à meia-noite de sábado era disputada pelos rapazes, na crença de que o primeiro que tocasse o sino seria recompensado na descoberta dos ninhos das melhores aves, especialmente a perdiz, o que, noutros tempos, era algo muito cobiçado.
9 – Em Montalegre, mantém-se viva a Queima de Judas, no Sábado de Aleluia. A Câmara Municipal organiza um concurso para melhor mobilizar a população. Mas esta tradição é igualmente ativa noutros pontos do país: Palmela, Azeitão, Vila Nova de Cerveira, Matosinhos, Santa Comba Dão, Tondela, Viana do Castelo, Vila do Conde, Maia, Travassô, Milheirós de Poiares, Ponte do Lima, entre outros. Nela se representa o julgamento de Judas Iscariotes, por ter traído Cristo por trinta dinheiros. O povo, armado de tochas, aguilhadas e outros meios, aguarda os momentos da acusação e defesa, a leitura da sentença e, por fim, participa no castigo fatal investindo sobre um sinistro boneco que se incendeia ou explode. Este castigo simboliza a expiação dos pecados do mundo e o fogo tem um carácter simbólico de purificação.
10 – As queimas do Judas, assim como o Enterro do Bacalhau, representam impulsos eufóricos de catarse e libertação perante os constrangimentos quaresmais. Em Vila Real, a tradição do “Enterro do Bacalhau” é um ritual que responde a outros “enterros”, de sentido inverso, outrora frequentes na região transmontana (enterro do galo na quarta feira de cinzas, enterro do Entrudo…). A tradição do enterro do bacalhau é hoje especialmente praticada na localidade de Constantim, nos subúrbios de Vila Real. Noutros tempos, era toda a cidade a vibrar com o ritual. Um bacalhau enorme feito de cartão seguia escoltado por militares e era julgado perante carrascos, juízes e advogados, tendo, como testemunhas de defesa, os marçanos das mercearias e, de acusação, os empregados dos talhos. O castigo a incidir sobre o bacalhau simboliza a libertação dos constrangimentos da Quaresma, que não permitia o consumo de carne. A partir do Sábado da Aleluia, dia da celebração, já o povo deixa de estar limitado ao consumo de peixe e festeja assim o regresso da carne.
11 – Por fim o Domingo de Páscoa. Nos meios rurais transmontanos mantém-se a tradição do compasso, traduzida num cortejo presidido pelo pároco que visita as casas dos fiéis dando a cruz a beijar e aspergindo com água benta os compartimentos. A carência de sacerdotes tem levado a que muitas aldeias festejem no domingo seguinte a Pascoela, que será a derradeira oportunidade de verem o compasso a entrar nas suas casas. Em Vinhais, após o compasso, há o hábito de todas as pessoas se visitarem mutuamente. É uma prova testemunhal de amizade e solidariedade. Saúdam-se, provam os folares, bebem licores e jeropiga.
Alexandre Parafita
(Bibliografia: Antropologia da Comunicação
Lisboa, Âncora Editora, 2012)
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