Uma propedêutica proveitosa no exercício de ver, ouvir, sentir e cheirar a terra no seu lugar próprio e a gente no seu habitat natural.
Falo com a experiência, a autoridade e o orgulho - porque não? - de quem assumiu a permanência na terra, para o bem e para o mal. Aqui e agora o Nordeste assumido (...), escrevi em tempos mais bravios, mas não menos generosos. Hoje escreveria o mesmo. É aliás o que faço neste momento por outras palavras, igualmente doloridas e angulosas.
E todavia não tenho muito que dizer. Nós, trasmontanos, não somos gente de muitas falas, aprendemos a circunspecção com o grande silêncio dos campos.
Credenciais? Nasci aqui, assisto ao grande espectáculo telúrico e humano de Trás-os-Montes há mais de cinquenta anos e há quase outros tantos que amorosamente cismo nele - credenciais bastantes, parece-me, para ousar uma leitura da identidade complexa, impetuosa, atormentada e excessiva do povo que somos, feita de heroísmos e martírios sem nome.
Ninguém espere, obviamente, uma leitura fria e impassível, porque a frieza e a impassibilidade são-me felizmente vedadas quando falo de Trás-os-Montes.
Nós, trasmontanos, somos e agimos determinados por dois impulsos anímicos, simultaneamente contraditórios e complementares.
Antes de tudo, somos e agimos determinados por um forte sentimento de individualismo. É o elemento da demasia, da impulsividade, da arrogância, da valentia, da obstinação. É também o cordão que nos prende à terra e nos faz amá-la com sofreguidão, defendê-la com ferocidade. É ele que nos mete nas unhas o sacho com que abrimos o verde ao vizinho que nos roubou a vez de água na horta ou nos mudou o marco no extremo da embelga. É gerado pela abastança estival, pela concepção frumentária da terra e pelo deslumbramento da sua contemplação e da sua posse, e gera por seu turno, coisas como o minifúndio, a desconfiança do associativismo, a resistência ao emparcelamento, a auto-suficiência, a aptidão para os sete ofícios, as poucas palavras - tudo afinal o que significa a prevalência do eu no seu diálogo com o tu.
Somos e agimos, em segundo lugar, determinados, por um não menos premente instinto comunitário. Assim como o anterior era o elemento do excesso, este é o elemento da contenção e também da solidariedade. É ele que nos aproxima do outro e impede que o nosso individualismo degenere em egoísmo. É gerado pelos medos ancestrais: medo da fome, da miséria, da doença; do beleguim, da solidão, da intempérie, do lobo - numa palavra, pelo desconforto invernal -, e gera por sua vez práticas fraternas de vida, estruturas gregárias de sobrevivência, corno as vezeiras do gado, os fornos, forjas e moinhos colectivos, o boi e as lamas do povo no Barroso, as retadas na Campeã, a torna-jeira por todo distrito de Bragança. O eu retorna ao nós, o outro ganha dignidade de embarcado nos porões da mesma barca, ombro com ombro.
Esse individualismo e esse comunitarismo essenciais encontram expressão nos dois brados que mais fielmente nos definem, mesmo quando as circunstâncias os parecem desmentir ou quando os julgamos (ou nos julgam) retórica gratuita, afago do ego colectivo. Assim, o individualismo desemboca no brio da independência expresso na fórmula Para cá do Marão mandam os que cá estão, e o comunitarismo desemboca num impulso de hospitalidade expresso na fórmula Entre quem é!
Individualismo e comunitarismo são os dois pólos sobre que gira a nossa identidade, os dois outros nomes do verão e do inverno. E é das proporções com que em nós estão presentes esses dois impulsos primários, ou do equilíbrio - inconsciente, claro - a que os sujeitamos, que se produz a síntese que nos individualiza, trasmontanos, face aos demais. Para incurtar razões: o sacho que erguemos em cólera contra as costelas do vizinho que nos afronta é o mesmo, afinal, que erguemos em boa paz e entreajuda contra os torrões da sua leiva nas vessadas de Maio.
Mas há mais Nós, os excessivos trasmontanos; nascemos excessivamente longe. Um rio e uma cadeia montanhosa separam a nossa terra do resto de Portugal. E, nós somos esse rio, feito de mil rios riachos; e essa montanha, feita de mil terras e colinas. Basta ter olhos para ver. O rio: a água rumorosa e ágil. A montanha: a pedra estável e grave. A água - aventureira. A pedra - taciturna. Água e pedra: nós: os andarilhos das sete partidas e os obstinados servos da gleba.
Água e pedra. Ambas as coisas somos em potência, nascidos de uma terra que só muito rogada se desentranha em frutos. A terra dúplice: terra de vinho, terra de água, terra de azeite, terra de pão, terra de luz, terra de verdade - terra para toda a fome e toda a sede do homem. Mas terra também de horizontes austeros, imutáveis, opressivos, que asfixiam sonhos e incitam à retirada.
Porém esta terra, conjuro-vos a rendê-lo, é como uma segunda pele que nenhum de nós jamais despiu nem despirá de todo. Como podia isso ser? Está presente em cada átomo do nosso corpo e mesmo se a neglicenciamos, embrenhados nas agruras da diáspora, ela acaba por se fazer notar quando menos esperamos, inopinada e leve como as recordações de infância. Nascemos com ela agarrada a nós, trazemos as unhas sujas dela, os olhos namorados dela. É-nos inevitável. E esta inevitabilidade a todos obriga. Obriga os que imitaram a pedra e a vivem por dentro, e obriga os que imitaram a água e a vivem de fora.
Isto é: os que a amam em presença e os que a amam em memória.
A M. Pires Cabral |
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