Já falámos das aparelhagens sonoras de Mirandela e que por altura das Festa da «Bila» animavam as infernais tardes e noites do estio mirandelense.
Eu sei que o Artur Ferreira se vai recordar dos «ganchos» que ele e outros (como o Zé Santos e o Fernando Paulino) faziam para arranjarem uma folga ao saudoso Fernando Azevedo, na cabine sonora da «Sonomir», enquanto ele trabalhava de caixeiro no sótão do Arnaldo Morais.
Mas, das minhas indagações e algumas recordações posso dizer que a aparelhagem «Sonomir» e «Hipólito Seramota» eram as que animavam a «Bila», e os bairros festivos, e para as aldeias eram mais a «Estáquio» do Montevideu e a «Seixas» do Amílcar Seixas de Contins.
Para os que os exercícios de memória são maçadores eu ajudo.
Recuem aos anos cinquenta e sessenta, quando a maioria das aldeias do nosso concelho não tinham luz eléctrica. Na escuridão da noite era a candêa, o lampião, o gasómetro, o petromax e o candeeirinho de mesinha de cabeceira.
Em finais dos anos sessenta, à luz da candeia, na mesa da cozinha, li muito do Eça, dos Lusíadas, do Gil Vicente e dos autores, perfilados na «Selecta Literária» do António José Saraiva e Óscar Lopes, e dos medievos trovadores e cronistas. Os meus pais viam na luz mortiça da torcida e do murraco gasto o meu trabalho. E tínhamos pensamentos antagónicos. Eles pensavam que o meu trabalho de estudo era mais custoso, porque «dava cabo da cabeça» e eu achava que era um privilegiado, que o estudo era férias, porque trabalho era o braçal e extenuante da faina campesina.
Fosse como fosse, vamos ser realistas, trabalho duro qualquer um que não fosse mandrião ou se não tivesse deixado «morder pela mosca» o conseguia fazer. Mas, passar nos estudos, naquele tempo, tinha que ter um mínimo de inteligência. Embora os rurais mais expeditos lançavam logo a máxima: «um doutor é um burro carregado de livros». Por isso, o Capitão Esteves se lamentava que o filho, engenheiro agrónomo, não sabia distinguir na horta uma figueira de um pessegueiro, para gáudio e zombaria dos empregados, cujo último rosto foi o Frederico de Vale Madeiro.
Voltando às festas e romarias populares, no meu tempo (ou no nosso tempo), muitos caminhos para as aldeias eram em terra batida e aparecer por lá uma aparelhagem sonora que se ouvia aos quatro ventos e nos quebrava a aridez do isolamento e do duro trabalho do campo era o máximo que se podia desejar. Quando escurecia o ruído dum pequeno motor iluminava como por magia o largo ou terreiro da festa. Depois, nas festas havia sempre comida melhorada, bolos económicos, ou, pelo menos, uns folares. Vinho era só abrir o baixo (adega) e lá estava o fiel pipito de reserva e um copo de vidro encardido ao lado ou por baixo.
O mínimo que se exigia para haver uma festa na parte Norte e nascente do concelho de Mirandela, nos anos cinquenta até aos noventa, do século XX, era que houvesse uma aparelhagem com altifalante, geralmente a «Aparelhagem Seixas», do Amílcar Seixas (que muito estimava e à irmã Beatriz), de Contins, era a mais solicitada e a que melhor preço fazia aos mordomos sem cheta e alguma imaginação. E quando se dizia que já estava a rugir o lato, queria dizer-se que a festa tinha começado, com o altifalante bem alto ia debitando as modas (canções) mais solicitadas ou mais em voga. Festa a sério, era: com missa cantada, banda de música fardada e alguns acordes sacros, prelúdio das marchas profanas; gaiteiro ou acordeonista e que, mais tarde, foi substituído pelos conjuntos populares, como o da «Maria Albertina» ou o «Pai e Filhos»; os altifalantes ou as aparelhagens (sonoras) salvavam sempre qualquer festa.
Mas, como não se estava em tempo de grandes gastos, em muitas localidades, com missa ou sem missa, com banda ou sem banda, e o conjunto era uma estragação de dinheiro, um altifalante bem esganado, no silêncio da noite, dava música para o arraial da aldeia e para os «pobos» vizinhos «ó redor». Faziam muito barulho e muitas das músicas estavam desfasadas dos gostos dos solteiros e casados das nossas aldeias. O importante era que houvesse um bailarico no terreiro da aldeia ou num local mais reservado. Nestes só entrava a rapaziada mais considerada. Raparigas? Quantas mais melhores! Quando se batia a corda de Vale de Salgueiro até Vale de Gouvinhas e já não havia raparigas despernadas nos arraiais, Fradizela era a palavra mágica. Havia sempre raparigas fosse na festa, fosse nos bailes ao som da grafonola ou, mais tarde, do «vira-discos».
Este texto devia ficar por aqui. Devia, sim senhor! E a alguns mirandelenses até dava jeito, por rivalidades de outrora dos «jogos da bola», em que os da «Bila» eram surpreendidos pelos da Torre. Os da Torre traziam sempre um ou outro habilidoso de Macedo e depois jogavam com gana e ganhavam. Essa rivalidade passou para o débil tecido empresarial mirandelense e sempre que alguém queria montar uma pequena indústria familiar ou pequena na Torre era seduzido para o fazer em Mirandela.
Ultimamente, já se preparavam para acabar com o ensino intermunicipal (Colégio) da Torre e alguns políticos locais de vistas curtas até batiam palmas. Foi preciso dizer-lhes: quando acabar o ensino na Torre, acaba a «Vila»!
Este texto foi-me inspirado por uma mestra dos Vilares e quando procuro informação naquela corda, a Celeste Pires, ajuda-me e o que não sabe bate a outras portas com sucesso.
Voltemos ao lato a rugir em regos de escrita. Na Torre Dona Chama, por altura das festas, ouvia-se por uma semana a aparelhagem do «Mário Patudo» (Mário Pinto da Costa, que faleceu recentemente) e fazia a corda intermunicipal das terras dos concelhos de Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Vinhais. Hoje é o filho, César, que continua com a aparelhagem de som e apareceram mais um ou outro na zona de Vila Nova da Rainha.
As aldeias que não tinham poder económico para contratar a banda de música servia-lhes a aparelhagem logo cedo. As festas rugidas tinham música e quando esta abalava, ficava a aparelhagem para o arraial. Quando só há missa, diz-se que a festa é séria.
O mordomo principal servia-se da aparelhagem para dar informações para os romeiros deste teor: - agora, seguidamente, segue-se um intervalo, enquanto a banda bai jantar, o pobo bai cear. O povo, sábio, regia-se pela norma de sempre: almoço, jantar e ceia.
Os discos pedidos eram o modo de os rapazes, os «admiradores», chamarem a atenção das raparigas, dedicando-lhe «a moda que de segue».
Nas festas e romarias, não havia retretes públicas e todos se desenrascavam consante a ocasião, lá iam a campo, trás duma parede ou duma lameira. Uma vez por outra, na Torre um músico incauto agachou-se na lameira a obrar, deixando o cinto de lado. Só que na hora de se ataviar ficou mais leve do miolo. Outro aflito do ventre deu com o atavio e entregou-o à comissão de festas e lá volta o mordomo a botar faladura solta: - atenção! atenção! O senhor músico que foi cagar à lameira que venha levantar o seu cinto aqui na cabine de som!
Quando chegava a hora da descarga do foguetório, o mordomo atento via que o fogo se inclinava para o campo de nabal e voltava o mordomo: - Atenção senhor «piroténico» é fabor não chegar fogo ao nabal! Não botar para esse lado!
As exibições junto da aparelhagem de som chegavam a forjar informação. Lembro-me que na minha terra, no Terreiro da Poça, o lato rugia e o Carolino Alfaiate (Fena) vai à cabine: - Atenção, muita atenção! Carolino Alfaiate perdeu a carteira. Pede-se a quem a encontrar o favor de a entregar. Passados uns segundos, achou que não devia dar a ideia de teso e rematou: - perdeu a carteira sem dinheiro, a com dinheiro está aqui.
Tempos em que se vivia e se era feliz com pouco.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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