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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 4 de março de 2019

As pulhas e os casamentos

– Ó CA-MA-RA-DA… A…A!…

– Uma “pulha” – diz Aninhas mal disposta, olhar atento. – Embirro do Entrudo só por estas malditas “pulhas”. Põem ao léu a verdade e a mentira do bom e do mau…

A este tempo já de outro ponto eminente, da Horta do Ferrão, para que os pregões se cruzem sobre o povoado, outra voz, também cavernosa, também arrastada, também através de uma buzina:

– Que… é… lá – á – á?

 Pulhas
– Ó CA-MA-RA-DA… A…A!…

– Uma “pulha” – diz Aninhas mal disposta, olhar atento. – Embirro do Entrudo só por estas malditas “pulhas”. Põem ao léu a verdade e a mentira do bom e do mau…

A este tempo já de outro ponto eminente, da Horta do Ferrão, para que os pregões se cruzem sobre o povoado, outra voz, também cavernosa, também arrastada, também através de uma buzina:

– Que… é… lá – á – á?

Do Caneiro, rasgando as sílabas, espaçando as palavras, impondo-lhes tonalidades arrepiantes, a primeira voz interpela:

– Então?… o Du-ar-te… do Le-an-dro… ca-sa… ou não ca-sa-a?

Duarte olha a irmã, como fulminado. A irmã olha-o a ele, como alanceada.

A segunda responde:

– Não … sei… na-da-a-a!

Silêncio. Duarte sufoca. Quem serão as almas danadas que se aproveitam das liberdades do Entrudo para exporem, nua e vergastada, na varanda de Pilatos, a dignidade do seu amor que a vila inteira, neste momento, por lojas, bailes e lareiras, a mão no ouvido, os olhos esbugalhados, o riso engatilhado, se prepara para escarnecer, para enxovalhar, para flagelar?

A primeira voz arremete contra o silêncio, elucidativa:

– Pois… não…ca-sa! Que-ria! Mas…de-ram-lhe… nas ven-tas… P’ra trás!

E logo, dos dois pontos culminantes de comunicação, estruge, simultânea sarcástica, enorme, trovejante, uma gargalhada em ohs! cadenciados:

– Oh! Oh! Oh! Oh! 1.

As pulhas são gracejos vincadamente satíricos que oscilam entre o humor lúdico e o lavar de roupa suja. Em muitas localidades combinam-se com os casamentos ou limitam-se mesmo a eles, assumindo neste último caso uma atitude elegante, embora arteira. Esta curiosa forma de intromissão e de troça da vida alheia vem de longe, dos tempos da poesia trovadoresca, em que nas cantigas de escárnio e maldizer pouco ou nada escapava ao que merecesse ironia e reprovação, esta a empolar-se muitas vezes, até à calúnia. Então, zurzia-se impiedosamente o mau comportamento de clérigos e leigos, de avarentos, dos falsos cruzados, dos que na guerra eram cobardes, dos médicos falsos ou incompetentes, dos alcaides desleais a D. Sancho II, dos bruxos e bruxas, das mulheres de mau porte, etc. Célebre ficou a soldadeira Maria Pérez Balteira: “O que veer quiser, ai, cavaleiro, / Maria Pérez leve dinheiro”.

Mas um reforço da crítica maledicente, que pretendia ser no fundo uma sanção moral de gosto popular, encontra-se nas velhas procissões de penitência e vias-sacras de rua, que agora praticamente desapareceram ou se mantêm isoladas, numa ou noutra aldeia nortenha reduzidas a interessantes manifestações de religiosidade tradicional. Em Guimarães e em Braga, conta Alfredo Guimarães 2 as procissões excediam-se, isto ainda perto do final do século passado. Pelas ruas de Guimarães, nas sextas-feiras da Quaresma, à noite, desfilavam hábitos negros e gente descalça, franciscanos que, desconhecendo porventura o Cântico do Irmão Sol do “Poverello”, estrondeavam, sem dó, nem piedade, sobre a vida alheia. A via-sacra parava, de quando em quando, e um missionário trazia à baila: Adultérios, roubos, ambições, dissidências políticas – os malhados e o Senhor D. Miguel, o testamento de fulana, a burla de cicrano, a mulher de beltrano, etc. -, tudo isso vinha à praça, envolto sempre numa interpretação velhaca dos sete pecados capitais, ou de alguma patética evocação de além-campa. Em Braga, coisa semelhante sucedia na procissão do fogaréus, na noite de Quinta-Feira Santa. Os que empunhavam as lanternas davam-se ao mister de divulgar os mais respeitosos segredos de família e de inventar as mais infames calúnias.

Os tempos mudaram. A cultura muda com o tempo, embora o fundo tradicional se mantenha.

1 - Sousa Costa – Ressurreição dos Mortos, Porto, 1955
2 - Alfredo Guimarães – As Vias-Sacras e Terra Portuguesa


António Cabral (1931-2007) foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa. Nascido em Castedo do Douro, Portugal, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária aos 19 anos com a publicação do livro de poesia Sonhos do meu anjo. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, e dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas.

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