Havia apenas cinco nascimentos ao ano. Hoje em dia são cerca de 100. Celestino da Veiga, de 83 anos, tem uma burra desta raça. O habitante de Caçarelhos, no concelho de Vimioso, conta que desde sempre teve “burros, vacas e cavalos”. Depois de regressar de França, onde esteve emigrado 45 anos, comprou terrenos e voltou a adquirir animais. “Agora já só tenho esta burrica, chega-me, não quero mais”, conta enquanto espera que os técnicos da associação arranjem cascos. Ainda usa o animal para alguns dos trabalhos do campo, como “lavrar e arrancar as batatas”. “É só para isso que a quero”, trabalho em que, diz, é melhor do que o tractor. Comprou a burra há uns 4 anos e explica que teve de a ensinar, que “tem de andar sempre um na frente, que ela nunca tinha lavrado”, conta. O criador ligou à associação porque era necessário limpar os cascos do animal, um trabalho que é feito por Manuel Campeão, ferrador da AEPGA, onde trabalha há cerca de 13 anos. “Aprendi aqui, primeiro comecei a andar com os veterinários, a notar que havia muitos animais que precisavam deste serviço, fiz formações e damos apoio a estes animais todos.
Agora na associação sou o único que faço este trabalho, de tratar dos cascos”, refere, admitindo que não é muito fácil encontrar quem o faça e por isso é muito requisitado. A acompanhá-lo vai Zélia Cruz, natural de Celorico de Basto e veterinária na AEPGA. Conta que foi quando estudava em Vila Real que teve o primeiro contacto com o Burro de Miranda. “Recebemos lá uns burrinhos, a partir daí fiquei muito apaixonada pelos animais e pela raça. Depois comecei a fazer voluntariado e estágios e há um ano estou a trabalhar na associação”, conta. Desde que a situação pandémica permite, os médicos- -veterinários e técnicos da AEPGA voltaram ao terreno para dar apoio aos criadores de Burro de Miranda. “Tratamos dos burros em Miranda, Mogadouro e Vimioso. Fazemos o apoio do bem- -estar do animal, com o nosso ferrador fazemos os cascos, uma avaliação geral do animal e preenchemos o protocolo do bem-estar, vemos a condição corporal, os dentes, se têm parasitas externos, vemos a reacção do animal”, explica. A burra do senhor Celestino teve um diagnóstico positivo. “Está com uma condição corporal perfeita, é raro até encontrar animais que deixem fazer os cascos sem qualquer contenção, está calma, também reparamos na ligação entre o dono e a burra, vemos que o dono está a falar e a tocar na burra, é um bom sinal”, refere. Um cuidado próximo que vêem repetido junto dos restantes criadores da região. “Os maiores problemas que vemos no bem-estar poderá ser o excesso de peso, dão por norma uma sobremesa a mais”, refere.
Na AEPGA trabalham dez técnicos e quatro trabalhadores voluntários italianos, no âmbito do programa Serviço Cívico de Itália, que substitui o serviço militar. Os técnicos garantem que todos os animais são vistos uma vez por ano, uma visita que “é sempre bem recebida” e o trabalho passa ainda por um apoio na reprodução. “É bom fazer uma coisa em que acreditamos e ver que estamos a melhorar o bem-estar dos animais e das pessoas que têm os animais, que é uma tarefa muito importante que temos, não fazemos só o apoio dos animais, temos de apoiar os criadores, uma população cada vez mais envelhecida”, afirma a veterinária de 27 anos.
Da extinção certa à sustentabilidade da raça
A AEPGA foi fundada em Maio de 2001, no âmbito do trabalho do Parque Natural do Douro Internacional. “Havia uma população de burros no Planalto Mirandês, com as mesmas características eram burros castanhos, grandes, serviam no passado para produzir mulas, mas nenhum zootécnico ou associação de criadores se interessou até aí pelos burros”, conta Miguel Nóvoa, responsável da associação. O Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) viu nisso uma oportunidade. Depois de contactada a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), foram realizados os primeiros estudos para o reconhecimento da raça. “Nessa altura, o burro era muito pouco reconhecido e valorizado, era um pouco desprezado, as pessoas daqui sempre tiveram no burro um companheiro e um animal de trabalho que continuavam a utilizar seja para montar, levar as vacas, lavrar batatas ou vinhas, mas havia muito poucos nascimentos, principalmente em linha pura”, explica.
Em 2003, foi dado início ao primeiro registo zootécnico, que evoluiu para um livro genealógico, um trabalho considerado essencial, por “dar a conhecer às pessoas que estávamos na presença de uma raça e que era muito importante seleccionar os poucos machos reprodutores com as características da raça”. De cerca de cinco nascimentos por ano passou-se para 20 a 30 nascimentos, em 2005. Actualmente, a AEPGA regista no livro genealógico da raça entre 90 a 100 nascimentos, que estabilizaram neste valor “aquele que o mercado consegue absorver”. O efectivo da raça tem vindo a crescer, e agora há à volta de 900 animais, 800 fêmeas e cerca de 100 machos reprodutores. Uma das grandes alterações é a diminuição da média de idade dos animais, que há cerca de 15 anos se situava entre os 17 e 20 anos, agora ronda os 9 anos. “O que dá uma maior esperança de salvaguarda da raça, porque é importante haver uma população jovem, que a qualquer momento também pode intensificar os nascimentos”, sublinha. O veterinário frisa que é necessário ter como objectivo trabalhar para preservar uma raça autóctone para daqui a 50, 100 ou 200 anos. “Não podemos ter como visão um período de 5 a 7 anos, porque isso não tem qualquer significado para uma raça autóctone”, frisa. A raça asinina de Miranda ainda está ameaçada de extinção, no entanto, “está estável” e caso se mantenha esta dinâmica, durante os próximos anos, “é uma raça que estará saudável”. Inicialmente, o slogan da associação era “Burros há muitos, mas estes estão em extinção”, mas muito mudou desde aí. “Felizmente surgiram os primeiros criadores de Burro de Miranda pelo país e outras pessoas na região renovaram o efectivo”, conta Miguel Nóvoa.
Segundo Pedro Vieira, Director-Geral de Agricultura e Veterinária, “o grande mérito da associação é terem feito o levantamento dos animais e criadores ainda existentes e com estudos terem conseguido comprovar a existência da raça asinina de Miranda”, em particular por ser um animal que “não se retira leite para consumo, nem carne”. Foi em 2005 que a DGAV conseguiu incluir o Burro de Miranda na lista de raças que poderiam usufruir de um apoio europeu à manutenção de raças autóctones, que é actualmente de 200 euros por animal. “Isso foi determinante, até no sentido de dizer aos criadores que isto era verdade”, refere. Ao mesmo tempo “a sociedade portuguesa interessou-se por este projecto” e em 2005 houve iniciativas como as exposições do fotógrafo Oliviero Toscani sobre o Burro de Miranda, que chegou a várias localidades, em Portugal e no resto da Europa, o documentário de Tiago Pereira “11 burros caem num estômago vazio” e iniciativas como os passeios temáticos como o “Tierras del Rei”, o “L Burro i L Gueiteiro” ou o “Brano de San Martino”, que deram visibilidade à raça e à região. “Este é um projecto que atrai pessoas à região, que querem conhecer o território do Burro de Miranda e de outras raças autóctones”, sublinha Miguel Nóvoa, o que muito se deve também às iniciativas, que devido à pandemia foram canceladas, o que levou a que a orientação agora seja mais virada para oficinas e visitação, que não exijam tanta concentração de pessoas. “A região está a crescer num desenvolvimento que gostávamos de acreditar que seja sustentável e que as pessoas reconheçam que os valores únicos que temos, quer de raças autóctones quer de paisagens, existem graças a uma resistência dos habitantes e de um gosto por uma agricultura familiar”, acrescenta.
Depois de estabilizar o número de nascimentos, o desafio para o futuro passa pelo aumento e renovação dos produtores, para haver um equilíbrio entre a produção e os novos criadores. “Não podemos pensar que por aumentar os nascimentos vamos salvar a raça, o grande desafio de uma raça autóctone, desta como das outras, está em renovar os criadores em aumentar o seu número porque a maioria das pessoas vai ficando idosa e os mais novos não estão a optar por projectos com raças autóctones nem com animais”, refere. Actualmente existem 120 criadores em Miranda, outros tantos em Vimioso e cerca de 40 no de Mogadouro. Dos criadores espalhados por todo o país, desde Monção até Portimão, a maioria são mais jovens entre os 20 e os 50 anos, mas todos os anos “é preciso encontrar 90 novos criadores anualmente para absorver os nascimentos”. A associação também aposta na educação e sensibilização, porque, afirma Miguel Nóvoa, é necessário fomentar novos criadores, para que sejam bons criadores, para “que exista um equilíbrio e comprem um burro de Miranda com um ano e o criar durante 36 anos e não que passado 3 anos querem vendê-lo”. Nesse sentido, uma das mais recentes apostas da AEPGA é o Centro de Actividades Lúdico-Pedagógicas, no PINTA, em Vimioso, onde são realizadas formações especializadas na tracção e condução animal, em maneiras de domesticar o burro e na asino-terapia. Mais antigas são as instalações do Centro de Valorização do Burro de Miranda, criado em 2004 em Atenor, concelho de Miranda, onde a sede da associação também se encontra e acolhe hoje em dia 60 animais. Já em 2011 foi criado o Centro de Acolhimento do Burro, em Pena Branca, que através da prestação de cuidados veterinários melhora as condições de vida dos animais idosos, doentes, sujeitos a maus-tratos ou em situação de abandono e é também lar de animais cujos donos fiquem impossibilitados de cuidar deles adequadamente.
A associação já recolheu 220 animais nos últimos 15 anos nestas circunstâncias, numa média de 25 animais por ano. Além de ainda serem usados para ajudar nos trabalhos agrícolas, os burros podem também contribuir para diminuir a carga combustível, ao pastar. Para sensibilizar para esta função, a AEPGA está a desenvolver um projecto-piloto chamado brigada florestal animal, que pasta em áreas que estão a ser monitorizadas desde 2019. “Um conjunto de animais ajuda a diminuir a carga de combustível de um terreno e aumenta a biodiversidade do espaço ao deixar matéria orgânica. Nesta brigada temos um ou dois dispositivos de GPS que nos permitem saber se os animais estão ou não num local, se saírem ser mais fácil de os encontrar”, explica.
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