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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

A infinidade do bulling

 1999. Numa escola de uma cidade tranquila dois rapazes, no intervalo, deitam perfume para o cabelo de uma rapariga e, de seguida, aproximam-lhe um isqueiro. Uma parte do cabelo arde quase até à raiz. A miúda de 14 anos, e a colega que estava ao lado dela, ficam paradas no banco de pedra junto ao “barracão”, o edifício de pré-fabricado onde iam ter a aula seguinte. A rapariga chora, a colega consola-a enquanto os dois rapazes, um ano mais velhos, se afastam a rir às gargalhadas. Os colegas chegam, perto da hora de tocar e todos perguntam o que aconteceu e são unânimes: “não digas nada que sabes que ainda fazem pior”. E a rapariga não fez.

Na aula seguinte, de físico-química, batem à porta. Um dos rapazes que tinha lançado fogo pede para falar com a vítima. Ela pede à professora para não ir à porta. A Professora diz ao rapaz que não e ele insiste. Um colega da turma mais extrovertido diz a Professora que tinham queimado o cabelo à Colega, como ela podia ver, e a Professora diz que não pode ter a aula interrompida por isso, que foi certamente uma brincadeira e manda a Aluna sair para ir falar com o rapaz. Também a professora não o contrariava porque bem o conhecia nem acompanhou a miúda. E a rapariga, já frágil, foi ameaçada que a queimariam mais se dissesse algo a alguém, sozinha, em frente à sala de aula, de onde tinha sido mandada sair pela própria Professora.

A cidade era Bragança. A Escola a Secundária Abade de Baçal. E a rapariga de 14 anos era eu.

Há 22 anos não se falava de bulling. Felizmente tive o apoio dos meus Pais e o assunto foi tratado. Mas não deixei de ficar marcada com o que aconteceu ou de ter medo, pânico. Ainda hoje, quando me recordo da situação, sinto uma mistura de sentimentos, entre raiva, desespero, pânico e incapacidade de fazer algo por mim, de me sentir pessoa. E sinto-me frágil.

O bulling não é algo simples e, apesar de quase unanimemente criticado, faz parte do nosso dia-a-dia. Sai reforçado quando dizemos aos nossos filhos que são muito mais bonitos que o “gordo” da turma ou para não se sentirem diminuídos com o colega que “nem tem uma mochila da moda como a tua”. Sai ainda vencedor quando, nas escolas desde os anos mais precoces, os professores o criticam dentro da sala, em conversa de grupo, mas no recreio dizem à criança para desvalorizar o comportamento do colega que diz que ele não fala bem ou que é uma caixa de óculos e o manda ir brincar com outros meninos. E é esta a grande arma do bulling: sermos todos contra mas não nos abstermos de, na prática, desvaloriza-lo ou até dar dele exemplos, ainda que indiretamente.

É discutível que vídeos onde se vejam atrocidades contra crianças mais frágeis sejam publicados. Mas sinceramente acho que só quando somos confrontados com situações limites, como o do miúdo que foi atropelado para fugir dos agressores e com vários espectadores a assistir, percebemos a gravidade do que se passa. Porque só de imaginarmos que quem amamos podia ser a vítima - porque é de um crime que falamos - não conseguimos ficar indiferentes.

Urge que consigamos fazer a diferença, mais do que com discursos, com exemplos. Urge que os educadores, professores e auxiliares ajudem a construir com os gestos um novo mundo e não só com o discurso direto. Urge que também nos, adultos, não nos calemos quando alguém mais frágil é violentado de alguma maneira. Urge que consigamos ultrapassar o medo que tantos de nós sentimos alguma vez na vida e fazer a diferença. Urge que, como Pais de vítimas, os saibamos manter confiantes, como Pais de espectadores os eduquemos para conseguirem intervir e, como Pais de agressores, os saibamos apoiar para a mudança mas sem nunca desvalorizar o que de grave fizeram.

As palavras marcam para sempre. As agressões duram bem mais que as marcas físicas. E o pânico das ameaças não se esbate com o tempo. O tempo não cura o bulling. A memória não se apaga, Não só pelo que guarda do momento, mas pelo que o mesmo ecoará para sempre nas vidas de cada vítima.

Ana Soares

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