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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 15 de maio de 2021

Guerra Junqueiro: "O Linho"

 O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais delicadas e transparentes do que azas de moscas. O sol espalhava os seus raios sobre ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer, como o de um filho quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.

- Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito crescido, e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz. Não há ninguém que seja mais feliz do que eu sou. Tenho saúde e um belo futuro. A luz acaricia-me, e a chuva encanta-me e refresca-me. Sim, sou feliz, feliz a mais não poder ser!

- Como és ingênuo! disseram as silvas do valado; tu não conheces o mundo, de que nós outras temos uma larga experiência.

E rangendo lastimosamente, cantaram:

- Cric, crac! cric, crac! crac! 

 - Acabou-se! acabou-se! acabou-se!

- Não tão cedo como vocês imaginam, respondeu o linho; está uma bela manhã, o sol resplandece, e a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e florir. Sou muitíssimo feliz.

Mas um belo dia vieram uns homens que agarraram no linho pela cabeleira, arrancaram-no com raízes e tudo, e deram-lhe tratos de polé. Primeiro mergulharam-no em água, como se o quisessem afogá-lo, e depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!

- Não se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si; é necessário sofrer, o sofrimento é a mãe da experiência.

Mas as coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no, cardaram-no, e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois, puseram-no numa roca, e então perdeu a cabeça inteiramente.

- Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio daquelas torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades perdidas.

E ainda estava dizendo - perdidas, e já o estavam a meter no tear e a transformá-lo numa peça de pano.

- Isto é extraordinário, nunca o imaginei; que boa sorte a minha, e que grandes tolas aquelas silvas quando cantavam:

Cric, crac! cric, crac! crac! 

Acabou-se! acabou-se! acabou-se!

Agora é que eu princípio a viver. Padeci muito, é verdade, mas por isso também agora sou mais feliz do que nunca. Sinto-me tão forte, tão alto, tão macio! Ah! isto é bem melhor do que ser planta, mesmo florida, ninguém trata da gente, e não bebemos outra água a não ser a da chuva. Agora é o contrário: que cuidados! As raparigas estendem-me todas as manhãs, e à noite tomo o meu banho com um regador. A criada do sr. cura fez um discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a melhor peça da paróquia. Não posso ser mais feliz.

Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras. Cortaram-no e picaram-no com uma agulha. Não era lá muito agradável, mas em compensação fizeram dele uma dúzia de camisas magníficas.

- Agora decididamente começo a valer alguma coisa. O meu destino é abençoado, porque sou útil neste mundo. É preciso isso para se viver em paz, e ser-se feliz. Somos hoje doze pedaços, é verdade, mas formamos um só grupo, uma dúzia. Que incomparável felicidade!

O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.

- Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda, mas não se fazem impossíveis.

E as camisas foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era finalmente a sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem adivinharem o que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em papel branco magnífico.

- Oh que agradável surpresa! exclamou o papel, agora sou muito mais fino do que dantes, e vão cobrir-me de letras. O que não escreverão em cima de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!

E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas diante de números ouvintes, e os tornaram mais sábios e melhores.

- Ora aqui está uma cousa muito superior a tudo que eu tinha imaginado, quando vivia na terra, coberto de flores. Como poderia eu imaginar que ainda havia de servir para alegrar e instruir os homens! Não sei explicar o que me está acontecendo, mas é verdade. Deus sabe perfeitamente que nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha sorte; foi Ele que gradualmente me elevou, até chegar à maior glória. Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: Acabou-se, acabou-se tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais risonho. Vou viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam ler e instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis; agora as minhas flores são os mais elevados pensamentos. Sinto-me feliz, imensamente feliz!

Mas o papel não foi viajar; entregaram-no ao tipógrafo, e tudo que lá estava escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros, que recriaram e instruíram uma infinidade de pessoas. O nosso bocado de papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda que desse a volta à roda do mundo. A meio caminho já estaria gasto.

- É justo, disse o papel, não tinha pensado nisso. Fico em casa, e vou ser considerado como um velho avô! fui eu que recebi as letras, as palavras caíram diretamente da pena sobre mim, fico no meu lugar, e os livros vão por esse mundo fora. A sua missão é realmente bela, e eu estou contente, e julgo-me feliz.

O papel foi empacotado, e lançado para uma estante.

- Depois do trabalho é agradável o descanso, pensou ele. É neste isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em diante é que eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmo é a verdadeira perfeição. Que me irá ainda acontecer? Progredir, está claro.

Passados tempos, o papel foi atirado ao fogão para o queimarem, porque o que o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar açúcar. E todas as crianças da casa se puseram à roda; queriam vê-lo arder, e ver também, depois da lavareda, as milhares de faíscas vermelhas, que parecem fugir, e se apagam instantaneamente uma após outra. O maço inteiro de papel foi atirado ao lume. Oh! como ele ardia! Tornara-se numa grande chama, que se erguia tão alto, tão alto como o linho nunca erguera as suas flores azuis; a peça de pano nunca tinha tido um brilho semelhante.

Todas as letras, durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as palavras, todas as ideias desapareceram em línguas de fogo.

- Vou subir até ao sol; dizia uma voz no meio da lavareda, que pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela chaminé, e no meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os olhos do homem. Eram tantos quantos tinham sido as flores que o linho tinha dado. Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se extinguiu, quando não restava do papel senão a cinza negra, ainda eles dançavam sobre essa cinza, e formavam, tocando-a, pequeninas centelhas encarnadas.

As crianças cantavam à roda da cinza inanimada:

Cric, crac! cric, crac! crac!

Acabou-se! acabou-se! acabou-se!

Mas cada um dos pequeninos seres dizia: “Não, não se acabou; agora é que é o melhor da festa. Sei-o, e julgo-me feliz.”

As crianças não puderam ouvir, nem compreender estas palavras; mas também não era necessário, porque as crianças não devem saber tudo.

Fonte:
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877

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