Muitos agricultores e caçadores julgarão esta medida insuficiente para combater o que consideram uma praga que tem causado prejuízos de milhares de euros. João Carvalho, secretário-geral da Associação Nacional de Proprietários Rurais – Gestão Cinegética e Biodiversidade (ANPC), acredita que o problema irá persistir e que é fundamental intensificar a caça para que seja possível gerir as populações.
As medidas adicionais do ICNF, diz João Carvalho, que também é caçador, apenas atenuam o problema. “A realização de esperas faz com que o crescimento não seja exponencial, mas não reduz a população, apenas evita que cresça de forma abrupta. O que resolve o problema são outras formas de caça, como as montarias, onde se abate um número superior de animais e se consegue ter um impacto sobre a população”, defende. “As esperas acabam por servir um pouco mais como protecção de determinados locais dos estragos dos javalis, como culturas agrícolas, zonas urbanas ou jardins, por exemplo. Para termos uma noção, numa espera está um caçador e raramente se abatem dois ou três javalis. Nas montarias, como estão caçadores dispersos numa determinada área em locais estratégicos, já se consegue abater um maior número de animais.”
Para Luís Vicente, biólogo e cabeça de lista do partido Pessoas, Animais, Natureza (PAN) em Beja nas legislativas de 2022, as montarias não são a solução: “A caça é um problema dramático que põe em causa todas as populações em geral. A caça nunca é a solução. Cada animal possui uma certa quantidade de energia para desenvolver as suas funções vitais. Por causa da caçam, esta energia é gasta em fugas e assim são abandonadas crias.”
Mesmo sabendo que as montarias se realizarem apenas entre Outubro e Fevereiro, período em que os animais não estão no seu ciclo reprodutivo, Luís Vicente mantém a sua opinião e acredita que a solução é a reintrodução de linces e lobos nas zonas com maiores quantidades de javalis, para que estes tenham predadores naturais. A solução para zonas urbanas ou agrícolas seria a esterilização ou a colocação de redes eléctricas que evitem que os javalis entrem em zonas agrícolas, sempre reconhecendo que estes métodos requerem um enorme investimento por parte do Estado.
Libertacão do linces em Alcoutim em Maio de 2022 DANIEL ROCHA |
Para o PAN, o crescimento da população de javalis não é um considerado como uma praga. “Não chamamos lhe praga. A população animal é apenas uma praga quando interfere com outros animais; a questão dos javalis é referente à interferência com o ser humano”, assinala Luís Vicente.
Em defesa da caça, João Carvalho diz que “o PAN deve estar a falar da caça desordenada, caça que não é aquela que podemos praticar em Portugal”: “Em Portugal, a caça decorre em zonas de caça ordenada, onde tem de haver os princípios da sustentabilidade e só se pode caçar à medida daquilo que é possível em cada ano e em cada zona de caça.”
O representante da ANPC vai mais longe: “Dizer que a caça é prejudicial para a conservação da natureza é um perfeito disparate, porque nós precisamos de abater mais javalis para que a população de javalis volte a ter densidades compatíveis com outras utilizações do espaço, inclusivamente com a conservação da natureza.” Outros métodos de controlo, na opinião de João Carvalho, não são eficazes. “Tudo o que são anticoncepcionais e esterilizações não funciona. Não é possível apanhar todas as fêmeas, logo haverá sempre reprodução. A população já é demasiado elevada, logo manter os animais e tentar atenuar o crescimento através de anticoncepcionais seria um desastre.”
Javali em Mafra MIGUEL MANSO |
A real dimensão das populações
Falta ainda saber, porém, quantos javalis existem de facto em território português. Por isso mesmo, em 2019, um despacho determinou a realização de um estudo a nível nacional, coordenado pelo ICNF, em colaboração com o Instituto de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) e uma universidade, para determinar a real dimensão das populações de javalis em território nacional. Este estudo, que a pandemia atrasou, porque as equipas não conseguiam desenvolver o trabalho de campo e visitar os locais de amostragem, ainda está a ser feito pela Universidade de Aveiro.
Intitulado “Plano Estratégico e de Acção do Javali em Portugal”, este estudo, segundo a informação no site da Universidade de Aveiro, partiu do pressuposto de que os javalis são actualmente considerados “um expressivo problema económico, social e, por vezes, ecológico e sanitário”. Será mesmo assim? “Esta adjectivação”, contextualiza-se de seguida, “carece de um estudo rigoroso que a justifique e que lance as bases objectivas para a sua mitigação”.
“Em Portugal, são vários os indicadores (por exemplo, o número de animais caçados e os prejuízos socioeconómicos) que apontam para um aumento da população de javalis em número e distribuição. Esta tendência necessita de uma base técnico-científica sólida, que actualize o conhecimento sobre a ecologia e demografia do javali em Portugal”, adianta o resumo do estudo, que indica os três objectivos principais do plano.
São eles: o conhecimento do tamanho e da estrutura populacional da espécie; a descrição e o acompanhamento dos parâmetros fisiológicos, sanitários e indicadores de condição física dos animais; e, por fim, a avaliação do habitat e dos factores que contribuem para aumentar ou diminuir os prejuízos causados pela espécie. Com esta informação, explica-se ainda, serão definidas estratégias para uma gestão sustentável, bem como a mitigação dos impactos negativos dos javalis (como prejuízos agro-florestais e disseminação de doenças) e dos contactos “cada vez mais frequentes” com os humanos e o gado doméstico nas áreas rurais e periurbanas.
é o número de javalis abatidos em zonas de caça em Portugal continental, entre 2020 e 2021. segundo dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas.
Mesmo com as acções de controlo de populações de javalis em curso e ainda à espera das conclusões deste estudo, os prejuízos levam os agricultores a defender a criação pelo Estado de mecanismos para o pagamento desses prejuízos, como fundos de compensação, semelhantes aos que existem em França, ou sistemas de seguros agrícolas.
Outra contagem fundamental é a dos abates. Segundo números do ICNF, entre 2020 e 2021 abateram-se em Portugal, em zonas de caça, mais de 17.700 javalis. Mas o abate de muitos dos javalis em território português não é declarado, pelo que este número poderá ser visto como uma amostra da realidade.
A atribuição de selos em caça maior é uma forma de controlar os animais abatidos, permitindo saber quantos animais são abatidos a nível nacional e como é que a população vai evoluindo estatisticamente. Os selos para a caça maior também evitam a caça furtiva: se alguém for detectado com animais sem os selos, isso é um sinal de caça ilegal, ainda que para a ANPC este tipo de actividade não tenha grande impacto na população de javalis, dado ao seu crescimento exponencial.
A distribuição de selos é responsabilidade exclusiva do ICNF, através de uma aplicação digital. Após o massacre de javalis, veados e gamos na Quinta da Torre Bela (Azambuja) em 2020, João Carvalho diz que os selos começaram a ser vistos como uma autorização para se caçar. Porém, a autorização para caçar não é dada pelos selos, acrescenta este responsável da associação, mas sim pela aprovação dos planos anuais de exploração das zonas de caça.
Comem de tudo
Os prejuízos na agricultura provocados por javalis podem chegar aos milhares de euros. Na campanha de milho de 2021, ultrapassaram os 500 mil euros, numa estimativa da Associação de Produtores de Milho e Sorgo de Portugal.
“Tenho receio em investir no cultivo devido aos prejuízos e à presença diária dos javalis na minha propriedade”, conta Rui Veríssimo, agricultor com terrenos de milho em Alvalade de Sado. Diz que, numa área de 30 hectares, os prejuízos provocados pelos javalis se encontram entre os dez mil e os 15 mil euros. As queixas não são apenas devido à destruição das plantações, mas também devido à segurança dos trabalhadores e equipamentos que são destruídos durante a passagem dos javalis, especialmente as sondas de rega.
Apesar do desânimo, este ano Rui Veríssimo reconhece ter recebido mais apoio por parte das entidades responsáveis para combater este problema. Tem tido as autorizações do ICNF para o abate.
Javalis em Mafra PATRÍCIA MARTINS |
Para além da destruição dos campos, os javalis (Sus scrofa) podem tornar-se um perigo para a restante fauna e flora selvagens. Sendo omnívoros, são animais com uma dieta alimentar menos restrita, comendo tudo ou de tudo. “São necrófagos e têm um comportamento predatório, nomeadamente de animais que consigam alcançar, como é o exemplo dos coelhos na fase reprodutiva. As coelhas fazem tocas de parição, superficiais, com cerca de meio metro de profundidade e tapadas apenas com ervas. Devido a um olfacto apurado, os javalis detectam estas tocas e alimentam-se dos coelhos acabados de nascer”, explica João Carvalho.
“O mesmo acontece com ninhos de perdizes e de patos, por exemplo, porque os ovos são bastante apetecíveis para um javali”, acrescenta o caçador, dizendo que também há relatos de produtores de ovinos a queixarem-se de ataques a borregos ou até ovelhas. Após o parto, a placenta das ovelhas fica exposta, o que as torna vulneráveis ao ataque de javalis com o intuito de se alimentarem. Este comportamento predatório acontece especialmente entre a Primavera e o Verão, altura do ano em que os animais se reproduzem.
Acidentes rodoviários
Além da fauna e da flora, os javalis podem representar perigo para a vida humana. Por exemplo, a serra da Arrábida – local de grande biodiversidade com espécies endémicas existentes apenas em Portugal – tem sido especialmente ameaçada pelo excesso de javalis. O presidente do Clube da Arrábida, Pedro Vieira, teme o ataque a pessoas: “É um animal selvagem, com instinto selvagem de proteger o seu território e especialmente as suas crias. Quando um javali ataca, pode causar a morte.”
Além do possível confronto dos animais com pessoas, os javalis são um perigo na estrada. O Clube da Arrábida já apresentou várias reclamações junto da empresa Infra-estruturas de Portugal (IP), da Câmara de Municipal de Setúbal e do ICNF, para que fosse colocada a sinalética necessária ao longo das estradas da serra da Arrábida. Porém, Pedro Vieira relembra que “a sinalética apenas informa, não garante que um javali não atravesse a estrada e seja atropelado, sendo grande o dano na viatura”.
Serra da Arrábida NUNO OLIVEIRA |
No relatório “Monitorização da Mortalidade de Fauna nas Estradas da Infra-estruturas de Portugal”, de 2021, dá-se conta de que no ano passado houve 60 javalis atropelados. Identificaram-se ainda as zonas de maior ocorrência de javalis (e cervídeos) atropelados desde 2010, ano em que começou o Programa de Monitorização da Mortalidade de Fauna da IP, o que dá a indicação das áreas onde é prioritário intervir para alertar os condutores do perigo e equacionar medidas para reduzir o risco de colisão com os animais, como passagens por baixo da estrada.
“Destacam-se em particular, pelos valores elevados de ocorrências, as EN114, EN4 e EN18 em Évora, o IC1 e o IC33 e Setúbal, e a A23 em Santarém”, lê-se no relatório. Ainda há poucos dias (25 de Agosto) chegava a notícia da morte de um motociclista de 45 anos em colisão com um javali na zona de Évora.
Para o presidente do Clube da Arrábida, o problema dos javalis veio para ficar, mas pode ser controlado não só através de esperas. “É necessário fazer todos os esforços possíveis e desenvolver mais medidas para evitar que os javalis se aproximem dos locais de presença humana”, defende Pedro Vieira.
“Nas praias, já foram colocados caixotes de lixo enterrados, os moloks, que evitam que os javalis rebentem os sacos a meio da noite e se alimentem”, conta Pedro Vieira. “Apesar de atenuado, o problema permanece, porque os contentores não são recolhidos no final do dia, mas no dia seguinte. Deve haver uma mudança no hábito de recolha do lixo para que se previna a presença dos javalis junto aos caixotes e às pessoas”.
Já João Carvalho chama a atenção para o facto de os javalis remexerem o solo com o focinho e defecarem. “Os javalis reviram os solos e tornam-nos mais férteis. Mas muitas das espécies existentes na serra da Arrábida não necessitam deste tipo de solo, logo muitas delas não sobrevivem. Sobretudo as plantas da nossa flora estão a ser destruídas com o excesso de javalis”, indica, chamando a atenção para outra questão. “Os javalis transportam sementes nas fezes e no pêlo. Estas sementes, muitas vezes, não fazem parte da flora em questão. O que acontece é que começam a surgir novas espécies em locais desadequados – as chamadas ‘plantas invasoras’”.
Por ser uma espécie de suíno selvagem, sobre o javali pende ainda a ameaça da peste suína africana. Têm-se registado casos na fronteira entre a Alemanha e França. Até há pouco tempo, a doença apenas se verificava em países da Europa de Leste, como a Polónia e a República Checa. O receio é o de que a doença chegue à Península Ibérica, razão aliás invocada pelo ICNF, tal como a minimização de danos em culturas agrícolas e florestais, para se proceder ao controlo da densidade da espécie até 30 de Setembro.
A preocupação com a peste suína africana consta no resumo do estudo da Universidade de Aveiro, que menciona a evolução recente da doença na Europa e o facto de o javali ser considerado um dos mais importantes reservatórios de doenças infecto-contagiosas.
“A peste suína africana colocará em causa toda a suinicultura em Portugal, um sector muito importante. Irá criar de imediato um corte nas exportações”, teme, por sua vez, João Carvalho. “Além disso, colocará em causa a montanheira, que é toda a produção de porcos em regime extensivo, nos montados de sobro e de azinho. Tanto portugueses como espanhóis, utilizam o território português para engordar porcos de montanheira [com bolota], para depois fazerem presuntos, por exemplo.”
Enquanto se não for traçada uma gestão sustentável dos javalis, o mais certo é que os encontros indesejados entre esta espécie e as pessoas continuem.
Texto editado por Teresa Firmino
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