Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Peripécias de um Penalbilhas na Escola Industrial de Bragança - PREFÁCIO

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Este é um relato de factos verídicos de um colega que tive em Bragança nos anos lectivos de 1972/73 e 1973/74, e que se tornou no meu maior amigo. Em abono da verdade, nunca mais nos vimos o que,  para mim, é uma dor de alma, que ainda hoje me dói essa falta. Como eu gostaria de o encontrar um dia e relembrarmos tantas peripécias (e loucuras) que fizemos juntos! Há amigos – tal como amores – que nunca esquecemos, por mais anos que vivamos.
    Bom... Deixemo-nos de lamechices e passemos aos factos:
    Por volta das duas horas da tarde, do dia seis de outubro de 1972, num dia cinzento de sexta-feira, embora não muito fria, eis que desce do comboio na estação de Bragança, na Av. João da Cruz,  um penalbilhas bem aparentado, vindo de Carvalhais, uma aldeia do Concelho de Mirandela.    Mostrava-se todo “ intchitcharrado “, feito taininhas, com a melhor roupa que tinha: calças de fazenda à boca de sino, de cor cinza, em espinha, com bainha, sapatos de tacão alto, uma camisa às riscas, um pulower de lã azul escuro, feito à mão e uma casaca  “ Jeans “ já coçada, como era moda. Por cima de tudo, usava um sobretudo de Azul antracite,  ligeiramente por baixo dos joelhos. Usava-o com a gola levantada, o que lhe dava uma certo ar de  intelectual e de rebeldia. O cabelo, bem cuidado à Beatle e com risca ao lado, era castanho claro, a cair-lhe pelos ombros. Levava uma mala vermelha de napa e umas capas de couro, com a esfinge do Eça de Queirós para os livros, já toda ensebada pelo suor. Vinha com ele o seu irmão, apenas um ano e dois meses mais velho, que já estudara em Bragança no ano anterior e que tinha reprovado.
       Iria estudar no primeiro ano do SPI – Secção Preparatória aos Institutos Industriais, na Escola Industrial e Comercial de Bragança. Foi morar para a rua “F“, no bairro da Estação, numa casa particular que alugava quartos com cama, mesa e roupa lavada, quase paredes meias com a cadeia e perto da Escola Industrial. O quarto era dividido pelo irmão mais velho e por um rapaz da sua aldeia, que era electricista na Câmara de Bragança, emprego arranjado pelo então e  estimado  Governador Civil, Dr. Abílio Leonardo, a pedido do Presidente da Câmara de Mirandela, seu amigo. Por azar, viria a morrer electrocutado com apenas vinte e dois anos, precisamente num poste da Av. João da Cruz.  (Descansa em paz, Toninho Machado). O quarto era amplo, com janela e varanda. Além dos três, havia mais dois hóspedes, uma filha que estudava no Magistério, a senhoria – viúva, de Carrazeda – e um filho deficiente, resultado de uma meningite. Um rapaz incrível, com uma vocação extraordinária para a representação, chamado Ângelo. Andava sempre apaixonado por alguma rapariga e à noite, representava para elas a declarar-lhe o seu amor: ajoelhava-se e chorava mesmo de verdade. Era um teatro sublime!
        Normalmente saía todas as noites e eles, cheios de fome, esperavam ansiosamente por ouvi-lo chegar. Quando a porta se fechava, tossiam convulsivamente. Sem abrir a porta, encostava a cara e dizia-lhes em voz baixa: “ ´Stende assossegados. Já bos entendi”.  E eles respondiam-lhe, também em voz baixa: “Diga, b´zinha. C´mo disse, disse bem...”Daí a pouco levava um pedaço de pão com manteiga para cada um, sem a Mãe saber.
     Tinham direito a um banho semanal de água quente.
      A casa era quase  paredes meias com a cadeia e muito perto da Escola. O penalbilhas conseguia ouvir o toque da campainha  para a entrada. Saía  à pressa quando ouvia a campainha e ainda conseguia chegar a tempo!  Fora o irmão, que já tinha estado em Bragança no ano anterior, que negociara as condições e o preço. Uns dias depois de instalados, a filha disse muito aflita à Mãe: “Ó Mãe! Isto é gente fina, que num bai parar aqui munto tempo”. “ Atão ´stibo aqui o rapaz mais do qu´uma bez e só agora é que dizes isso?!” “ Pois...só agora é que bi o outro!” – Disse referindo-se ao penalbilhas. Na verdade, o taininhas, além de ser bem afeiçoado, tinha modos distintos e elegantes. Por natureza, e devido ao seu feitio tímido e de  modos delicados e finos, distinguia-se da maioria. Era um rapaz ponderado, fino, educado e atraente, para aquele meio sub-urbano e meio sub-rural. Desde cedo se impôs pelos seus modos finos e recatados e pela sua cultura, acima da média. (Também, éramos quase todos uns brutinhos e, em terra de cegos, quem tem um olho é Rei!). O malandro entrou em pezinhos de lã, sossegado no seu canto e desde cedo cativou todos os colegas. Não era propriamente bonito – eu próprio me achava mais bonito -, mas tinha o seu quê de cativante. O porte, o sorriso infantil e malandro, simples e sedutor, o modo de andar e de falar... Era um personagem de quem todos gostávamos e admirávamos. Eu próprio, confesso, tornei-me no seu maior e fiel amigo logo após duas semanas. No entanto, cedo começou a pôr as garras de fora e a dominar com a sua simplicidade.
     Levava nos olhos claros e limpos, o deslumbramento de uma criança indefesa e intacta e uma vontade férrea em explorar o que se lhe apresentava pela frente. Tudo para ele era idílico e fantástico. Haveria de conquistar o mundo de dentes brancos e sorrisos amarelos. Era como se tivesse vivido sempre na penumbra e o empurrassem, repentinamente, para a luz do sol. Ao frio  e ao calor já ele estava habituado, mas não aos sorrisos (alguns tontos)  tão promissores por parte das raparigas, belas e selvagens, como as gazelas na savana.
     As meninas das aldeias – e também das vilas -, tristes e oprimidas, soltavam as amarras e até se arrojavam a uma roupa mais “moderna“ e a uma ou outra pintura, para voltarem ao normal quando iam passar algum fim de semana ou as férias a casa. Aí suspiravam pela liberdade e o anonimato da cidade e por algum jovem que as atraía. Sonhavam com as horas passadas no Flórida, no Cruzeiro, no Chave D´Ouro, no Poças ou na esplanada do Príncipe Negro e...um namoro breve e inocente para a estrada que dava para a Pousada.
    Quase todo(a)s estudavam apenas o suficiente para que se não cumprisse a ameaça dos Pais: “ No ano em qu´apanhares a raposa, boltas p´ra casa. Num nos  andemos a sacrificar pra nada”.  Era um sonho com prazo de validade, por isso o queriam viver sofregamente. A maioria já tinha descoberto o seu próprio corpo; era agora tempo de descobrir o do outro.
    Logo nos primeiros dias de aula, o penalbilhas se destacou pela compostura e conhecimentos. Era um jovem culto, que devorava livros. (Certa vez, um tio que veio de férias do Canadá, deu a cada um dos irmãos determinada quantia em dinheiro: o mais velho gastou-o em cigarros e noutras inutilidades; o mais novo em bilhar e guloseimas e ele foi à livraria e gastou tudo em livros!). Era uma turma de dezassete bardinos, havendo apenas uma rapariga – a Natália – muito sossegada e muito respeitada por todos. A Natália tinha uns lindos e lisos cabelos finos e loiros, que lhe caíam pelas costas. Na altura da votação para eleger o chefe de turma, escolheram-no como sub-chefe, tendo ganho um rapaz extraordinário, que era repetente e amicíssimo do irmão, o Sebastião, que vivia no Bairro S. João de Brito, filho de um Sargento.  Havia um Zé Alberto que nos fazia rir a todos,  com esgares faciais incríveis, um outro Zé Alberto, culto e inteligente de Izeda, tratado como “corrécio de Izeda“ e até se dizia que era filho de um padre!, o Fidalgo, de Lagoaça, o  Daniel Barreira de Serapicos, o “Santcha“,  o Simão, que era o bobo da turma e que sofria do que se chama agora de “Bullying”, o Raul, de São Tomé e Príncipe, penso que o único aluno negro da escola, eu, Luís Abel, melhor amigo de penalbilhas, os Meninos, primos vindos da Quinta da Macieirinha, da aldeia de Carviçais e dos restantes já não me lembro. Recordo que um dos primos Meninos era baixinho e tinha a  alcunha de Bobby Charlton,  por usar o cabelo penteado para trás e o outro de elevada estatura, mais velho, a quem chamavam o “caibro“. Costumavam passear os dois na Av., mas sempre um em cada lado do passeio; nunca juntos. Também lhes chamavam por isso, os “GNR“.  Eu, que sou do Larinho, do concelho de Moncorvo, fiquei logo amigo do Penalbilhas  ao segundo dia. A partir daí, tornamo-nos nos melhores amigos e quando um dizia mata, o outro dizia logo esfola. Eu era um calaceiro, que estudava apenas para os mínimos, mas o penalbilhas, desde o primeiro dia, estudava afincadamente, todos os dias. Era raro sair à noite. Ia logo para casa após as aulas.
    Depois do jantar, enfiava a cabeça entre as mãos, a ouvir música num gravador de fita, que o Raúl lhe gravava propositadamente para ele, fumando cigarro após cigarro e estudava concentradamente de tal modo, que quando estudava a mesma matéria pela segunda vez, já a sabia de cor e salteado. (Não tinha a fama – até porque ninguém o conhecia – de um aluno do Liceu, chamado Touças que, segundo diziam, memorizava tudo à primeira leitura!
 São as incongruências dos génios!
    Nunca  o lapantim gostou de regras  e de chefias. Gostava mais de cumprir do que obedecer; era mais cumpridor do que obediente!
    Destacou-se logo nos primeiros testes a todas as disciplinas – excepto a línguas. Bom aluno a  Geografia e  História e o melhor a Ciências, a Português e a Matemática e excelente a Físico-Química. O Professor de Português e Francês chamava-se qualquer coisa... Carvalho, mas tinha a alcunha do “Lula”.  Era alto, ainda novo, já com falta de cabelo, sempre elegantemente vestido, nunca esquecendo o lenço à volta do pescoço. O de Matemática era o Dr. Genésio, o mais respeitado, cuja esposa dava aulas na Magistério e pertencia à Direcção do Clube Desportivo. Dispensava o penalbilhas das aulas, para  poder ir treinar. Era um fraquíssimo defesa esquerdo, mas jogava para se safar das aulas de Matemática e viajar com a equipa nalguns fins de semana. (Lembra-me de terem levado  uma cabazada de sete a zero com o Varzim, na Póvoa!). A Professora de Ciências era a esposa do Director da Escola, o ilustre e culto Dr. Hirondino da Paixão Fernandes, deputado da Assembleia Nacional, Homem de cultura e justo. A par das exímias qualidades pedagógicas, a  Senhora tinha duas características: via mal e ouvia pior. Uma vez, o Fidalgo de Lagoaça, estava a copiar num teste (como o fazíamos quase todos!) e quando ela se aproximou, atrapalhou-se e deixou cair o livro ao chão, fazendo algum barulho. ” O que foi isso, rapaz?!” Perguntou. “Foi a borracha que caiu, Senhora Doutora“ – respondeu a gaguejar. “Bom...bom. Então apanha-a lá”.  Quando fazíamos demasiado barulho, ameaçava-nos: “ Olhem que me vou queixar ao chefe“.  A Professora de Física - Química era a Doutora Aurora, solteira, do Algarve e a mais querida de todos.  Mulher elegante, bem vestida,  com o cabelo sempre impecável. Todos gostavam daquela simpática e afável professora. Com o correr do tempo e ganha alguma intimidade, quando nalguma  aula  a matéria já estava dada, o penalbilhas vestia o seu casaco comprido, punha os seus óculos de sol e a carteira ao ombro e fazia passagem de modelos, para gáudio de todos e dela própria.  
   “ Ai meu Deus, se entra aqui alguém!” – Dizia com as mãos na cabeça e de boca aberta.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

Sem comentários:

Enviar um comentário