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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Viagens — 22 - Telha de igreja (continuação)

 A expressão ‘telha de igreja’, ao significar a profissão (não tenhamos medo da palavra) do clero, coloca os padres em plano de igualdade com quaisquer outros cidadãos. Isto do ponto de vista económico, claro: se têm necessidades, precisam de meios com que as satisfazer.
Mas há um aspecto em que os padres não estão em plano de igualdade: o plano da sexualidade e das respostas a dar-lhe. Ao impor-lhes o celibato eclesiástico, a igreja deixa o padre em situação delicada e frágil. Um padre em luta com as suas pulsões genesíacas é uma presa fácil da murmuração, e portanto da literatura oral, e, em algumas contas é retratado como prevaricador sexual. Na verdade, as contas não os poupam. Pergunto-me a razão disso, e concluo que deve ser consequência do singular e desumano preceito que obriga o padre ao celibato. Sendo homem como os outros, sujeito à mesma tirania da carne, o padre, a quem os deleites de alcova são vedados, é ipso facto candidato a suspeito — e sabe Deus quantas vezes inocentemente — de se entregar clandestinamente ao culto de Vénus e de fazer ouvidos de mercador à exortação de São Paulo: “Não reine o pecado no vosso corpo mortal de maneira que obedeçais às suas concupiscências.” O facto de, na memória colectiva, andarem bem vivos exemplos não raros de padres envolvidos, alguns assumidamente, com governantas e outras parceiras, ajuda a generalizar a acusação. Casos mais escandalosos, como o do célebre abade de Trancoso, Francisco da Costa, de quem consta que foi pai de 299 filhos, reforçam a ideia de que todo o padre é um potencial pecador carnal. E não falta quem acuse as próprias mulheres de os assediarem e fazerem cair, sensíveis ao magnetismo da sexualidade reprimida dos padres. O mito de Eva, afinal.
O segundo dos cinco mandamentos do padre recolhidos pelo Abade de Baçal junto do povo, diz claramente: 2° Tomar a melhor igreja e a melhor rapariga de todo o mundo.
O que não significa que não haja, da parte do povo, um certo grau de compreensão. É esse o sentido desta quadra, que insinua que o padre prevaricador pode contar com a tolerância da própria hierarquia:

O padre quando namora
C’uma mão tapa a coroa.
Namora, padre, namora,
Que Roma tudo perdoa.

A conta seguinte põe-nos frente a frente com aquilo que um padre está disposto a repartir com uma mulher que acaba de enviuvar.
Era uma vez um homem que morreu. Enquanto o estavam a enterrar, desgraciava-se a viúva:
− Ó homem da minha alma, que tão cedo me deixas sozinha neste mundo! Quem me há-de agora ajudar a beber o vinho das nossas vinhas?
E respondia o padre, a abanar a caldeirinha da água benta, cantarolando:
− Eu e tu e tu e eu! 
Tornava a mulher:
− E quem me há-de agora ajudar a comer as carnes que estão na salgadeira?
Queria ela dizer os presuntos e os salpicões.
E o padre:
− Eu e tu e tu e eu! 
E a mulher:
− E quem me há-de ajudar a romper os meus lençóis de linho?
E o padre: 
− Eu e tu e tu e eu! 
Por fim, dizia a viúva:
− E quem me há-de ajudar a cavar as vinhas e a lavrar as terras que me deixas?
E o padre, muito lesto: 
− Libera nos dominé! 
O que nos faz rir nesta conta? 
No plano do conteúdo, o facto de o padre aceitar partilhar com a viúva a parte agradável da herança (o vinho, a carne e os lençóis de linho, leia-se: os folguedos do leito) mas renegar a parte má, isto é, as canseiras da lavoura. Ou seja: a escolha óbvia, aquilo que o povo do Nordeste ironicamente comenta com um “ai não, que é mosca”.
No plano fónico, é também risível o facto de as respostas do padre — ‘eu e tu e tu e eu’ e ‘libera nos, domine’ — terem ambas sete sílabas, sendo pois entoadas com a mesma música, inspirada em momentos do culto. Deve ainda acrescentar-se que qualquer frase que arremede o latim litúrgico costuma ter um efeito hilariante.

(Continua.)

A. M. Pires Cabral

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