Que terá assim de especial a telha de igreja, para entrar no título de um capítulo deste livro de contas? Tem isto: sempre goteja. O povo assim o diz num provérbio: “Telha de igreja sempre goteja”. Ou seja, as outras telhas podem gotejar ou não, conforme a chuva, mas a da igreja goteja sempre.
É mais um provérbio que não deve ser tomado à letra. Quer dizer: é uma metáfora — melhor, a combinação de duas metáforas. E aproveito este ensejo para dizer a admiração que me causa a extraordinária capacidade do povo para criar e se exprimir por metáforas. Querem outro exemplo?
Socorramo-nos deste texto da obra Adágios portugueses reduzidos a lugares comuns, publicada em 1651 por um padre alentejano de nome António Delicado.
Um rei quis experimentar o juízo de três conselheiros que tinha, e indo a passear com eles encontrou um velho a trabalhar num campo, e saudou-o:
— Muita neve vai na serra!
Respondeu o velho com a cara alegre:
— Já, senhor, é tempo dela.
Os conselheiros ficaram a olhar uns para os outros, porque era Verão, e não percebiam o que o velho e o rei queriam dizer na sua. O rei fez-lhe outra pergunta:
— Quantas vezes te ardeu a casa?
— Já, senhor, por duas vezes.
— E quantas contas ser depenado?
— Ainda me faltam três vezes.
Mais pasmados ficaram os conselheiros; o rei disse para o velho:
— Pois se cá te vierem três patos, depena-os tu.
— Depenarei, real senhor, porque assim o manda.
O rei seguiu seu caminho a mofar da sabedoria dos conselheiros, e que os ia despedir do seu serviço se lhe não soubessem explicar a conversa que tivera com o velho. Eles, querendo campar por espertos, foram ter com o velho para explicar a conversa; o velho respondeu:
— Explico tudo, mas só se se despirem e me derem a roupa e o dinheiro que trazem.
Não tiveram outro remédio senão obedecer; o velho disse:
— Olhem: “Muita neve vai na serra”, é porque eu estou cheio de cabelos brancos; “Já é tempo dela”, é porque tenho idade para isso. “Quantas vezes me ardeu a casa?” é porque diz lá o ditado: “Quantas vezes te ardeu a casa? Quantas casei a filha.” E como já casei duas filhas sei o que isso custa. “E quantas vezes conto ser depenado?” é que ainda tenho três filhas solteiras e lá diz o outro: Quem casa filha depenado fica.
Agora os três patos que me mandou o rei são vossas mercês, que se despiram e me deram os fatos para explicar-lhes tudo.
Os conselheiros do rei iam-se zangando, quando o rei apareceu, e disse que se eles quisessem voltar para o palácio vestidos que se haviam ali obrigar a darem três dotes bons para o casamento das outras três filhas do velho lavrador.
Está bom de ver que o rei e o lavrador falam por metáforas: a neve são os cabelos brancos, a serra á a cabeça, o arder a casa é o casar-se uma filha, etc. E também está bom de ver que os conselheiros do rei se limitavam a um uso literal da linguagem, o que significa que a linguagem metafórica, não sendo universalmente usada e compreendida, é, ipso facto, uma forma superior de linguagem.
Se estiver um dia de chuva e dissermos que telha de igreja sempre goteja estamos provavelmente a expressar uma realidade crua, aliás comum à generalidade das telhas, que, todas elas, escorrem água quando chove. Mas, graças a um mecanismo mental que permite como que uma translação de sentido, podemos subir do literal ao metafórico, e fazer com que ‘telha de igreja’ deixe de ser cada um dos elementos físicos constitutivos da cobertura dos edifícios e passe a significar ‘modo de vida do padre’. Do mesmo modo, e graças ao tal mecanismo mental, ‘gotejar’ deixa de ser o mesmo que pingar, escorrer a água da chuva e passa a significar ‘dar rendimento’. Metáforas, portanto.
Bem espremidas, pois, as duas metáforas, quer-se com esse provérbio dizer que o múnus do padre é um modo de vida como qualquer outro e que o padre, como qualquer outra pessoa, precisa de rendimentos para se sustentar. O 5.º e último mandamento da Igreja estipula que os cristãos devem contribuir para as despesas do culto e para a sustentação do clero. É aí que entram conceitos como côngrua e direitos de estola, ou de pé-de-altar, como também se diz.
É mais um provérbio que não deve ser tomado à letra. Quer dizer: é uma metáfora — melhor, a combinação de duas metáforas. E aproveito este ensejo para dizer a admiração que me causa a extraordinária capacidade do povo para criar e se exprimir por metáforas. Querem outro exemplo?
Socorramo-nos deste texto da obra Adágios portugueses reduzidos a lugares comuns, publicada em 1651 por um padre alentejano de nome António Delicado.
Um rei quis experimentar o juízo de três conselheiros que tinha, e indo a passear com eles encontrou um velho a trabalhar num campo, e saudou-o:
— Muita neve vai na serra!
Respondeu o velho com a cara alegre:
— Já, senhor, é tempo dela.
Os conselheiros ficaram a olhar uns para os outros, porque era Verão, e não percebiam o que o velho e o rei queriam dizer na sua. O rei fez-lhe outra pergunta:
— Quantas vezes te ardeu a casa?
— Já, senhor, por duas vezes.
— E quantas contas ser depenado?
— Ainda me faltam três vezes.
Mais pasmados ficaram os conselheiros; o rei disse para o velho:
— Pois se cá te vierem três patos, depena-os tu.
— Depenarei, real senhor, porque assim o manda.
O rei seguiu seu caminho a mofar da sabedoria dos conselheiros, e que os ia despedir do seu serviço se lhe não soubessem explicar a conversa que tivera com o velho. Eles, querendo campar por espertos, foram ter com o velho para explicar a conversa; o velho respondeu:
— Explico tudo, mas só se se despirem e me derem a roupa e o dinheiro que trazem.
Não tiveram outro remédio senão obedecer; o velho disse:
— Olhem: “Muita neve vai na serra”, é porque eu estou cheio de cabelos brancos; “Já é tempo dela”, é porque tenho idade para isso. “Quantas vezes me ardeu a casa?” é porque diz lá o ditado: “Quantas vezes te ardeu a casa? Quantas casei a filha.” E como já casei duas filhas sei o que isso custa. “E quantas vezes conto ser depenado?” é que ainda tenho três filhas solteiras e lá diz o outro: Quem casa filha depenado fica.
Agora os três patos que me mandou o rei são vossas mercês, que se despiram e me deram os fatos para explicar-lhes tudo.
Os conselheiros do rei iam-se zangando, quando o rei apareceu, e disse que se eles quisessem voltar para o palácio vestidos que se haviam ali obrigar a darem três dotes bons para o casamento das outras três filhas do velho lavrador.
Está bom de ver que o rei e o lavrador falam por metáforas: a neve são os cabelos brancos, a serra á a cabeça, o arder a casa é o casar-se uma filha, etc. E também está bom de ver que os conselheiros do rei se limitavam a um uso literal da linguagem, o que significa que a linguagem metafórica, não sendo universalmente usada e compreendida, é, ipso facto, uma forma superior de linguagem.
Se estiver um dia de chuva e dissermos que telha de igreja sempre goteja estamos provavelmente a expressar uma realidade crua, aliás comum à generalidade das telhas, que, todas elas, escorrem água quando chove. Mas, graças a um mecanismo mental que permite como que uma translação de sentido, podemos subir do literal ao metafórico, e fazer com que ‘telha de igreja’ deixe de ser cada um dos elementos físicos constitutivos da cobertura dos edifícios e passe a significar ‘modo de vida do padre’. Do mesmo modo, e graças ao tal mecanismo mental, ‘gotejar’ deixa de ser o mesmo que pingar, escorrer a água da chuva e passa a significar ‘dar rendimento’. Metáforas, portanto.
Bem espremidas, pois, as duas metáforas, quer-se com esse provérbio dizer que o múnus do padre é um modo de vida como qualquer outro e que o padre, como qualquer outra pessoa, precisa de rendimentos para se sustentar. O 5.º e último mandamento da Igreja estipula que os cristãos devem contribuir para as despesas do culto e para a sustentação do clero. É aí que entram conceitos como côngrua e direitos de estola, ou de pé-de-altar, como também se diz.
(Continua.)
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