O aldeão de outros tempos — este de que as contas falam — levava uma existência prenhe de inquietações e medos, quando não de terrores, a bem dizer, do berço à tumba.
Desde logo, atormentavam-no as dúvidas sobre o que encontraria quando fechasse de vez os olhos. Não é que duvidasse de que existe um além. Mas esse além era-lhe muito mal explicado nas homilias. O medo das labaredas eternas do inferno sobrepunha-se à esperança de conseguir um lugar à mão direita de Deus. Por muito que se esforçasse por ganhar o céu, a poder de missas, hóstias, orações e esmolas, restava sempre a incerteza sobre o seu destino além-túmulo. Na idade avançada, visões do inferno povoavam-lhe a noite de terrores. O infalível altar das almas, na igrejinha do lugar, e as pregações cominatórias na missa da festa anual encarregavam-se de lhe mostrar o fogo pavoroso e inextinguível que o esperava ali ao dobrar da esquina que já não vinha longe.
Mas não precisava de subir à esfera da metafísica para se inquietar e sofrer. As contingências terrenas apertavam-lhe também o cerco: ele era a fome, ele era o frio, ele era a doença, ele eram as desgraças que lhe fustigavam os dias, mormente aquelas sobre as quais sentia não ter qualquer espécie de domínio e perante as quais se sentia indefeso. Entre estas, estava — ora, quem mais havia de ser? O senhor escrivão, que acordava já com a prece na boca: “Deus desavenha quem nos mantenha.» O escrivão, que em sentido próprio era o funcionário judicial que o citava para julgamento, está aqui no significado expandido de todo e qualquer agente das duas instituições humanas que o aldeão mais temia: a fazenda e a justiça. Os dois papões.
A fazenda alimentava-se dos impostos e os impostos eram dinheirinho muito chorado, que lhe era extorquido à má-fila. Pagava a décima — termo que ainda se vai ouvindo — com a mesma boa vontade e entusiasmo com que as ovelhas se prestam à tesoura do tosquiador. Não deixava de ter razão para a má vontade, já que não via aplicado na sua aldeia o dinheiro das tributações e continuava a viver em condições sanitárias muito problemáticas. Lá de longe a longe, quando o rei fazia anos, a câmara inaugurava um melhoramento: uma bica ou um tanque de lavar ou o calcetamento duma rua, e viva o velho. De forma que, contrariado embora, pagava a décima e não bufava, ou então, se bufava, bufava baixinho, com medo de que, ouvindo-o, o senhor escrivão lhe dobrasse a dose.
Quanto a justiça, ficaria tudo dito com uma praga definitiva: ‘Oxalá te caia a justiça em casa.” A justiça é vista como uma calamidade em que ninguém se quer ver envolvido, com a possível excepção do velho Leonardo — personagem dum conto de Miguel Torga, justamente intitulado “Justiça” — que passou a vida em contendas de tribunal. Miguel Torga dá ao conto um desfecho magistral. Ora leiam:
Desde logo, atormentavam-no as dúvidas sobre o que encontraria quando fechasse de vez os olhos. Não é que duvidasse de que existe um além. Mas esse além era-lhe muito mal explicado nas homilias. O medo das labaredas eternas do inferno sobrepunha-se à esperança de conseguir um lugar à mão direita de Deus. Por muito que se esforçasse por ganhar o céu, a poder de missas, hóstias, orações e esmolas, restava sempre a incerteza sobre o seu destino além-túmulo. Na idade avançada, visões do inferno povoavam-lhe a noite de terrores. O infalível altar das almas, na igrejinha do lugar, e as pregações cominatórias na missa da festa anual encarregavam-se de lhe mostrar o fogo pavoroso e inextinguível que o esperava ali ao dobrar da esquina que já não vinha longe.
Mas não precisava de subir à esfera da metafísica para se inquietar e sofrer. As contingências terrenas apertavam-lhe também o cerco: ele era a fome, ele era o frio, ele era a doença, ele eram as desgraças que lhe fustigavam os dias, mormente aquelas sobre as quais sentia não ter qualquer espécie de domínio e perante as quais se sentia indefeso. Entre estas, estava — ora, quem mais havia de ser? O senhor escrivão, que acordava já com a prece na boca: “Deus desavenha quem nos mantenha.» O escrivão, que em sentido próprio era o funcionário judicial que o citava para julgamento, está aqui no significado expandido de todo e qualquer agente das duas instituições humanas que o aldeão mais temia: a fazenda e a justiça. Os dois papões.
A fazenda alimentava-se dos impostos e os impostos eram dinheirinho muito chorado, que lhe era extorquido à má-fila. Pagava a décima — termo que ainda se vai ouvindo — com a mesma boa vontade e entusiasmo com que as ovelhas se prestam à tesoura do tosquiador. Não deixava de ter razão para a má vontade, já que não via aplicado na sua aldeia o dinheiro das tributações e continuava a viver em condições sanitárias muito problemáticas. Lá de longe a longe, quando o rei fazia anos, a câmara inaugurava um melhoramento: uma bica ou um tanque de lavar ou o calcetamento duma rua, e viva o velho. De forma que, contrariado embora, pagava a décima e não bufava, ou então, se bufava, bufava baixinho, com medo de que, ouvindo-o, o senhor escrivão lhe dobrasse a dose.
Quanto a justiça, ficaria tudo dito com uma praga definitiva: ‘Oxalá te caia a justiça em casa.” A justiça é vista como uma calamidade em que ninguém se quer ver envolvido, com a possível excepção do velho Leonardo — personagem dum conto de Miguel Torga, justamente intitulado “Justiça” — que passou a vida em contendas de tribunal. Miguel Torga dá ao conto um desfecho magistral. Ora leiam:
− Quer vir, tio Leonardo?
− Não tenho pernas. Se não, bem gostava! Está um dia bendito.
− Bom para semear batatas...
− Quais batatas! Bom mas é para ir pôr uma demanda. Com um sol destes, eram favas contadas...
O aldeão execrava a justiça por mais de um motivo. Em primeiro lugar, talvez, porque lhe reprimia e disciplinava os instintos, cerceando-lhe a liberdade para — é só um exemplo —espancar ou mesmo esfaquear um vizinho com quem andasse em litígio.
Depois, havia sempre aquele temor dos erros judiciários, que podiam atirar com um inocente para as Pedras Negras — símbolo sinistro do desterro em terras de Angola.
Por fim, era bem conhecida a venalidade de muitos juízes e funcionários judiciais, cujas sentenças eram proporcionadas às peitas recebidas.
Este respeito quase supersticioso deve vir de tempos muito antigos, anteriores mesmo àqueles em que almotacés e beleguins demandavam as terras para depenar o contribuinte e executar no delinquente as justiças d'el-rei. Ambas as coisas — impostos e justiça — eram discricionárias e irascíveis, conforme rezam pelo menos dois ditados — “Lá vão leis onde querem reis” e “A lei tem mangas e manguitos” —, que satirizam a fragilidade e a ductilidade das leis..
Com o rodar dos anos, a prepotência de reis e senhores atenuou-se. Hoje já não é possível aceitar poderes discricionários. Mas mantém-se o reflexo atávico de antipatia do povo pelos escrivães, aqueles que mais de perto acolitam o doutor juiz e evocam as ameaças da justiça. Segundo o povo, a oração matinal dos escrivães é: ‘Deus desavenha quem nos mantenha.’ E de um dia muito tempestuoso diz-se: ‘Hoje nasceu algum escrivão!’ E está tudo dito, creio, quanto à sapeira do rústico pelo honrado cargo de escrivão. Quanto ao advogado de acusação, o povo chamava-lhe ‘atarrador’, que provavelmente estará por ‘aterrador’, de ‘aterrar’, isto é meter medo. As manhas dos advogados nos julgamentos; a facilidade com que confundiam testemunhas e réus; a gravidade ritual de todos aqueles senhores vestidos de preto a trocarem vénias; a sobranceria com que era tratado pelos oficiais de diligências eram outros tantos motivos de aflição do pobre aldeão que algum dia se visse entalado na camisa de onze varas que é a justiça.
Há dicionários de pragas, onde se pode ler, por exemplo, “Perseguido da justiça te eu veja até que a tua própria sombra te meta medo”, praga corrente, nestes precisos termos ou equivalentes. Outra praga recorrente em terras de Carção era “Oxalá te caia a justiça em casa”. E o uso do verbo ‘cair’ não é casual: traz consigo a ideia de devastação e ruína. O aldeão considera que casa onde entrou a justiça é como se tivesse ardido. Curiosamente, esta imagem da casa ardida encontra-se também noutro contexto bem diferente. Ouve-se com frequência dizer que quando um homem casa uma filha é como se lhe tivesse ardido a casa.
E basta de considerações. Terminemos esta longa viagem de 24 etapas com um conta em que o povo mostra os seus sntimentos para com os escrivães e quejandos.
Diz que um dia o São Pedro disse ò Criador que não era abantaije niúma ter criado o home e que apostaba em como ele tamém era capaz de fazer um.
− Atão bá, bamos lá a ber essa hab’lidade − disse Nosso Senhor.
E o São Pedro toca a pegar num cibo de barro e a fazer um macareno. Stava tal e qual, mas Nosso Senhor, reparando melhor, disse assim, de caçoada:
«− Olha que bem stá! E atão o coração, onde lo pusestes?
«− Ah, alvidei-me do coração! Não faz mal: faço-lhe um buraco no peito e meto-lho lá.
«− Não, não − atalhou Nosso Senhor. − Deixa-o ficar sem coração. Guarda-se para escrivão ou fiscal.
Quod erat demonstrandum.
E acho que vamos ficar por aqui...
Foi um prazer, Ciao!
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