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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 25 de março de 2023

Viagens — 23 - Telha de igreja... (Continuação)

 Há contas mais afortunadas umas do que outras, claro está. E como se mede a fortuna duma conta? Naturalmente pelo número de versões com que corre. É o caso de uma história que, em linhas gerais, trata da visita do bispo a determinado padre montesinho, com intenção de verificar in loco se são verdadeiras as denúncias que o bispo recebe sobre o viver do padre. á um provérbio que sugere que a presença do  bispo  na terra não é bem-vinda, certamente por obrigar a cerimónias e despesas. É assim: Deus nos livre de fome, peste e guerra e Bispo na terra. 
As circunstâncias obrigam o padre a repartir o leito com sua excelência reverendíssima, e é esta situação equívoca que desde logo se presta a ser glosada em diversos tons, resultando daí por vezes diferenças substanciais que exigem desfechos diferentes, alguns dos quais de grande desaforo.
 Esta história teve a fortuna de ser glosada pelo mais afamado escritor barrosão, grande mestre que faz nos seus livros uso abundante do vernáculo e da malícia. Chamava-se Bento da Cruz. Faleceu em 25 de Agosto de 2015, no Porto, mas está sepultado no coração do seu Barroso — na aldeia que o viu nascer, Peireses. Tive a grande honra de ser seu amigo, e conservo como penhor dessa amizade algumas cartas dele recebidas, assim como autógrafos amistosos em vários livros, que me oferecia em retribuição dos que eu lhe oferecia a ele.
 Bento da Cruz conta a tal história num livro maroto que tem o título de Histórias da Vermelhinha. O Leitor dispensar-me-á de lhe fazer notar as conotações do termo ‘vermelhinha’ e lerá com deleite a saborosa e desenvolta página que se segue. 
Estreia tão auspiciosa valeu ao P.e Cosme a nomeação para cura de Paspalhó, uma das paróquias mais pobres da diocese. Terra pobre, residência pobre. Apenas cozinha e sobrado, ligados por uma varanda. 
P.e Cosme instalou-se como pode e admitiu para governanta uma rapariga nova, forte e ingénua. 
Fatal como o destino, oito dias depois, P.e Cosme e a governanta estavam, como se costuma dizer, de cama e pucarinho. 
O escândalo chegou aos ouvidos do bispo, que subiu a Paspalhó disposto a reconduzir a ovelha tresmalhada ao aprisco do Bom Pastor. 
Ao vê-Io, P.e Cosme caiu das estrelas. 
− Vossa Eminência Reverendíssima por aqui? 
− Chiu! Não façais alarido, P.e Cosme. Vou a Santiago de Compostela incógnito e não quero que a imprensa me descubra. Por isso, escolhi estas veredas. Dais-me guarida, por esta noite? 
− Entrai, Eminência, entrai! 
P.e Cosme introduziu o bispo na cozinha e correu ao sobrado a esconder uma das almofadas que enfeitavam a cama do casal. Depois chamou uma vizinha, cozinheira reformada dum hotel de Braga, para ajudar a fazer a ceia.
Enquanto ceavam, P.e Cosme foi adiantando que, atendendo ao desconforto da residência, onde, até, por desgraça, havia só um leito, uma vez que a criada ia dormir com a vizinha (e aqui P.e Cosme, à surrelfa, empiscou um olhinho cúmplice à cozinheira reformada), Sua Eminência iria dormir a casa do morgado, a quem já mandara aviso, e cujo solar dispunha de aposentos dignos de Sua Reverendíssima. Mas o bispo cortou-lhe a vazada. Que não, senhor. Que dormiriam juntos. Que aproveitariam parte da noite para praticarem sobre os mandamentos da Santa Madre Igreja. 
Finda a ceia, a governanta acompanhou a vizinha, e cura e prelado foram para a cama. Já reclinados no leito, diz o bispo: 
− P.e Cosme, agora que ninguém nos ouve, a sós perante Deus, quero que me diga o que há de verdade acerca duns rumores que por aí correm a seu respeito.
− Que rumores, Eminência? 
− De mancebia com a governanta.
− Oh! Eminência, que grande calúnia! Como Vossa Reverendíssima pode testemunhar, nesta pobre casa só há um leito e a governanta vai todas as noites dormir com a vizinha.
− É então mentira? 
− Juro, por Deus, que me há-de julgar! 
O bispo bateu-lhe paternalmente nas costas.
− Acredito, meu filho! Ainda bem que é mentira. Vamos então dormir. 
Apagaram a candeia e estenderam-se, um ao lado do outro. Dali por um bocado, P.e Cosme, meio tolo com o sono, espeta uma palmada no cu ao bispo e exclama: 
− Quinhas? Tu fechaste as galinhas?
Costuma-se dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. É o que acontece nesta conta, que podia ter o título de “O mentiroso traído pelo sono”. O que nos faz rir é, uma vez mais, como na conta anterior, um confronto, neste caso entre a verdade e a mentira, ou seja, entre o que o padre diz e o que o padre faz. O que nos lembra um bem conhecido provérbio: “Bem prega Frei Tomás; fazei o que ele diz, não façais o que ele faz”.
Por falar em provérbios e sem sarmos do tema deste capítulo, no Nordeste ouvem-se alguns, prenhes de significado e de sarcasmo, envolvendo o padre.
“O padre c’uma mão tapa a c’roa e co’a outra apalpa a moça.” Este provérbio acaba por ser um prolongamento da quadra que se reproduziu acima. É o povo a dizer que não acredita na castidade dos padres.
“Pombos, padres e primos são três coisas que sujam uma casa.” Este provérbio chama a atenção para os perigos que há em um padre frequentar em demasia uma casa: criação de condições que podem levar a situações de ruptura. (O mesmo se aplica ao clero regular: há um provérbio que avisa “A clérigo frade não confies a comadre.”) E o mesmo vale também para primos — e é explicitado pelo que acontece no romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. A única sujidade inocente é a provocada pelos pombos — uma sujidade fisiológica, não uma sujidade moral.
«Como os santos o tenham e os padres lho sintam, tanto lhe cantam até que lho quitam.» Eis outro gracioso provérbio que satiriza a ambição de alguns padres de  obterem riquezas materiais, muitas vezes por métodos pouco recomendáveis. O verbo ‘quitar’ significa precisamente ‘surripiar, tirar de forma ilícita’. E é precisamente de um padre que o povo se socorre para acusar alguém de ganância: “É como o padre Nabiça, que tudo o que vê, tudo cobiça.”

(Continua.)

A. M. Pires Cabral

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