Há contas mais afortunadas umas do que outras, claro está. E como se mede a fortuna duma conta? Naturalmente pelo número de versões com que corre. É o caso de uma história que, em linhas gerais, trata da visita do bispo a determinado padre montesinho, com intenção de verificar in loco se são verdadeiras as denúncias que o bispo recebe sobre o viver do padre. á um provérbio que sugere que a presença do bispo na terra não é bem-vinda, certamente por obrigar a cerimónias e despesas. É assim: Deus nos livre de fome, peste e guerra e Bispo na terra.
As circunstâncias obrigam o padre a repartir o leito com sua excelência reverendíssima, e é esta situação equívoca que desde logo se presta a ser glosada em diversos tons, resultando daí por vezes diferenças substanciais que exigem desfechos diferentes, alguns dos quais de grande desaforo.
Esta história teve a fortuna de ser glosada pelo mais afamado escritor barrosão, grande mestre que faz nos seus livros uso abundante do vernáculo e da malícia. Chamava-se Bento da Cruz. Faleceu em 25 de Agosto de 2015, no Porto, mas está sepultado no coração do seu Barroso — na aldeia que o viu nascer, Peireses. Tive a grande honra de ser seu amigo, e conservo como penhor dessa amizade algumas cartas dele recebidas, assim como autógrafos amistosos em vários livros, que me oferecia em retribuição dos que eu lhe oferecia a ele.
Bento da Cruz conta a tal história num livro maroto que tem o título de Histórias da Vermelhinha. O Leitor dispensar-me-á de lhe fazer notar as conotações do termo ‘vermelhinha’ e lerá com deleite a saborosa e desenvolta página que se segue.
Estreia tão auspiciosa valeu ao P.e Cosme a nomeação para cura de Paspalhó, uma das paróquias mais pobres da diocese. Terra pobre, residência pobre. Apenas cozinha e sobrado, ligados por uma varanda.
P.e Cosme instalou-se como pode e admitiu para governanta uma rapariga nova, forte e ingénua.
Fatal como o destino, oito dias depois, P.e Cosme e a governanta estavam, como se costuma dizer, de cama e pucarinho.
O escândalo chegou aos ouvidos do bispo, que subiu a Paspalhó disposto a reconduzir a ovelha tresmalhada ao aprisco do Bom Pastor.
Ao vê-Io, P.e Cosme caiu das estrelas.
− Vossa Eminência Reverendíssima por aqui?
− Chiu! Não façais alarido, P.e Cosme. Vou a Santiago de Compostela incógnito e não quero que a imprensa me descubra. Por isso, escolhi estas veredas. Dais-me guarida, por esta noite?
− Entrai, Eminência, entrai!
P.e Cosme introduziu o bispo na cozinha e correu ao sobrado a esconder uma das almofadas que enfeitavam a cama do casal. Depois chamou uma vizinha, cozinheira reformada dum hotel de Braga, para ajudar a fazer a ceia.
Enquanto ceavam, P.e Cosme foi adiantando que, atendendo ao desconforto da residência, onde, até, por desgraça, havia só um leito, uma vez que a criada ia dormir com a vizinha (e aqui P.e Cosme, à surrelfa, empiscou um olhinho cúmplice à cozinheira reformada), Sua Eminência iria dormir a casa do morgado, a quem já mandara aviso, e cujo solar dispunha de aposentos dignos de Sua Reverendíssima. Mas o bispo cortou-lhe a vazada. Que não, senhor. Que dormiriam juntos. Que aproveitariam parte da noite para praticarem sobre os mandamentos da Santa Madre Igreja.
Finda a ceia, a governanta acompanhou a vizinha, e cura e prelado foram para a cama. Já reclinados no leito, diz o bispo:
− P.e Cosme, agora que ninguém nos ouve, a sós perante Deus, quero que me diga o que há de verdade acerca duns rumores que por aí correm a seu respeito.
− Que rumores, Eminência?
− De mancebia com a governanta.
− Oh! Eminência, que grande calúnia! Como Vossa Reverendíssima pode testemunhar, nesta pobre casa só há um leito e a governanta vai todas as noites dormir com a vizinha.
− É então mentira?
− Juro, por Deus, que me há-de julgar!
O bispo bateu-lhe paternalmente nas costas.
− Acredito, meu filho! Ainda bem que é mentira. Vamos então dormir.
Apagaram a candeia e estenderam-se, um ao lado do outro. Dali por um bocado, P.e Cosme, meio tolo com o sono, espeta uma palmada no cu ao bispo e exclama:
− Quinhas? Tu fechaste as galinhas?
Costuma-se dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. É o que acontece nesta conta, que podia ter o título de “O mentiroso traído pelo sono”. O que nos faz rir é, uma vez mais, como na conta anterior, um confronto, neste caso entre a verdade e a mentira, ou seja, entre o que o padre diz e o que o padre faz. O que nos lembra um bem conhecido provérbio: “Bem prega Frei Tomás; fazei o que ele diz, não façais o que ele faz”.
Por falar em provérbios e sem sarmos do tema deste capítulo, no Nordeste ouvem-se alguns, prenhes de significado e de sarcasmo, envolvendo o padre.
“O padre c’uma mão tapa a c’roa e co’a outra apalpa a moça.” Este provérbio acaba por ser um prolongamento da quadra que se reproduziu acima. É o povo a dizer que não acredita na castidade dos padres.
“Pombos, padres e primos são três coisas que sujam uma casa.” Este provérbio chama a atenção para os perigos que há em um padre frequentar em demasia uma casa: criação de condições que podem levar a situações de ruptura. (O mesmo se aplica ao clero regular: há um provérbio que avisa “A clérigo frade não confies a comadre.”) E o mesmo vale também para primos — e é explicitado pelo que acontece no romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. A única sujidade inocente é a provocada pelos pombos — uma sujidade fisiológica, não uma sujidade moral.
«Como os santos o tenham e os padres lho sintam, tanto lhe cantam até que lho quitam.» Eis outro gracioso provérbio que satiriza a ambição de alguns padres de obterem riquezas materiais, muitas vezes por métodos pouco recomendáveis. O verbo ‘quitar’ significa precisamente ‘surripiar, tirar de forma ilícita’. E é precisamente de um padre que o povo se socorre para acusar alguém de ganância: “É como o padre Nabiça, que tudo o que vê, tudo cobiça.”
As circunstâncias obrigam o padre a repartir o leito com sua excelência reverendíssima, e é esta situação equívoca que desde logo se presta a ser glosada em diversos tons, resultando daí por vezes diferenças substanciais que exigem desfechos diferentes, alguns dos quais de grande desaforo.
Esta história teve a fortuna de ser glosada pelo mais afamado escritor barrosão, grande mestre que faz nos seus livros uso abundante do vernáculo e da malícia. Chamava-se Bento da Cruz. Faleceu em 25 de Agosto de 2015, no Porto, mas está sepultado no coração do seu Barroso — na aldeia que o viu nascer, Peireses. Tive a grande honra de ser seu amigo, e conservo como penhor dessa amizade algumas cartas dele recebidas, assim como autógrafos amistosos em vários livros, que me oferecia em retribuição dos que eu lhe oferecia a ele.
Bento da Cruz conta a tal história num livro maroto que tem o título de Histórias da Vermelhinha. O Leitor dispensar-me-á de lhe fazer notar as conotações do termo ‘vermelhinha’ e lerá com deleite a saborosa e desenvolta página que se segue.
Estreia tão auspiciosa valeu ao P.e Cosme a nomeação para cura de Paspalhó, uma das paróquias mais pobres da diocese. Terra pobre, residência pobre. Apenas cozinha e sobrado, ligados por uma varanda.
P.e Cosme instalou-se como pode e admitiu para governanta uma rapariga nova, forte e ingénua.
Fatal como o destino, oito dias depois, P.e Cosme e a governanta estavam, como se costuma dizer, de cama e pucarinho.
O escândalo chegou aos ouvidos do bispo, que subiu a Paspalhó disposto a reconduzir a ovelha tresmalhada ao aprisco do Bom Pastor.
Ao vê-Io, P.e Cosme caiu das estrelas.
− Vossa Eminência Reverendíssima por aqui?
− Chiu! Não façais alarido, P.e Cosme. Vou a Santiago de Compostela incógnito e não quero que a imprensa me descubra. Por isso, escolhi estas veredas. Dais-me guarida, por esta noite?
− Entrai, Eminência, entrai!
P.e Cosme introduziu o bispo na cozinha e correu ao sobrado a esconder uma das almofadas que enfeitavam a cama do casal. Depois chamou uma vizinha, cozinheira reformada dum hotel de Braga, para ajudar a fazer a ceia.
Enquanto ceavam, P.e Cosme foi adiantando que, atendendo ao desconforto da residência, onde, até, por desgraça, havia só um leito, uma vez que a criada ia dormir com a vizinha (e aqui P.e Cosme, à surrelfa, empiscou um olhinho cúmplice à cozinheira reformada), Sua Eminência iria dormir a casa do morgado, a quem já mandara aviso, e cujo solar dispunha de aposentos dignos de Sua Reverendíssima. Mas o bispo cortou-lhe a vazada. Que não, senhor. Que dormiriam juntos. Que aproveitariam parte da noite para praticarem sobre os mandamentos da Santa Madre Igreja.
Finda a ceia, a governanta acompanhou a vizinha, e cura e prelado foram para a cama. Já reclinados no leito, diz o bispo:
− P.e Cosme, agora que ninguém nos ouve, a sós perante Deus, quero que me diga o que há de verdade acerca duns rumores que por aí correm a seu respeito.
− Que rumores, Eminência?
− De mancebia com a governanta.
− Oh! Eminência, que grande calúnia! Como Vossa Reverendíssima pode testemunhar, nesta pobre casa só há um leito e a governanta vai todas as noites dormir com a vizinha.
− É então mentira?
− Juro, por Deus, que me há-de julgar!
O bispo bateu-lhe paternalmente nas costas.
− Acredito, meu filho! Ainda bem que é mentira. Vamos então dormir.
Apagaram a candeia e estenderam-se, um ao lado do outro. Dali por um bocado, P.e Cosme, meio tolo com o sono, espeta uma palmada no cu ao bispo e exclama:
− Quinhas? Tu fechaste as galinhas?
Costuma-se dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. É o que acontece nesta conta, que podia ter o título de “O mentiroso traído pelo sono”. O que nos faz rir é, uma vez mais, como na conta anterior, um confronto, neste caso entre a verdade e a mentira, ou seja, entre o que o padre diz e o que o padre faz. O que nos lembra um bem conhecido provérbio: “Bem prega Frei Tomás; fazei o que ele diz, não façais o que ele faz”.
Por falar em provérbios e sem sarmos do tema deste capítulo, no Nordeste ouvem-se alguns, prenhes de significado e de sarcasmo, envolvendo o padre.
“O padre c’uma mão tapa a c’roa e co’a outra apalpa a moça.” Este provérbio acaba por ser um prolongamento da quadra que se reproduziu acima. É o povo a dizer que não acredita na castidade dos padres.
“Pombos, padres e primos são três coisas que sujam uma casa.” Este provérbio chama a atenção para os perigos que há em um padre frequentar em demasia uma casa: criação de condições que podem levar a situações de ruptura. (O mesmo se aplica ao clero regular: há um provérbio que avisa “A clérigo frade não confies a comadre.”) E o mesmo vale também para primos — e é explicitado pelo que acontece no romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. A única sujidade inocente é a provocada pelos pombos — uma sujidade fisiológica, não uma sujidade moral.
«Como os santos o tenham e os padres lho sintam, tanto lhe cantam até que lho quitam.» Eis outro gracioso provérbio que satiriza a ambição de alguns padres de obterem riquezas materiais, muitas vezes por métodos pouco recomendáveis. O verbo ‘quitar’ significa precisamente ‘surripiar, tirar de forma ilícita’. E é precisamente de um padre que o povo se socorre para acusar alguém de ganância: “É como o padre Nabiça, que tudo o que vê, tudo cobiça.”
(Continua.)
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