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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 26 de março de 2023

Viagens — 24 - Telha de igreja (conclusão)

 Arrisco-me agora, a encerrar este capítulo, a pôr em letra de forma duas contas e, porque são divertidas, dizer sobre elas duas larachas. E digo que me arrisco, por que há sempre o perigo de não ser bem entendido por algum fundamentalista, daqueles que advertem supersticiosamente de que “graças a Deus, muitas; graças com Deus, poucas”. Gente, enfim, que faz de Deus a triste e redutora ideia do pai severo e vingativo.
Estas contas vieram à baila durante um dos colóquios que tive com os familiares da minha mulher. Tínhamos estado a falar de bruxas e o ambiente tinha ganho uma espécie de saturação maligna, que exigia uma pausa de bom-humor para nos reconduzir a uma conversação serena. Foi então que um dos gerontes lançou um desafio:
− Deixai lá as bruxas em paz e vamos mas é contar umas contas bem contadas.
Nemine discrepante.
Então, o que tinha feito a proposta adiantou-se e debitou a sua conta. Quem me dera poder reproduzir aqui a graciosidade, a pureza e o humor com que a conta foi contada, e restituí-la na sua autenticidade original. Mas onde tenho eu a segurança e a arte de narrar que me permita ombrear com o informador?
Mas nem por isso ficará a conta por contar. É assim:
 Uma vez, na Semana Santa, estava o padre a pregar do púlpito para baixo. Falava das grandes maldades que os judeus e os romanos tinham feito a Cristo.
Calhou passar por ali nessa hora um peliqueiro de Carção, terra de judeus, que andava de terra em terra a comprar peles de coelho, ovelha e outros animais, para curtir. 
 Percebendo que o povo estava na igreja, chegou-se à porta, na altura em que o padre contava os passos da Paixão, que muito comoveram o peliqueiro.
 No ano seguinte, pela mesma altura das pregações, voltou o peliqueiro a passar por aquela terra. O povo estava outra vez na igreja a ouvir o sermão. 
O peliqueiro voltou a chegar-se à porta da igreja.
 – E pregaram-no na cruz! – dizia o padre.
 – Foi-lhe muito bem feito! – resmoneou o peliqueiro.
 – E chegaram-lhe vinagre aos lábios sequiosos!
 – Foi-lhe muito bem feito!
 – E trespassaram-lhe o coração com uma lança!
 – Foi-lhe muito bem feito!
 Nesta altura do sucedido, já o povo se virava furioso contra o hereje, a pedir contas do sacrilégio.
 – Pois então?!... disse ele. – O ano passado não lhe tinham já feito outro tanto? Quem lhe mandou tornar lá segunda vez? Foi-lhe bem feito, para que tomasse emenda!
  A risa que ali foi!
− Eu também sei uma quase parecida – diz um dos informantes, desta vez uma mulher, que por sinal tem contribuído muito pouco para a conversa. 
− Quereis que vo-la conte? − insiste ela, ávida de assegurar por uma vez, dessa maneira, o centro do palco.
 Como ninguém se manifesta contra, começa imediatamente a contar, e — louvado seja Deus! — fá-lo com a mesma perícia e sentido histriónico do narrador que a antecedeu.
 A conta é na verdade bastante semelhante à outra, mas vale a pena ouvi-la.
Estava o padre a pregar na Semana Santa. Um almocreve que ia a passar chegou-se à porta da igreja. E pôs-se a ouvir o sermão.
 – E Jesus foi açoitado!
 – Coitadinho... – disse o almocreve, compadecido.
 – E puseram-lhe na cabeça uma coroa de espinhos!
 – Coitadinho... – tornou ele.
 – E cuspiram-lhe no rosto!
 – Coitadinho...
 – E tiraram-lhe a túnica!
 – Coitadinho...
 – E chegaram-lhe aos lábios uma esponja com vinagre!
 – Coitadinho...
 – E por fim pregaram-no na cruz!
 – Com essa é que o coseram! – comentou muito ligeiro o almocreve, variando enfim o ‘coitadinho’.
 É claro que esta palavra ‘coseram’ é um eufemismo, e o Leitor saberá de quê.  
. Não faltará aí quem se indigne com o que define como um desabusado humor popular.  São aquelas pessoas que concebem Deus como um pai severo, sem sentido de humor, que despacha liminarmente para o inferno quem se atreva a não o adorar e louvaminhar. Já falámos dessa gente acima. 
Eu, que com a ideia de Deus tenho tido altos e baixos que não valerá a pena historiar, afirmo peremptoriamente que, se Deus realmente existe, só pode ser um pai benevolente, capaz de humor e compaixão para com quem não nasceu equipado com as ferramentas que permitem compreendê-lo na sua complexa plenitude.
E, em jeito de provocação aos zelotes, ainda lhes deixo, a fechar o capítulo, uma conta marota que já contei algures:
Em certa aldeia, preparava-se a procissão da festa. Como determinada santa não estivesse muito firme no andor e ameaçasse cair, chamou-se um carpinteiro para a segurar melhor, o que ele conseguiu mediante um espigão sabiamente aplicado.
 O padre veio ver como corria o serviço.
 − Então, ó mestre, já firmou a santa?
 − Está tudo em ordem.
 O padre nem queria acreditar 
− A sério?  A santa já não abana?
 – Ele não senhor – replicou o artista –, que bom estadulho tem metido pelo seu santíssimo cu acima!
Digam-me agora os zelotes que diferença essencial encontram entre, por exemplo, o almocreve da segunda conta e um parvo de Gil Vicente. O que o povo quer, à boa maneira vicentina, é satirizar a rusticidade do almocreve, cuja língua não lhe chega para mais e exprime, pois, como sabe e pode o que lhe vai na alma. Aquela exclamação, blasfema para alguns, não será por certo menos compadecida do que o pranto que as Santas Mulheres derramaram sobre o cadáver de Jesus.
E quanto à tirada do carpinteiro da terceira conta? Sacrilégio, dizem os senhores zelotes? Ora! Os santos, antes de serem santos, foram homens e mulheres. E os santos têm memória. Aposto, dobrado contra singelo, que a própria santa em causa foi a primeira a rir da humaníssima fala do carpinteiro.

A. M. Pires Cabral

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