domingo, 26 de março de 2023

Viagens — 24 - Telha de igreja (conclusão)

 Arrisco-me agora, a encerrar este capítulo, a pôr em letra de forma duas contas e, porque são divertidas, dizer sobre elas duas larachas. E digo que me arrisco, por que há sempre o perigo de não ser bem entendido por algum fundamentalista, daqueles que advertem supersticiosamente de que “graças a Deus, muitas; graças com Deus, poucas”. Gente, enfim, que faz de Deus a triste e redutora ideia do pai severo e vingativo.
Estas contas vieram à baila durante um dos colóquios que tive com os familiares da minha mulher. Tínhamos estado a falar de bruxas e o ambiente tinha ganho uma espécie de saturação maligna, que exigia uma pausa de bom-humor para nos reconduzir a uma conversação serena. Foi então que um dos gerontes lançou um desafio:
− Deixai lá as bruxas em paz e vamos mas é contar umas contas bem contadas.
Nemine discrepante.
Então, o que tinha feito a proposta adiantou-se e debitou a sua conta. Quem me dera poder reproduzir aqui a graciosidade, a pureza e o humor com que a conta foi contada, e restituí-la na sua autenticidade original. Mas onde tenho eu a segurança e a arte de narrar que me permita ombrear com o informador?
Mas nem por isso ficará a conta por contar. É assim:
 Uma vez, na Semana Santa, estava o padre a pregar do púlpito para baixo. Falava das grandes maldades que os judeus e os romanos tinham feito a Cristo.
Calhou passar por ali nessa hora um peliqueiro de Carção, terra de judeus, que andava de terra em terra a comprar peles de coelho, ovelha e outros animais, para curtir. 
 Percebendo que o povo estava na igreja, chegou-se à porta, na altura em que o padre contava os passos da Paixão, que muito comoveram o peliqueiro.
 No ano seguinte, pela mesma altura das pregações, voltou o peliqueiro a passar por aquela terra. O povo estava outra vez na igreja a ouvir o sermão. 
O peliqueiro voltou a chegar-se à porta da igreja.
 – E pregaram-no na cruz! – dizia o padre.
 – Foi-lhe muito bem feito! – resmoneou o peliqueiro.
 – E chegaram-lhe vinagre aos lábios sequiosos!
 – Foi-lhe muito bem feito!
 – E trespassaram-lhe o coração com uma lança!
 – Foi-lhe muito bem feito!
 Nesta altura do sucedido, já o povo se virava furioso contra o hereje, a pedir contas do sacrilégio.
 – Pois então?!... disse ele. – O ano passado não lhe tinham já feito outro tanto? Quem lhe mandou tornar lá segunda vez? Foi-lhe bem feito, para que tomasse emenda!
  A risa que ali foi!
− Eu também sei uma quase parecida – diz um dos informantes, desta vez uma mulher, que por sinal tem contribuído muito pouco para a conversa. 
− Quereis que vo-la conte? − insiste ela, ávida de assegurar por uma vez, dessa maneira, o centro do palco.
 Como ninguém se manifesta contra, começa imediatamente a contar, e — louvado seja Deus! — fá-lo com a mesma perícia e sentido histriónico do narrador que a antecedeu.
 A conta é na verdade bastante semelhante à outra, mas vale a pena ouvi-la.
Estava o padre a pregar na Semana Santa. Um almocreve que ia a passar chegou-se à porta da igreja. E pôs-se a ouvir o sermão.
 – E Jesus foi açoitado!
 – Coitadinho... – disse o almocreve, compadecido.
 – E puseram-lhe na cabeça uma coroa de espinhos!
 – Coitadinho... – tornou ele.
 – E cuspiram-lhe no rosto!
 – Coitadinho...
 – E tiraram-lhe a túnica!
 – Coitadinho...
 – E chegaram-lhe aos lábios uma esponja com vinagre!
 – Coitadinho...
 – E por fim pregaram-no na cruz!
 – Com essa é que o coseram! – comentou muito ligeiro o almocreve, variando enfim o ‘coitadinho’.
 É claro que esta palavra ‘coseram’ é um eufemismo, e o Leitor saberá de quê.  
. Não faltará aí quem se indigne com o que define como um desabusado humor popular.  São aquelas pessoas que concebem Deus como um pai severo, sem sentido de humor, que despacha liminarmente para o inferno quem se atreva a não o adorar e louvaminhar. Já falámos dessa gente acima. 
Eu, que com a ideia de Deus tenho tido altos e baixos que não valerá a pena historiar, afirmo peremptoriamente que, se Deus realmente existe, só pode ser um pai benevolente, capaz de humor e compaixão para com quem não nasceu equipado com as ferramentas que permitem compreendê-lo na sua complexa plenitude.
E, em jeito de provocação aos zelotes, ainda lhes deixo, a fechar o capítulo, uma conta marota que já contei algures:
Em certa aldeia, preparava-se a procissão da festa. Como determinada santa não estivesse muito firme no andor e ameaçasse cair, chamou-se um carpinteiro para a segurar melhor, o que ele conseguiu mediante um espigão sabiamente aplicado.
 O padre veio ver como corria o serviço.
 − Então, ó mestre, já firmou a santa?
 − Está tudo em ordem.
 O padre nem queria acreditar 
− A sério?  A santa já não abana?
 – Ele não senhor – replicou o artista –, que bom estadulho tem metido pelo seu santíssimo cu acima!
Digam-me agora os zelotes que diferença essencial encontram entre, por exemplo, o almocreve da segunda conta e um parvo de Gil Vicente. O que o povo quer, à boa maneira vicentina, é satirizar a rusticidade do almocreve, cuja língua não lhe chega para mais e exprime, pois, como sabe e pode o que lhe vai na alma. Aquela exclamação, blasfema para alguns, não será por certo menos compadecida do que o pranto que as Santas Mulheres derramaram sobre o cadáver de Jesus.
E quanto à tirada do carpinteiro da terceira conta? Sacrilégio, dizem os senhores zelotes? Ora! Os santos, antes de serem santos, foram homens e mulheres. E os santos têm memória. Aposto, dobrado contra singelo, que a própria santa em causa foi a primeira a rir da humaníssima fala do carpinteiro.

A. M. Pires Cabral

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