Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
"Só as emoções fazem de nós heróis de carne e osso,
em todas as suas dimensões."
- João Morgado, 'Diário dos Imperfeitos' -
O cenário era desolador. O dia a nascer, caiado de nevoeiro e cinza negra, após uma noite de luta aberta contra o lume das chamas que lavraram a terra e o céu e abafaram as vozes dos homens. O silêncio, magistral. Só o crepitar fumegante onde antes havia som, luz, toque.
Sentados lado a lado, conseguia escutar-lhe a respiração a cavar-lhe os segredos acordados sobre o peito.
Largos minutos depois, falou. Mãos a deslizarem-lhe sobre o rosto enrugado. O olhar a morrer-lhe lentamente na penumbra do cansaço. O mundo inteiro a gritar-lhe dentro da alma.
Escolhera a que, segundo o coração um dia lhe segredara, acreditava ser uma das profissões mais nobres do mundo.
- Pergunto-me se terá valido a pena... – Voz cadenciada, como quem saboreia uma lentidão amarga – Quando era miúdo, sabia que o meu futuro seria ter a maior missão que um homem pode ambicionar: salvar vidas. Sabe, sempre achei que não se tratava apenas de viver a aventura, mas sim viver aquilo que realmente nós somos. E eu queria ser um herói.
- E não é? – Questionei.
Sorriu-me. Ou seria um esgar de revolta... Pensei depois.
- Os heróis são perfeitos. Hoje... Hoje, eu apenas conto todos os fracassos que alcancei. – Sussurrou, a soluçar a dor contida na garganta – A vida de quantos vi partir? Quantos me ficaram nas mãos? Quantos matei com um coração que deixou de sentir?... Depois de tantos anos, percebo que preciso de sonhos para poder viver. A realidade mata.
Os heróis são perfeitos...
Nessa manhã, foram estas as palavras que me tocaram.
Há pessoas que nunca tiveram que encarar a morte nos olhos. Nascem, vivem e, num repente, o silêncio adormece-as sem que nem disso se apercebam. Outras, vislumbram-na dia a dia como se ela fosse uma carruagem da vida em câmara lenta, cujo fim será sempre cedo demais. Ele era um desses heróis. Um herói que decidira abraçar uma missão sem ponto final.
Os heróis são perfeitos...
Será? Ou será que, tantas vezes, somos tão somente heróis sem poderes? Ter uma missão talvez seja a missão de todos nós. Mas, se calhar, nem sempre estaremos certos dos objetivos dessa missão. E, porventura, será por isso que o fracasso nos dói mais.
Aquele homem acreditara sempre que a sua missão era salvar vidas. Assim, salvar de uma forma perfeita, exemplar. Contar-me-ia ele depois como recordava tantas vezes, com a agonia a apertar-lhe o peito, aquela mãe que lhe morrera nas mãos, enquanto tentava salvar-lhe a vida. A vida dela, naquele momento toda sua, a esvair-se-lhe por entre os dedos, sem que ele nada conseguisse fazer.
Mas acredito que, nesse tempo, nem o filho que lhe tirara do ventre o fizera perceber o verdadeiro objetivo da sua missão. Quisera ser perfeito e não entendera que conseguira cumprir a sua missão de salvar vidas. Quisera ser perfeito e não compreendera o objetivo dessa missão. Desde que aquela mãe em paragem cardiorrespiratória, entrara dentro da ambulância e para ela voltara todas as suas forças, o objetivo da sua missão fora salvar-lhe a vida que tinha dentro dela. Quisera ser perfeito e não conseguira perceber que a vida acontece quando se aceita um fracasso onde coube uma grande vitória. E, ainda que a dor da realidade nos mate por dentro, é necessário seguir em frente, cientes de que muitos objetivos cumpridos compõem uma grande missão. Porque assim é a vida e não existem heróis perfeitos.
Haverá, sim, heróis sem poderes. Heróis que se desmancham por dentro e por fora para salvar vidas que não são suas. E que, quando fracassam, se permitem seguir caminho. Porque, por vezes, é apenas o fracasso que nos concede a conquista de outras vitórias.
- Depois de tantos anos percebo, por fim, que afinal preciso dos meus fracassos para poder viver.
Não mais nos cruzamos. Mas desconfio que depois desse dia, o coração lhe voltou a sonhar...
Sentados lado a lado, conseguia escutar-lhe a respiração a cavar-lhe os segredos acordados sobre o peito.
Largos minutos depois, falou. Mãos a deslizarem-lhe sobre o rosto enrugado. O olhar a morrer-lhe lentamente na penumbra do cansaço. O mundo inteiro a gritar-lhe dentro da alma.
Escolhera a que, segundo o coração um dia lhe segredara, acreditava ser uma das profissões mais nobres do mundo.
- Pergunto-me se terá valido a pena... – Voz cadenciada, como quem saboreia uma lentidão amarga – Quando era miúdo, sabia que o meu futuro seria ter a maior missão que um homem pode ambicionar: salvar vidas. Sabe, sempre achei que não se tratava apenas de viver a aventura, mas sim viver aquilo que realmente nós somos. E eu queria ser um herói.
- E não é? – Questionei.
Sorriu-me. Ou seria um esgar de revolta... Pensei depois.
- Os heróis são perfeitos. Hoje... Hoje, eu apenas conto todos os fracassos que alcancei. – Sussurrou, a soluçar a dor contida na garganta – A vida de quantos vi partir? Quantos me ficaram nas mãos? Quantos matei com um coração que deixou de sentir?... Depois de tantos anos, percebo que preciso de sonhos para poder viver. A realidade mata.
Os heróis são perfeitos...
Nessa manhã, foram estas as palavras que me tocaram.
Há pessoas que nunca tiveram que encarar a morte nos olhos. Nascem, vivem e, num repente, o silêncio adormece-as sem que nem disso se apercebam. Outras, vislumbram-na dia a dia como se ela fosse uma carruagem da vida em câmara lenta, cujo fim será sempre cedo demais. Ele era um desses heróis. Um herói que decidira abraçar uma missão sem ponto final.
Os heróis são perfeitos...
Será? Ou será que, tantas vezes, somos tão somente heróis sem poderes? Ter uma missão talvez seja a missão de todos nós. Mas, se calhar, nem sempre estaremos certos dos objetivos dessa missão. E, porventura, será por isso que o fracasso nos dói mais.
Aquele homem acreditara sempre que a sua missão era salvar vidas. Assim, salvar de uma forma perfeita, exemplar. Contar-me-ia ele depois como recordava tantas vezes, com a agonia a apertar-lhe o peito, aquela mãe que lhe morrera nas mãos, enquanto tentava salvar-lhe a vida. A vida dela, naquele momento toda sua, a esvair-se-lhe por entre os dedos, sem que ele nada conseguisse fazer.
Mas acredito que, nesse tempo, nem o filho que lhe tirara do ventre o fizera perceber o verdadeiro objetivo da sua missão. Quisera ser perfeito e não entendera que conseguira cumprir a sua missão de salvar vidas. Quisera ser perfeito e não compreendera o objetivo dessa missão. Desde que aquela mãe em paragem cardiorrespiratória, entrara dentro da ambulância e para ela voltara todas as suas forças, o objetivo da sua missão fora salvar-lhe a vida que tinha dentro dela. Quisera ser perfeito e não conseguira perceber que a vida acontece quando se aceita um fracasso onde coube uma grande vitória. E, ainda que a dor da realidade nos mate por dentro, é necessário seguir em frente, cientes de que muitos objetivos cumpridos compõem uma grande missão. Porque assim é a vida e não existem heróis perfeitos.
Haverá, sim, heróis sem poderes. Heróis que se desmancham por dentro e por fora para salvar vidas que não são suas. E que, quando fracassam, se permitem seguir caminho. Porque, por vezes, é apenas o fracasso que nos concede a conquista de outras vitórias.
- Depois de tantos anos percebo, por fim, que afinal preciso dos meus fracassos para poder viver.
Não mais nos cruzamos. Mas desconfio que depois desse dia, o coração lhe voltou a sonhar...
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.
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