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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Sabotagem no Paraíso - Décima e última parte - Deis Irae

 Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.
E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.

Génesis 3 Versículos 14 e 15

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


O inesperado discurso do lobo, que logo desapareceu em corrida, gerou mal-estar no grupo. Os pequenos orbes luminosos, percebendo que se perdia o ambiente propício, começaram a rodopiar com mais intensidade em volta deles.
De novo, humanos e anjo deixaram-se envolver pela volúpia e pelo desejo. Samael acariciou a cabeça de Adam e a de Lilian e aproximou-as para que eles se beijassem. Assim que o fizeram, ele próprio beijou Adam nos lábios. Rrava, sentindo-se posta de parte, infiltrou-se no meio dos três e roubou um beijo ao anjo, com os seus lábios carnudos cheios de sumo de maçã. Lilian envolveu Adam com os braços e as pernas. O belo rosto da mulher parecia alternar entre a pele e escamas verdes, como que se o seu aspeto de humana fosse uma capa para o réptil.
Envolvidos neles próprios, animados pela inspiração divina dos orbes, os dois casais perdiam-se em ósculos molhados, mãos que acariciavam, apertavam ou puxavam. Nenhum deles se apercebeu como o sol, sempre brilhante, começava a esconder-se entre as nuvens que tinham uma tonalidade rosada.
O céu foi-se cobrindo de vermelho e após negro, as nuvens formando um manto espesso e ameaçador. Vários raios atravessaram o éter antes de um portentoso trovão explodir fazendo vibrar o ar e tremer o chão.
Os amantes, surpreendidos, olharam para o centro da clareira onde se formara uma enorme e revolta bola de fogo. Logo atrás dela aguardavam dois querubins empunhando espadas flamejantes, as suas armaduras douradas refletiam o fogo da descomunal orbe.
No centro da bola inflamada manifestou-se o rosto e o corpo do Criador, em fogo vivo, que gritou incompreensíveis palavras iradas, tão alto, que todos tiveram de tapar os ouvidos.
Seguidamente, a própria orbe transformou-se num gigantesco anjo, todo ele composto de violentas chamas.
— Que fazem vocês, infelizes? — Gritou a impressionante aparição, a sua voz causando pequenos sismos.
Samael, estarrecido, arrastou-se para junto das árvores e ergueu-se, resistindo à tentação de fugir apavorado. Lillian tentou ocultar-se na vegetação, enquanto se convertia em serpente. Não conseguiu, porém, concluir a metamorfose e acabou com o tronco de uma mulher coberta de escamas e as pernas convertidas numa cauda verde que se debatia. Os orbes luminosos que os rodeavam caíram imediatamente, ficando a reluzir fracamente no local onde tombaram. Restaram apenas Adam e Rrava, abraçados, para enfrentar a fúria divina.
— Que fazem vocês, criaturas ingratas, depois de tudo o que vos dou? — A voz trovão voltou a interrogar ambos os frágeis humanos que tremiam descontroladamente.
— Perdoa-me, Senhor… — a voz fraca e trémula de Adam fez-se ouvir —… não sabia o que fazia… a mulher que me deste…
— A mulher que EU te dei. — O descomunal anjo ergueu-se em toda a altura, enquanto a sua voz amaciava. — Pois serei eu então o culpado da vossa corrupção…?
— Meu senhor, — tornou Adam, um pouco mais confiante —, ela chamou-me e…
— A serpente contou-nos coisas, senhor… — Rrava prostrou-se aos pés da aparição.
— Pois… a serpente… — o ser de fogo postou os seus olhos sobre Lillian, que estava apavorada a tentar rastejar para a vegetação — … não contente por desprezar tudo o que lhe dei e fiz por ela, atreve-se a corromper aqueles que seguiam as Minhas Palavras. Maldita serás para todo o sempre, que, por tua culpa, amaldiçoadas serão estas infelizes criaturas!
— Perdão, senhor… — também Adam se prostrou ante o Criador.
— Aqui tinham tudo, — a portentosa voz parecia pensativa enquanto enumerava —, bastava estender a mão para comer, não há frio, nem calor, não há perigo, não há dor… a tudo isto renunciastes, em troca de roupas para cobrir a nudez e de maçãs que vos disse não comessem. Não atentaram nas minhas palavras, mas sim nos enganos trazidos por quem não vos quer bem. Não vos chegavam os vossos corpos, tinham de ansiar outros… prazeres diferentes…
— Perdoa-nos pai! — Imploravam em uníssono Adam e Rrava, os rostos no chão, enlameados pelas lágrimas misturadas com a terra.
O anjo de fogo transformou a fúria no seu rosto numa máscara de tristeza e gotas de diamante correram dos seus olhos, evaporando-se ao percorrer o rosto ígneo.
Mais anjos desceram dos céus juntando-se aos querubins, observando o julgamento que se processava. Havia-os de todas as cores, de enorme estatura. Alguns praticamente humanos, uns mascarados pela divindade do seu estatuto, outros ocultos pelo demónio que os habitava, formavam uma silenciosa multidão, tão incrível quanto heterogénea.
— Adam! — A voz trovão retornou enquanto o fantástico ser apontava o dedo indicador ao apavorado humano. — Não mais terás vida fácil. As árvores negar-te-ão os seus frutos com espinhos e ramos, a terra será madrasta e terás de suar para arrancar o sustento. Conhecerás a dor. Os animais deixarão de te reconhecer, uns verão em ti um inimigo enquanto outros verão um alimento. Terás de lutar para salvar a vida e construir abrigo com as tuas próprias mãos. O céu não terá clemência e trará sobre ti chuvas intensas, neves geladas e sol escaldante.
Os orbes luminosos brilhavam fracamente no chão, formando um círculo à volta dos infelizes humanos, quando o Criador voltou o seu olhar feroz para a mulher.
— Tu, Rrava, serás eternamente escrava do teu amor pelo teu homem, trabalharás para ele e por ele serás maltratada. — O dedo acusador apontou-a para que não restassem dúvidas a quem se dirigia. — O homem te subjugará e descarregará em ti as suas frustrações, por te saber mais inteligente que ele e, fará aquilo que mandas… apenas para depois te flagelar novamente. Conhecerás a dor de trazer os filhos ao mundo. Olharás a tua irmã com suspeição e erguerás a mão contra ela por ciúmes e invejas mesquinhas. Não terás amigas, apenas rivais.
O casal humano chorava e gemia enquanto implorava o perdão divino.
— Tu, réptil maldito! — Apontava o dedo agora à serpente/Lillian. — Serás maldita para sempre. Todos os seres vivos te temerão e tentarão tirar-te a vida. A mulher será tua inimiga jurada, morderás o seu calcanhar e ela esmagar-te-á a cabeça. Pobre criatura que já não sabes bem se és humana ou demónio. O teu nome não será mais Lillian, pois nada tens de pureza ou inocência, agora chamar-te-ás Lilith, pois trazes contigo nos ventos da luxúria a escuridão e a maldade.
O ser divino suspirou profundamente ao olhar para o aterrorizado Samael, que optara por manter o seu aspeto frágil de humano, em vez do seu alter-ego divino, com mais estatura e dignidade. Grossas lágrimas corriam-lhe no rosto.
A um gesto do criador, todas as pequenas orbes no chão materializaram-se nas formas humanas de várias dezenas de anjos, uns ajoelhados, outros sentados. Havia uma grande variedade de expressões nos seus rostos, envergonhados, tristes, alguns zangados…
— Perdoa-me Pai! — Samael não aguentou mais e atirou-se ao chão em contrição. Percebera finalmente que estivera a ser usado por Armaros e Samyaza. — Perdoa-me ter abandonado a Tua Luz, ampara-me de novo no Teu Seio. Deixa-me provar o meu arrependimento!
Novas lágrimas de diamante correram no divino rosto antes de fazer um gesto e Samael ascender como um raio, numa coluna de vapor, em direção ao céu.
Lillian tentou seguir a trajetória vertiginosa do seu amante, antes de deitar um olhar ressentido ao Criador. Ela estivera sempre ao lado daquele anjo mal-agradecido e sofrera as consequências dos atos que ambos cometeram, para agora ele ser perdoado e ela duplamente amaldiçoada. Antes que alguém pudesse dizer ou fazer alguma coisa, enunciou as palavras para o teletransporte e evaporou-se com um estouro do ar subitamente vazio.
Contristado, o gigantesco anjo flamejante acenou negativamente a cabeça, antes de se voltar para os restantes membros da conspiração.
— Os meus filhos traidores… — o Criador chorava enquanto fitava um a um os anjos caídos, desorganizados no chão —… conspiradores, falsos… — nenhum deles se atrevia a enfrentar o olhar do pai —… perjuros. Samyaza, — chamou com voz triste, embora o visado não se atrevesse a olhá-lo —, confiei-te os destinos humanos. Armaros, — este levantou os olhos, mas logo os baixou novamente, envergonhado —, prometeste cuidar deles e não se envolver com eles. Criaste monstros, ensinaste-lhes monstruosidades! Que fizestes?! Anátema!!!!
Os anjos que assistiam ao julgamento entoaram, a uma só voz, as bênçãos ao Criador:

“Bendito és Tu, Adonai, que libertas os aprisionados!
Bendito és Tu, Adonai, que levantas os subjugados!
Bendito és Tu, Rei do Universo, o Teu perdão é doce como o mel!
Bendito és Tu, Rei do Universo, o Teu desprezo é amargo como fel!
Bendito és Tu, Adonai, a Tua ira é divina e fatal!
Bendito és Tu, Adonai, o Teu castigo é justo e brutal!”

— Azazel, meu filho, até tu. — Continuou o Criador. — Tomaste esposa entre eles, ensinaste-os a fazer armas!?
— Meu Pai! — Também o referido, apesar de se atrever a contestar, não enfrentava a visão de magnificência e divindade do Criador. — Foste Tu quem subverteu a criação! Por que destruíste as vidas anteriores da Terra? Não poderiam todos coexistir? Quanto às esposas, também Tu tinhas uma, não Te recordas? Ou não queres recordar? — Aqui olhou-O em desafio. — Que fizeste de Asherah[1], a rainha dos céus?
— Pois atreves-te a confrontar-me? — O Criador pareceu crescer ainda mais, à medida que as suas lágrimas se enxugavam. A sua pele dourada parecia ferver. — Comparas Asherah aos reles humanos?!? Ousas invocar o nome que proibi que fosse mencionado[2]?
O portentoso anjo dourado retornou lentamente à sua forma de bola de fogo, onde o terrível rosto se distinguia, retorcendo-se em máscaras de fúria, como que se debatendo com as Suas diversas personalidades.
Os anjos que assistiam ao drama tentaram suavizar a fúria do criador com o coro celestial: — Bendito és Tu, Adonai, que libertas os aprisionados!
Bendito és Tu, Adonai, que levantas os subjugados!
Bendito és Tu, Rei do Universo, o Teu perdão é doce como o mel!
— Malditos sois!!!! — O grito fez tremer o chão, em simultâneo com um possante trovão que atroou os céus. — Caídos do meu coração, agora e para sempre!
Para consternação dos anjos transgressores, as suas asas soltaram-se das costas, e caíram ao chão como fruta madura, onde se dissolveram rapidamente. Os seguidores do Criador choraram o infortúnio dos seus irmãos.
— Vagueareis pela Terra desolada, que conspurcastes com os vossos desmandos. Tereis desprezo dos irmãos dos Céus e chacota dos que se converteram em demónios no passado. — A maldição do Criador recomeçou, cada palavra fazendo vibrar as próprias árvores. — Na vossa miséria acompanhareis os humanos, que desprezais e adorais e com eles compartilharão destinos, até que algo façais que desperte a minha compaixão! Assim se faça conforme a Minha vontade!
— Amém!!!!! — Cantou o coro angelical, também ele ecoando nos céus e na terra.
Quase de imediato começou a levantar-se um turbilhão de poeiras e folhas que rapidamente se transformou num terrível furacão. Humanos e anjos foram arrastados pela fúria do vento e espalhados por toda a terra.
O furor da tempestade de areia dissipara-se e a vegetação luxuriante do Jardim não passava agora de uma vaga memória. Adam e Rrava deram por si, sozinhos, numa encosta arenosa, pontilhada com algumas poucas palmeiras, que descia em direção a um largo rio.
Numa duna mais afastada, um dos anjos despojados das suas asas ergueu-se, curvado pela vergonha. Deitou um olhar desolado ao casal humano e começou a caminhar em sentido contrário, desaparecendo na curva do terreno.
O vento quente atirava areia pelo ar abafado. O sol inclemente, instou-os a procurar a sombra de uma das palmeiras. Os dois frágeis seres estavam pela primeira vez verdadeiramente sozinhos; ausência de Deus era um pesado vazio que não conseguiam explicar.
Com os pés a queimar na areia, chegaram finalmente à sombra protetora. Uma pequena víbora agitou-se à chegada deles e Rrava, instintivamente, chutou-lhe uma porção de areia que a fez fugir. O divórcio entre os humanos e os animais estava consumado.
Sem saber o que fazer, em choque, sentaram-se no chão quente e hostil. Algo na barriga de Rrava movimentou-se e ela colocou a mão sobre a perturbação. Uma palavra acudiu-lhe imediatamente aos lábios: — Caim.

[1] Asherah ou Aserá é identificada como rainha consorte do deus sumério Anu e do deus ugarítico El, as mais antigas divindades dos seus respetivos panteões, bem como era consorte de Javé, Deus de Israel e Judá. In Wikipedia

[2] Apesar de ter sido adorada no panteão judaico, enquanto rainha dos céus, durante o período politeísta, a conversão em monoteísta fez com que fosse esquecida e os seus seguidores acusados de idolatraria.


Manuel Amaro Mendonça
é licenciado em Engenharia de Sistemas Multimédia pelo ISLA de Gaia. Nasceu em janeiro de 1965, em Portugal, na cidade de São Mamede de Infesta, no concelho de Matosinhos; a Terra de Horizonte e Mar.
Foi premiado em quatro concursos de escrita e os seus textos foram selecionados para mais de duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras e é membro fundador do grupo Pentautores (como o seu nome indica, trata-se de um grupo de cinco autores) que conta já com cinco volumes de contos publicados.
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (2015), "Lágrimas no Rio" (2016), "Daqueles Além Marão" (2017), “Entre o Preto e o Branco” (2020), “A Caixa do Mal” (2022), “Na Sombra da Mentira” (2022) e “Depois das Velas se Apagarem” (2024), todos editados e distribuídos pela Amazon.
Colabora nos blogues “Memórias e Outras Coisas… Bragança” https://5l-henrique.blogspot.com/, “Revista SAMIZDAT” http://www.revistasamizdat.com/, “Correio do Porto” https://www.correiodoporto.pt/ e “Pentautores” https://pentautores.blogspot.com/
Outros trabalhos estão em projeto, mantenha-se atento às novidades em http://myblog.debaixodosceus.pt/, onde poderá ler alguns dos seus trabalhos, ou visite a página de autor em https://www.debaixodosceus.pt/ 

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