terça-feira, 17 de maio de 2022

ASSIM IA A CIDADE DE BRAGANÇA… PROBLEMAS URBANOS

Como os sinais de progresso eram lentos e pouco significativos, apesar das alterações que se foram registando nos campos urbanístico, económico, social e mental, continuavam a notar-se, como temos sugerido, imobilismos e arcaísmos.


Muitas vias e praças mantinham características pouco urbanas. É depois da revolução liberal, a partir de 1829, que alguns dos importantes espaços públicos que ainda não estavam pavimentados – assim ia a Cidade… – seriam objeto de projetos que apontavam para a pavimentação e a colocação de canos de escoamento. A Praça do Colégio ainda não era calcetada.
Ao sabor das agitadas conjunturas políticas e sociais, as obras vão avançando lentamente. A maneira como os trabalhos eram realizados constituía mais uma prova de que ainda se vivia num outro “mundo”, com um tipo de relações próprias do Antigo Regime. A sujeição dos “rústicos” aos citadinos continuava a traduzir-se em “normais” e atávicas imposições. Os “juízes dos povos” de várias aldeias deviam mandar, de cada um dos seus povoados, dois carros a apanhar seixo atrás do Forte (ou aonde o houvesse), para se comporem as ruas da Cidade; deviam enviar, ainda, um homem por dia munido de instrumentos para trabalhar nos caminhos. A Câmara dá ordens aos “juízes dos povos” de Grandais, Lagomar, Fontes Barrosas, Castrelos, Castro de Avelãs, Formil, Conlelas, Alimonde, Samil e São Pedro, para mandarem gente. Em 1830, suspendem-se as obras por falta de dinheiro.
Nos finais da década de 1830 ou inícios de 1840, lança-se o chamado “Passeio Público de Bragança”, junto à porta principal de acesso à cidadela. Procede-se à arborização da vertente norte, junto à muralha da “vila”, em ligação com a Alameda de São Sebastião.
As ambições com a qualidade de vida urbana ter-se-iam tornado “mais efetivas” na segunda metade do século. A obra da calçada do Largo das Eiras, ou o calcetamento da Rua do Passo, com execução financeira relativa a 1854, “seriam acompanhadas pela ideia de se continuar a iluminar a Cidade com seis lampiões de azeite”.
O espaço das Eiras do Colégio era assim ajardinado e utilizado para os mercados “das quintas e mensal”. Por esta altura, “os tradicionais processos de iluminação por lampiões de azeite” são “ultrapassados pelo petróleo”.
Numa reunião da edilidade, celebrada em 1856, pensava-se no alindamento da urbe, fazendo “depender este processo de um plano urbanístico que consignasse o alinhamento das ruas e das praças e a canalização das águas”. No verão deste ano, quando se fazia um novo acesso entre a Rua dos Oleiros e o Forte (onde estava o quartel de Cavalaria n.º 7, a Câmara deixou em ata um testemunho da sua política urbana: a Rua do Espírito Santo, “uma das melhores da Cidade, se acha deformada e deturpada, com a saliência da casa, chamada do Corpo da Guarda velho e com o coberto” de outro edifício particular que, além de “tolher a vista da mesma rua, se transformava em depósito de lixos”. Tentava-se dar continuidade à proibição, de 1855, de que os suínos e outros animais “divagassem” pelas ruas e praças da Cidade. E uma postura municipal, de abril de 1857, proibia a “chiadeira dos carros dentro da Cidade e seus arrabaldes” e definia pesadas multas para os condutores.
Eram medidas que visavam afastar marcas de ruralidade e conferir um ar mais urbano ao aglomerado: os animais ficavam bem nas ruas das aldeias e a chiadeira era “música” que devia ser exclusiva dos bucólicos campos…
Mas, alguns anos passados, em 1867, os porcos ainda “pastavam” pelas ruas e praças (em especial por aquelas que não estavam calcetadas) e os “animais cavalares” vagueavam soltos. E assim vai continuar a ser. A Câmara, uma vez mais, “tem muito a peito melhorar quando lhe for possível a Praça do Colégio”.
Melhoramentos considerados essenciais iam-se adiando, porque os meios eram escassos. 

Ficavam os propósitos. Em 1861, era apresentada à Câmara uma proposta com os seguintes pontos:

1.º Que a Câmara começasse desde já com toda a atividade a construção das ruas da Cidade;
2.º Que empreendesse abastecê-la de suficientes águas potáveis;
3.º Que tratasse de fazer construir o edifício dos Paços do Concelho;
4.º Que mandasse levantar a planta topográfica da Cidade com o projeto dos respetivos melhoramentos;
5.º Que se esforçasse em mandar construir os caminhos vicinais que devem ligá-la com os concelhos e povos vizinhos”.

Como se vê, estava-se longe de cumprir um projeto básico e essencial…
Entretanto verifica-se, com festejos e grande entusiasmo, em maio de 1860, “a abertura da estação telegráfica de Mirandela a Bragança”. A estação “telégrafo-postal” será instituída nove anos depois.
Como resultado de uma mentalidade mais laica, que vai triunfando entre alguns setores, o cruzeiro da Praça da Sé – espécie de “pelourinho religioso” – é removido, em 1875, desse espaço. Por iniciativa do Grupo dos Amigos dos Monumentos, voltará à Praça, para ser “reinaugurado” em 1931.


Eram difíceis de percorrer os caminhos da modernização urbanística. “Na Cidade pachorrenta e fortemente impregnada por formas de vida rurais, facto que fazia com que as principais artérias não tivessem passeios, levantaram-se vozes que clamavam pela limpeza das ruas, largos e becos, e desinfeções periódicas, pois era grande o receio dos surtos de cólera e de tifo que, de vez em quando, fustigavam o País”.
Quando se encetavam esforços para o calcetamento da Rua Conde de Ferreira, uma comissão de festas empenhava-se na celebração do 3.° Centenário de Camões (1880), que teria como ponto alto a inauguração de uma estátua na Praça da Sé. O monumento não teve concretização mas o Largo das Eiras do Colégio foi rebatizado com o nome do poeta.
Por ter que ver com a história da Cidade, com a criação de “memórias” que alimentaram um imaginário que perdurou e com acontecimentos que deixaram marcas no tecido urbano, na sequência do feito de armas praticado em Manjacase pelos soldados portugueses (entre os quais estava o batalhão de Caçadores n.º 3), a Municipalidade deliberou, no fim do ano de 1895, que ao largo situado no cimo da Rua de D. Luís I, não só se desse o nome de “Square do Batalhão Expedicionário de África”, mas que aí se colocassem dois lampiões de azeite.


A área urbanística, nos inícios do século XX, quase coincidia com a existente nos finais de Seiscentos. Pelo que representa na reestruturação da malha urbana e pelo que vai significar para a vida da Cidade, deve aludir-se à construção da estação dos caminhos-de ferro: em 1905 desenvolviam-se trabalhos de terraplanagem no Largo de Santo António do Toural, sob a direção de João Lopes da Cruz, para se iniciarem as obras da estação.
Ao mesmo tempo, germinava a ideia de abertura de uma avenida com capacidade para dar “vazante ao movimento que se há de estabelecer entre a estação e Bragança e para o que é evidentemente insuficiente a estreita Rua do Conde Ferreira”.
Nos últimos anos da Monarquia, sobretudo a partir de 1906, começaram a tomar-se medidas no sentido de melhorar as condições de higiene da Cidade – conclusão do novo Mercado Municipal e aformoseamento da urbe –, porque se previam visitas importantes: a visita régia começava a ser muito viável.
E se em 1906 são inaugurados o caminho-de-ferro – melhoramento e conquista de tão grande significado – e a Praça do Mercado, há aspetos degradantes e “desonrosos” na vida do aglomerado que permanecem.
Aqui, como noutras localidades, faziam parte do quotidiano “cenas” características de tais tempos, que se traduziam, por exemplo, em acidentes com cães raivosos. Em meados de 1908, dois homens mordidos por um cão raivoso seguiram para Lisboa, a fim de serem tratados no “Instituto Bacteriológico”. O animal foi morto a “golpes de fouce”. São pedidas providências para que os cães estejam presos ou andem açaimados.
As notícias e os comentários dos jornais locais e os assuntos tratados nas sessões camarárias – assuntos que também encontram eco nos órgãos de informação – revelam nos necessidades, grandes e pequenas, problemas que se faziam sentir, soluções que se propunham…
Num apontamento sarcástico de 1908, no jornal A Pátria Nova, de 15 de fevereiro, com o título “Bragança é linda!”, assinado por um “filho de Bragança”, vai-se escrever acerca da Cidade, pobre, atrasada, desleixada, “despenteada” e suja. “Salubrizam-na a escrupulosa alvura de seus pujantes edifícios e a escrupulosa limpeza de suas ruas e praças.


Enriquecem-na as prósperas indústrias de suas inúmeras fábricas e a cuidada cultura de seus arredores. Recomendam-na a comodidade e barateza de seus hotéis”. “Em noites sem lua, as mil projeções de seus voltaicos cintilam constelações… Ah! Mas eu sonho, por certo, o que Bragança deveria ser, mas que… não é”.
Satiriza-se a triste realidade: insuficiências urbanísticas, ausência de indústrias, inexistência de unidades hoteleiras, noites de breu…
Neste mesmo ano, em abril, a Câmara lança o concurso para a “concessão do exclusivo da iluminação elétrica pública e particular na Cidade de Bragança” (O Nordeste, 18 de abril). Aspiração e sonho que, por esta ou aquela razão, vão tardar em concretizar-se.
A urbe ainda “incivilizada” e “atrasada” – que o Jornal de Bragança nos sugere, pela pena do seu diretor e proprietário, Raul Teixeira – vai, apesar de tudo, colmatando, em 1910, algumas das suas graves deficiências. Em matéria de “iluminação e limpeza”, lembra que se o poeta de Cirano por aqui passasse, “visionaria uma peça, passada na escuridão de um túnel, em que o herói seria um porco, e à qual daria o título de Cochon”. E numa alusão duvidosa: “o diabo é que muita gente era capaz de ver nela uma alusão acrimoniosa ao vereador da Câmara e nosso particular amigo, sr. Abade de Baçal… Porque sempre houve criaturas maliciosas e maldizentes”. E num apelo: “Pois mandem lá acender as lamparinas e varrer essas nitreiras a que chamam… ruas – ou, pelo menos apanhem os tremoços do último carnaval que curados ainda podem dar dinheiro ao Município… E a propósito da higiene da Cidade, em breve conversaremos com os srs. delegado e subdelegado de saúde”. Cidade de noites sem iluminação minimamente decente e com ruas que são lixeiras…
Poucos meses depois, começa por referir, em “notas e comentários”, alguns “melhoramentos locais.” Alude ao que a Cidade deve à presente vereação: “o calcetamento da Rua de Santo António, a canalização das águas para o infecto matadouro, a reparação do Tribunal Judicial, etc.”. Como se vê, ainda era preciso criar condições básicas que emprestassem um caráter mais decente, mais urbano, ao aglomerado… Mas o que se ia realizando estava longe de ser o que era imprescindível para colocar Bragança “ao lado das cidades civilizadas” embora admita que “os recursos camarários, também, são insignificantes”.

Candelas para iluminação, usadas no quotidiano brigantino oitocentista

“O primeiro melhoramento que Bragança reclama é, inegavelmente, a luz elétrica.” O que mais “desagradavelmente” impressiona o forasteiro é a “iluminação primitiva, verdadeiramente indecente! – se iluminação se lhe pode chamar”. Continua a denúncia: “com uma débil luz de lamparina, os candeeiros apagam-se antes do meio da noite. Quando há luar, a Câmara não gasta petróleo porque lá entende que a lua é foco luminoso bastante para aclarar as ruas do burgo. Uma vergonha, enfim”. E as “vergonhas” não ficam por aqui.
“Outro aspeto repugnante que as ruas da Cidade oferecem (junto ao seu estado de permanente porcaria) é o da degradação dos seus passeios. Com covas abertas na cantaria pelo trânsito, quando chove são verdadeiros lagos, cloacas imundas, esses passeios! Efetivamente, nas ruas Direita e Alexandre Herculano os passeios estão num estado lastimoso”.
As características “rurais” mantinham-se como demonstra mais esta nota irónica: “Os suínos continuam ruminando pachorrentamente pela Cidade, quais burgueses honestos fazendo a digestão”. Este grave estado, estas clamorosas carências e penúrias, estes sinais de rusticidade – que outros documentos e testemunhos vinham denunciando – marcavam, indelevelmente, o dia-a-dia da Bragança que vê implantar a República…

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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