Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Equinócio de março de setenta e seis. Nem vontades nem razões de um e outro foram tidas ou achadas para o que em pezinhos-de-lã lhes estava a acontecer. O frecheiro cupido fizera a sua parte e esperou, incerto talvez do feitiço sempre que o lançava. Resultou uma vez mais. E então, naquele abril, envoltos sempre por uma atmosfera espessa de sg ventil queimado e pelo palrar embalador da malta do liceu reunida ali à custa de faltas, furos, feriados e do prec, aconteceram manhãs de adoração no café minicopa. Nervoso miudinho de fazer tremer as mesas. Por baixo delas, subtis toques de joelhos que de acidentais tinham só o parecer. Olhos hipnóticos, mais faladores do que as bocas ainda constrangidas.
Ele, fascinado.– Vives com os teus pais?
– Não, estão na frança.
Ela, derretida.
– Quantas lições de condução te faltam?
– Sete ou oito.
Palavras formais, claro. Por detrás delas outras mais sentidas lutando por ter voz, a que nem ele nem ela se atreviam.
(– Borracho, o profe…)
(– Boa como milho a garota...)
(– Só me quer pró gozo...)
(– Magrebina pura, como eu gosto…)
(– Olhos meio verdes… Nem tinha reparado…)
(– Mas dezasseis anos.... É chato…)
(– Estiloso!…)
(– Mamas ainda pequeninas…)
Três semanas assim de um levedar misterioso. E uma tarde, sem saberem da mão fatal e escondida a decidir, presos ambos à ilusão de estar agindo, desafiaram por fim a estrada do turismo. Os pés quase sem tocar o chão de asfalto. A conversa, tela fina sobre a emoção refreada que a cada passo queria desprender-se. Flor da ponte, senhora da piedade, o jardim na curva do fervença, o casario branco, o laranja-sujo dos telhados, a torre ameada da sé. Aqui a bela e sóbria pousada. Sombras boas de maio a cobrir parte do caminho. Um carro ou outro a vir, desculpa para puxá-la um pouco mais para ele. Adiante, os dedos quase a tocar o postal ilustrado do castelo.
– Morei ali cinco anos.
– Na vila?
– Hum.
– É giro.
Um vaidoso encantamento. Avançar quinhentos metros espreitando junto aos muros laterais as altas ribanceiras do rio. E impelidos sempre por misteriosos fios a que não saberiam resistir, mais leves que o ar leve que bebiam, disporem-se a contar uma por uma, a par, cadenciados, as duzentas e cinquenta e quatro escadas que levam ao santuário. Corações agora a acelerar por dois motivos.
– Cento e trinta e oito, cento e trinta e nove…
– Quarenta, a ver se não nos enganamos…
Enorme desdém por pressas, o próprio tempo a olhá-los curioso e irónico, com vontade de parar. As mãos, balançando, ousavam premonitórios toques leves. Eros inquieto, rasgado em dois, em intensas ânsias contidas de se tornar um só. Os sentidos testados ao limite. Breve paragem.
– Cansada?
– Não, tou bem!
Então não?!… Se havia em tudo um sabor a outro mundo!… Desfalecimento suave de se deixarem levar, paus-mandados de um oculto qualquer. Vencida a longa escadaria, um pouco mais de fôlego num caminho de terra irregular. Virar ainda duas vezes à esquerda, duas à direita.
– Fff, calor!...
– B’cadito…
Últimos cinquenta metros já em íntimo alvoroço. Oito íngremes escalões para aceder à pequena varanda com a panorâmica vista da cidade. Tudo longamente calculado sem o suspeitarem, a própria escolha do elevado e sobranceiro monte simbolizando a elevação das duas almas. Estava escrito, ninguém sabia onde, que depois se iriam aninhar no recanto da frontaria branca da capela com o muro do terraço, da mesma cor. E chegados ali, que outro sítio podia ser?!...
Cingindo-os a toda a volta, o declive verde-negro de nogueira, montesinho agreste e grave, as duas lombadas em searas de verde flutuante, o céu azul e branco prolongado pela terra dentro até à sanábria em cinza baça, ao fundo. E sem ninguém por perto, a não ser por trás da porta a resignada imagem de bartolomeu esfolado vivo, num silêncio riscado por sons agudos de cigarras, o prémio da árdua subida, copioso manjar a abrir-se de repente à longa fome, conquista de troia triunfal após incerta luta, anos aos milhões de marcha viva a preparar esse momento, ápice de sentido que ali lhes escapava, mas os uniu por mais que tudo o resto depois os separasse, olhos de um lume do princípio do tempo a implorar sim, sim, sim, colossal descarga de energia acumulada acendendo incalculáveis chispas em apenas seis segundos: dois pares de lábios avançando devagar, suavemente, num erguer de asas sem fim.
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
Sem comentários:
Enviar um comentário