Lobo-ibérico. Fotografia Sara Pinto/Palombar/Censo Nacional do Lobo-ibérico ICNF |
Sara Pinto, uma das biólogas especialista na espécie que realizou os trabalhos no campo pela Palombar, falou-nos sobre a sua experiência, sobre o censo como ele é. E o trabalho é árduo e as jornadas são longas e, muitas vezes, não se vislumbra um único sinal dele: do lobo-ibérico.
Mas, em território onde pode haver lobo, há que desbravar até ao último recanto, até à última fraga, até à última senda, à procura de um indício, de uma imagem, de um som, no intento apaixonante para o descobrir. No terreno, a experiência aponta o caminho, orienta e apura os sentidos, mas a paisagem é, por vezes, bravia e, muitas outras, humanizada: o horizonte alarga-se e a peleja adensa-se. Há que ser persistente. O trabalho tem de continuar…
No campo, todos os sentidos contam
No campo, a par da experiência e do conhecimento, todos os sentidos contam. Ver, ouvir, sentir, intuir… Durante o censo, utilizaram-se métodos não invasivos para detetar a ocorrência da espécie, isto é, métodos que não lhe causam perturbação, nem implicam contacto direto. Os métodos são complementares e pretenderam confirmar a presença do lobo num determinado lugar ou de uma alcateia (grupo familiar), bem como a sua reprodução.
Entre os métodos usados estiveram a realização de percursos em veículos todo-o-terreno ou a pé, para uma avaliação mais apurada do terreno, com o intuito de encontrar indícios de presença, como pegadas e excrementos, estes posteriormente alvo de análise genética para identificação precisa da espécie; estações de armadilhagem fotográfica, estações de escuta e de espera. Na de espera, está-se atento a observar com uns binóculos ou telescópio se ele aparece; na de escuta, pretende-se ouvi-lo. Simula-se um uivo. Aguarda-se uma resposta… responderá? Quando responde, há um arrepio, um estado de contentamento. Está ali algures. Sara Pinto ouviu, numa das jornadas de trabalho, uma resposta, e esta encheu, por si só, todas as medidas.
Sara Pinto. Fotografia Miguel Nóvoa/Palombar. |
Recorreu-se ainda ao uso de gravadores, que foram colocados no campo para tentar captar sons, como uivos e outros ruídos típicos dos lobos, durante períodos maiores de tempo. Este método complementar, que não estava previsto no censo, foi útil nalguns casos. A sua aplicação no campo resultou de uma colaboração realizada com os investigadores Helena Rio Maior e Rafael Campos, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO) da Universidade do Porto.
As pegadas surgiram nos caminhos, os excrementos também, as máquinas registaram momentos únicos, lobos em liberdade, no seu habitat natural. E, quando assim é, não há palavras para descrever. Aqueles instantes fixados em imagens valem tudo. Ali estão eles. Resistem.
Pegadas de lobo-ibérico. Fotografia Sara Pinto/Palombar/Censo Nacional do Lobo-ibérico ICNF. |
Muitas vezes sozinha no terreno, noutras acompanhada, Sara Pinto destaca o desafio que foi aplicar os métodos do censo num território tão humanizado e a preocupação por se ter deparado com comportamentos suspeitos de furtivismo durante os trabalhos no campo. Por outro lado, sublinha a sua maior satisfação: registar crias, adultos saudáveis e alcateias estáveis, embora outras, identificadas em censos anteriores, não se tenham confirmado. Há esperança para a conservação desta espécie ameaçada de extinção e o único membro que resta da família dos grandes carnívoros de Portugal.
O mito rural das “largadas de lobos”
No terreno, marcado por uma paisagem bastante humanizada, onde o mosaico agrosilvopastoril se intercala com paragens mais bravias, entre as populações locais, constatou-se que continua a haver quem acredite nas chamadas “largadas de lobos”. “Não se sabe muito bem por quem, mas anda por aí uma carrinha branca a soltá-los nos montes…”, a narrativa repete-se de aldeia em aldeia, de boca em boca, mas esta não passa de um mito rural. As chamadas “largadas de lobos” simplesmente não existem, nunca aconteceram.
As pessoas foram sempre afáveis, jamais houve animosidade. Mas é facto que o mito persiste e há que desmistificar. Sara Pinto explica que o desconhecimento das comunidades rurais sobre o comportamento e a ecologia da espécie poderá explicar, em parte, este mito. Muitos podem até saber que o lobo se pode movimentar por longas distâncias, mas poucos conhecem o seu comportamento dispersivo e que, nesta fase, pode percorrer dezenas de quilómetros e colonizar locais onde antes não existiam, bem como retornar a outros anteriormente ocupados.
Lobo-ibérico. Fotografia Sara Pinto/Palombar/Censo Nacional do Lobo-ibérico ICNF. |
O facto de passarem anos sem que seja detetado um lobo por habitantes locais num determinado lugar, não significa que um dia este não possa vir a surgir novamente, ou pela primeira vez, exatamente por causa desse seu comportamento dispersivo, sobretudo no que toca aos lobos mais jovens que estão à procura de estabelecer o seu próprio território. Quando ele aparece, não surgiu “do nada porque o soltaram”, chegou porque o lobo se movimenta por longas distâncias quando está em dispersão, e o seu rumo nem sempre é o mesmo, nem o local onde se fixa.
Em 2011, o lobo Slvac fez um percurso surpreendente de 2000 km da Eslovénia para Itália, onde se fixou, depois de ter encontrado uma fêmea dispersante. Biólogos da Universidade de Liubliana que lhe tinha colocado um colar com GPS seguiram a par e passo a sua impressionante saga migratória. Na Península Ibérica, apesar de a distância percorrida em movimentos dispersivos ou os territórios dos lobos ser bastante inferior, estima-se que possam percorrer, ainda assim, uma distância que poderá variar de 13 km a pouco mais de 50 km. Em média 34 km.
Censo: uma ferramenta fundamental
É importante compreender e conhecer melhor a espécie para saber coabitar com ela e respeitá-la, afinal, o território é de todos, animais e pessoas. Saber acolhê-la, o Nordeste Transmontano também é o seu lugar, sem descurar as medidas que mitigam e reduzem os conflitos e combatem as ameaças mais evidentes para o lobo, como com a atividade pecuária e os casos de perseguição ilegal, por exemplo.
O Nordeste Transmontano é mesmo um santuário para a espécie e existem poucos casos de ataques contra animais domésticos nessa região. Há diversidade e um número satisfatório de presas selvagens, como javalis e corços, que os lobos preferem. É a sua dieta de eleição.
Lobo-ibérico. Fotografia Sara Pinto/Palombar/Censo Nacional do Lobo-ibérico ICNF. |
Conhecer por onde anda o lobo é essencial para adotar melhores medidas de conservação e gestão da espécie. O censo é uma ferramenta essencial. Pretende determinar a presença, o número e a localização das alcateias atualmente existentes, a ocorrência de reprodução das alcateias identificadas, bem como compilar toda a informação existente para cada alcateia/zona de presença da espécie, e ainda obter outras informações sobre o lobo-ibérico. O propósito final é conhecer a área de distribuição atual da espécie em Portugal, bem como o número e situação dos seus grupos familiares.
Quantos lobos há em Portugal?
De acordo com dados do último censo nacional da espécie realizado em 2002-2003 e cujos resultados foram publicados em 2005, existiam, na altura, cerca de 300 lobos e 51 alcateias confirmadas. A área onde ocorriam abrangia cerca de 20 000 km², o que representa apenas 20% do seu território histórico. O lobo é uma espécie “Em perigo” de extinção e está protegida pela legislação nacional e europeia. Em Portugal, a lei de proteção do lobo é de longa data: 1988.
Lobo-ibérico. Fotografia Sara Pinto/Palombar/Censo Nacional do Lobo Ibérico ICNF. |
Terminada a fase dos trabalhos de campo do novo censo, os dados de todos os lotes serão agora compilados e constarão de um relatório final, cujos resultados deverão ser divulgados pelo ICNF em 2023. O conhecimento sobre a presença e distribuição, no território nacional, desta espécie emblemática e histórica da Península Ibérica, é fulcral para seguir com a missão de garantir a sua proteção. Ficamos a aguardar, convictos de que, ao percorrer montes, sendas e vales, com os sentidos aguçados, poderemos sempre vê-lo, ouvi-lo, ou simplesmente pensar e sentir que está ali, onde pertence.
Além de Sara Pinto, a equipa da Palombar responsável pelos trabalhos no “Lote 3 - Nordeste Transmontano” do Censo Nacional do Lobo-Ibérico 2019-2021 integrou os biólogos João Santos e Duarte Cadete, este último da empresa Dear Wolf.
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