domingo, 3 de setembro de 2023

Casas de pasto, tabernas e outros estabelecimentos de Bragança em 1931

Permita-se-nos mais uma breve paragem, que parece justificar-se, para falar de aspetos que têm que ver com o quotidiano da urbe. A partir do “Registo das licenças do regulamento Distrital do Governo Civil de Bragança” para o ano de 1931, foi possível proceder ao levantamento de alguns estabelecimentos comerciais que existiam na Cidade, de algumas atividades que se exerciam e de algumas iniciativas que se tomavam.

Típica cozinha antiga do Concelho de Bragança

Salazar, que em julho de 1932 se tornava Presidente do Conselho de jure, já era o líder da “Ditadura Nacional”.
O Estado Novo aproximava-se. As alterações da situação política ter-se-iam refletido pouco na modificação do parque comercial da Cidade. É natural que algumas melhorias económicas – que se vinham a registar desde os últimos anos do regime republicano – tivessem animado um pouco este tipo de negócios.
De realçar o número de “casas de pasto” e de tabernas, as “tascas”. Significativa, ainda, a venda de vinho de colheitas particulares que se realizava em adegas e armazéns: para vender ao público, para ter a porta aberta, ainda que fosse circunstancial e provisoriamente, era necessário obter uma licença. Em suma, o comércio do vinho estava presente, em força, na malha urbana.
A maior incidência destas “casas” ou tabernas nota-se, como é compreensível, nas artérias principais, de maior dinamismo económico. A Rua Alexandre Herculano, que também dava entrada a muita gente que vinha do sul, é a que regista maior concentração de casas de pasto. Para estarem abertas para além da hora regulamentar, tinham que obter, mediante o pagamento de uma taxa, uma licença especial, que cobria normalmente um semestre – esta licença é pedida, sobretudo, pelas tabernas. Nem todos estes estabelecimentos eram iguais: era provável que os das ruas periféricas e das zonas mais degradadas apresentassem piores condições. São conhecidas as funções que tinham e os serviços que prestavam: comia-se, bebia-se, petiscava-se, confraternizava-se…
Casas de pasto e tabernas eram também importantes espaços de convivialidade e de sociabilidade.
Aí se trocavam ideias e palavras, aí se convivia… Mas era, sobretudo, nas tabernas que se convivia e “desconvivia”, que se celebravam alegrias e se afogavam mágoas e tristezas em quartilhos de vinho, não raras vezes de qualidade duvidosa; que havia “animação cultural”, que se cantava e tocava, que se ouviam cantos e descantes. Algumas tabernas tinham instrumentos próprios, guitarras e violas; tocadores e cantadores faziam a ronda das tascas.
Procuradas e frequentadas, fundamentalmente, por elementos das classes baixas, com uma clientela quase exclusivamente masculina, eram palco, com alguma frequência, de desavenças e de desacatos. Casas de pasto e tabernas, sendo estabelecimentos que muito se repetem, acabam por denunciar, a seu modo, marcas do que seria ainda a “sociologia rural” do aglomerado – a “tasca” era, muitas vezes, o único estabelecimento que existia nas aldeias, como se pode comprovar pelas licenças que são pedidas para o Distrito. Das “adegas” de casas particulares, que se espalham por toda a Cidade, pode dizer-se que também “denunciam” esse lado mais rústico do aglomerado.
As casas de pasto, assim denominadas e registadas, eram em maior número do que as tabernas. Por vezes, a fronteira entre umas e outras devia ser muito ténue. Na categoria de casas de pasto devia haver uma diferenciação um pouco maior, e uma maior variedade de oferta. Umas e outras acolhiam, também, muitos aldeões que se deslocavam à Cidade. 


Nos dias de feira aumentava a afluência das gentes dos campos e a urbe conhecia, normalmente, uma vida e uma animação inusitadas. Era, sobretudo, nestas casas, onde se bebia e comia, que esse acréscimo de frequência mais se fazia sentir. Fenómenos semelhantes ocorriam em dias festivos: gentes da Cidade e forasteiros animavam o burgo, emprestando a estas casas uma maior animação. Eram dias em que, muito naturalmente, todas as casas que tinham porta aberta registavam um acréscimo de movimento.
Muitos dos produtos a comprar tinham que ser adquiridos na Cidade, porque não era possível obtê-los na maioria esmagadora dos povoados e aldeias. Serviços que os camponeses tinham de consultar e frequentar, aqui se localizavam. Transações de produtos agrícolas também se processavam, em boa medida, no aglomerado urbano, em especial nos dias de feira.
Constam do “registo das licenças” do Governo Civil as “casas” que enunciámos em título e outras de diferentes tipologias. Não figuravam as que não estavam sujeitas à renovação anual de licença ou a autorizações episódicas: as lojas, os estabelecimentos e os armazéns de produtos comestíveis, de fazendas, de produtos domésticos, de materiais de construção, de mobiliário… Também não aparecem lojas e oficinas como alfaiatarias, casas de modistas e costureiras, chapelarias, sapatarias, tipografias.
As casas de pasto, num total de 20, estavam assim distribuídas: três na Rua Almirante Reis; sete na Rua Alexandre Herculano; quatro na Rua Abílio Beça; havia uma destas unidades em cada uma das seguintes ruas: 5 de Outubro, Emídio Navarro, João da Cruz, Loreto, Cidadela e Picadeiro.
A geografia das 11 tabernas era a seguinte: três na Avenida João da Cruz, a artéria da estação do caminho-de-ferro; duas na Rua Marquês de Pombal; e as ruas 1.º de Dezembro, Almirante Reis, do Norte, Cidadela, Largo do Toural e Vila do Bispo, tinham cada uma a sua taberna.
Para venda de vinho de colheita própria, foram registadas licenças para cerca de 25 postos de comercialização, adegas e armazéns, assim distribuídos: Rua Almirante Reis, Rua dos Combatentes, Rua do Picadeiro, Costa Grande, Rua de Santo António, Avenida 5 de Outubro, Rua Alexandre Herculano (várias), Rua Abílio Beça, Rua Trindade Coelho, Praça Camões, Rua do Loreto, Rua de S. João, Rua dos Fornos, Rua dos Batoques, Além do Rio, Vila do Bispo, Viela do Arco, Engenheiro José Beça, Travessa do Tombeirinho, Rua do Passo. Significa, por conseguinte, que havia um número razoável de proprietários agrícolas que dispunham de vinho para venda. Detetam-se alguns vendedores descendentes da velha “aristocracia” – Leitão Bandeira, Leitão Bandeira Beça; um ou outro proprietário não residente. Guilhermina Maria Teixeira vende nos armazéns da Rua Almirante Reis e na
Estacada.

Perspetiva atual da Costa Grande, onde existiam várias adegas e armazéns

No âmbito deste tipo de casas, aparece registada uma cervejaria na Praça da Sé. O proprietário pagou uma licença para ter a porta aberta “até à hora regulamentar” e uma outra para abrir depois de recolher.
No que respeita ao equipamento hoteleiro, deparamos com licenças pedidas apenas para três unidades: o Hotel Moderno, de Manoel da Silva Moura, na Rua Almirante Reis, com um café que funcionava no mesmo edifício, pedindo uma licença especial para ter a porta aberta depois de recolher (esta empresa mantém-se na família, ao longo de quase todo o século XX); o Hotel de Albino dos Anjos Pires (viúva), que se localizava nesta mesma rua; e o Hotel de Manuel Garcia, situado na Avenida João da Cruz.
A António Augusto Dias é dada licença “para poder ter aberta a sua loja de câmbio” na Praça da Sé. Aqui e na Rua dos Combatentes da Grande Guerra funcionavam “salas de cortar cabelo”.
Venda de bilhetes e de cautelas de lotaria realizava-se numa casa da Rua Abílio Beça; existia outra na Almirante Reis e uma terceira na 5 de Outubro, que também vendia “cautelas e bilhetes de lotaria”.
A viúva de Francisco Inácio Teixeira – uma das grandes casas comerciais que havia prosperado na Cidade –, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, vendia “tabaco por grosso”.
Na Rua Abílio Beça, Luís José de Carvalho era proprietário de um estabelecimento que comercializava “armas de caça ou de sala”.
Um “vendilhão ambulante”, “acidentalmente em Bragança”, recebe licença para “poder realizar a venda ambulante de lãs e algodões”.
Associações cívicas, recreativas e profissionais deviam ter autorização para poder funcionar. Em 1930, é concedida licença à Direção da Associação de Recreio “Centro Republicano Emídio Garcia”, ainda assim denominada, para poder ter aberta a sua Associação. No pedido da licença para o segundo semestre, em 1931, desaparece a designação de Centro Republicano. É também requerida licença pela Direção da Associação Comercial e Industrial de Bragança.
No que respeita ao mundo dos espetáculos, surgem licenças previsíveis e outras um pouco inesperadas. É concedida licença a Adriano Rodrigues para “dar espetáculos públicos e cinema” no Teatro Camões. Dá-se licença, de 17 de novembro a 31 de dezembro – no período das festividades natalícias –, a Manoel de Silva Moura, do Hotel Moderno, para espetáculos públicos de cinema.
Deparamos, ainda, com autorizações para a realização de bailes de Carnaval, na Associação de Socorros Mútuos dos Artistas. O proprietário do Hotel Moderno também solicitou licença para esses dias. São concedidas, ainda, autorizações para outros bailes, noutros períodos, no salão da Associação Artística, e ao proprietário do Hotel Moderno, para poder dar bailes públicos. Neste último caso, e pelo que fomos vendo, estamos na presença de um ativo empresário da hotelaria e da restauração – hotel, café –, mas que também explorava as “indústrias do lazer”.
Havia oferta de serviços e de espetáculos vindos de fora. Concede-se licença a um indivíduo, “acidentalmente residente” em Bragança, para dar “espetáculos públicos” que consistiam em “exposição zoológica” e “tiro ao alvo”, no Largo de Santo António.
Por ocasião das festas, havia que tirar licenças para “queimar foguetes”. A “Comissão de festejos do Senhor da Piedade”, que se realizavam a 15 e 16 de agosto, pede licença, no dia 14, para “queimar fogo”. Em nome individual (Alípio Augusto Falcão), solicita-se autorização para “queimar foguetes” nos dias 21, 29 e 30 de agosto, por ocasião das festas da Senhora das Graças. No cartaz de 1928, que anuncia estas festas, de 23 a 27 de agosto, o elemento laico – figura da República que ostenta na mão as armas da Cidade – tem ainda um tratamento mais relevante do que a figura religiosa da Senhora. Para as festas do Senhor dos Aflitos, a “queima de foguetes” devia acontecer nos dias 4, 12 e 13 de setembro.


Aqui estão, segundo pensamos, as principais festas da Cidade, com uma incidência no mês de agosto. Apesar da dimensão profana, apresentavam já uma significativa componente de inspiração religiosa e eram tuteladas e exploradas pela Igreja. A mesma Igreja que recuperava terreno a olhos vistos e que se preparava para “recatolicizar” o País, a mesma Igreja que tinha ajudado a “engendrar” Salazar e que iria continuar a apoiar o homem que, cada vez mais, se afirmaria como “Chefe” da Nação.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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