Só quem nunca pensou chegou alguma vez a uma conclusão. Pensar é hesitar. Os homens de ação nunca pensam.
Fernando Pessoa (1888-1935)
Escritor português
Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Naci tomou a dianteira em direção ao pai, logo seguido por todos os outros, a mole de curiosos que se reunia em volta deles, abriu alas para que chegassem ao chefe.
Erem abraçou brevemente o filho e ouviu com atenção o relato nervoso do que acontecera, enquanto verificava que quase todos ostentavam ferimentos, a maioria ligeiros.
Nehir e Zia observaram o jovem que jazia desacordado na padiola a respirar curta e aflitivamente; tinha, como os outros, o cabelo escuro entrançado e decorado com esferas brilhantes, sobrancelhas espessas e o rosto pálido alongado, atravessado por um ferimento que sangrava abundantemente. Envergava uma túnica comprida castanha que lhe chegava aos joelhos e ostentava uma placa reluzente, marcada com traços, ao pescoço. Os pés e as pernas estavam envoltos em várias tiras de couro que seguravam uma mais grossa que lhe protegia a sola dos pés. A curandeira indicou que o levassem para a tenda dela, enquanto a mãe, ajudada por outras mulheres, começou a cuidar dos feridos menos graves.
Erem olhou com desconfiança para os seis altos e silenciosos guerreiros que seguiram o ferido para a tenda. Todos traziam o cabelo igual, com pequenas variantes, vestiam túnicas semelhantes e calçavam sandálias… tudo manufaturado com grande perfeição. Nem os melhores artesãos do clã conseguiriam reproduzir qualquer daquelas peças.
Naci fez tenção de os seguir, mas o pai tocou-lhe no braço e pediu-lhe que explicasse o que acontecera e quem eram os estranhos. Juntou-se de imediato grande parte do clã para escutar.
— Temos dois belos auroques para ir buscar. — Cemil aproximou-se também, sorrindo para o irmão, havia uma nódoa negra na face direita e um corte na testa que eram as suas mais recentes “medalhas” e os dentes avermelhados exibiam um espaço negro onde haviam desaparecido alguns. — Vamos é ter de os dividir com os nossos novos amigos.
— Mas que são eles? — Era evidente a suspeição de todos, verbalizada por Lemi, que, entretanto, se juntara para saber as novidades.
— Dizem que o seu povo se chama Hati e vivem numa grande povoação toda construída em pedra. Para nós, são o povo das cascatas que se localiza a cerca de dois dias subindo o rio. — Esclareceu Cemil limpando um fio de sangue que lhe escorria para a barba. — O povoado chama-se Hatiweik falam como nós, mas há muitas palavras que não entendemos.
— Estávamos escondidos a vigiar uma enorme manada de auroques, havia uma fêmea mais pequena que se distanciava lentamente dos outros. — Começou a contar Naci. — Esperávamos que estivesse longe o suficiente para o apanharmos sem que o resto da manada se apercebesse…
— … quando aqueles malucos apareceram vindos não sei de onde a atacar o animal que nós vigiávamos. — Continuou Cemil rindo com a sua boca vermelha. — Claro que um enorme macho, que estava por perto, investiu sobre eles assim que se mostraram.
— Num instante, a presa, os estrangeiros e o terrível macho corriam todos na nossa direção. — Naci arregalou os olhos e ergueu as mãos simulando as hastes do auroque.
— Aqui o teu filho, — Cemil colocou o braço sobre o filho do chefe —, sem deixar que o medo o vencesse, ergueu-se da vegetação e atirou a lança certeira sobre o pescoço da nossa presa. O pior é que já estavam todos em cima de nós e eu demorei muito a levantar-me.
— Foi uma enorme confusão. — Confirmou Naci rindo-se com vontade. — Assustaram-se todos connosco e o macho, que vinha logo atrás, começou a distribuir cornadas em todas as direções.
— Quando dei por mim, — acrescentou excitadamente Cemil, exibindo mais uma vez a falta de dentes na boca ensanguentada —, voava de cara contra uma pedra.
— Eu levei com um dos Hati em cima. — Continuou o filho do chefe. — Depois o auroque interessou-se por outro deles e ainda lhe deu umas boas pancadas, antes de nós todos juntos acabarmos com ele.
— Ainda bem que os deuses vos trouxeram a salvo a todos. — Erem suspirou de alívio, mas logo acrescentou, batendo nas costas do irmão e rindo: — A uns mais inteiros que outros.
Todos riram com gosto, mas logo o chefe acrescentou: — Falem com Lemi para terem dois grupos a sair às primeiras luzes e trazer as carcaças da vossa excelente caçada. Eu agora verei como está o estrangeiro.
A tenda de Nehir era invulgarmente grande; dava para estar em pé com uma criança às costas e cabiam três homens deitados ao comprido e quatro à largura. As peles de auroque, cozidas umas às outras, eram suportadas por enormes presas de mamute. Fora o primeiro lar de Erem e da família antes do chefe se decidir trocar por uma casa de pedra, mais pequena e logo mais fácil de aquecer. A filha não os quis acompanhar e continuou lá com o irmão Nuri, posteriormente assassinado pelos homens-macaco. Atualmente, aquele era o local onde todos os feridos e doentes recorriam, antes mesmo de ir pedir a Zia que intercedesse junto dos deuses.
Erem, acompanhado de Alim, que chegara, entretanto, informado do que se passara na caçada, aproximaram-se da entrada da tenda. Alguns membros do clã tentavam convencer os dois estrangeiros de que, se alguém podia salvar o seu companheiro, era aquela curandeira. Calaram-se ao avistar os recém-chegados.
O chefe aproveitou para deitar mais uma mirada ao vestuário dos dois jovens que lhe devolveram uma pequena, mas respeitosa inclinação de cabeça, enquanto franqueavam a entrada.
Toda a tenda estava na penumbra, apenas iluminada pela luz vermelha do braseiro ao centro e o pequeno recipiente de argila, com gordura, que ardia na mão da curandeira. O estrangeiro estava deitado no chão, sem a túnica, apenas com um pedaço de tecido embrulhado na cinta.
Nehir, de joelhos, já havia limpado o longo ferimento do rosto do paciente e observava-lhe o pescoço, enquanto ele respirava com dificuldade em inspirações curtas e rápidas. A pele das faces tornava-se azulada e por vezes abria muito os olhos, como um peixe fora de água. Os braços batiam no chão alternadamente e empurrava com os pés, como se quisesse afastar-se de alguma coisa.
A curandeira olhou com preocupação para o pai e depois para o doente.
— Escapa? — Quis saber Erem.
— Não sei. — Ela fez uma careta com os dentes cerrados. — Está muito mal. Não consegue que o ar entre nele e se continuar assim morrerá em pouco tempo.
— Mas não tem furos no peito nem nas costas. — Observou o chefe.
— Pois não. — A filha concordou, tornando a olhar para o estrangeiro que parecia cada vez mais aflito. — Mas tem o pescoço muito vermelho e parece que não o consegue mexer. Acho que o espírito zangado do auroque que eles mataram se agarrou ali e vai sufocá-lo.
Zia entrou na tenda no preciso momento em que estas palavras eram proferidas. Examinou o pescoço do paciente, afastando-lhe as mãos com que se debatia.
— Não podemos fazer uma oração para expulsar o mal? — Sugeriu Erem, torcendo a boca em desagrado. — Um sacrifício com o fígado do animal? O coração?
— Acho que morre antes disso. — Concluiu Zia para os outros dois, antes de se voltar para a filha: — Ainda te lembras, quando estávamos com Birol, de como Nida, a mulher do xamã Gokai salvou o teu tio depois do ataque do urso?
— Eu era pequena, mas lembro-me bem. — Nehir baixou os olhos. — Também já me lembrei disso, mas tenho medo de o fazer.
— Fez um sacrifício com a cabeça do urso e as pontas das lanças dos guerreiros que o mataram… — Erem recordava-se — … ao por do sol!
— Ele não aguenta até ao por do sol. — Sentenciou Zia. — Além disso, não foi só o sacrifício que Gokai fez…
Um gemido alto, apesar de sufocado, fez com que os companheiros do ferido entrassem alarmados.
— … Nida fez-lhe um buraco para entrar o ar. — Concluiu Nehir sem levantar os olhos.
— Um buraco? — Alarmou-se um dos estrangeiros?
— Não consegues salvar Tibaro? — Quase sussurrou o outro, abordando diretamente Nehir.
— Ele tem um mau espírito, possivelmente o auroque que mataram, no pescoço e não o deixa respirar. — Atirou Zia de chofre.
— E tu queres cortar-lhe o pescoço? — O primeiro dos estrangeiros indignou-se.
— Espera, Himono. — Tornou o outro, antes de questionar, desta vez, Zia. — Achas que o salvas? Que pensas fazer?
— Já vimos salvar um parente nosso com o mesmo problema há muito tempo. — Explicou a mulher do chefe. — Não sabemos se resulta, mas, se não fizermos nada, só poderemos confiar nas orações a Swol. Penso que não verá os primeiros alvores.
— Mas… — o chamado Himono continuava escandalizado —… cortar-lhe o pescoço? Estás louco Kiala? Temos de o levar para casa, para Mirsulo, ele saberá o que fazer.
— Não é cortar o pescoço, é apenas um buraco… — tentou esclarecer Nehir.
— Mirsulo é tão curandeiro como tu ou eu. — Sentenciou Kiala. — Teria de ser o curandeiro Savirio e não sei se aguentará até lá.
— São livres de partir quando quiserem, como eram livres quando chegaram cá. — Esclareceu Erem. — O vosso amigo está muito mal e se a minha mulher e filha dizem que não escapa se não se fizer nada, acredito que assim será. Se não quiserem fazer nada, nada faremos. Se quiserem levá-lo ao vosso curandeiro, enviarei alguns homens para vos acompanhar. De todas as formas, faremos um sacrifício no santuário, assim que formos buscar a cabeça e as mãos do auroque, para que Swol ajude a libertar os ares para o vosso amigo.
— São precisos dois dias para chegar lá, com todos saudáveis. Com ele assim, levaremos mais de três. Mandamos dois dos nossos avisar Mirsulo do sucedido com o filho, mas serão dois dias para lá e outros dois para cá. — Concluiu o chamado Kiala. — Também compreendo que ele não aguentará de nenhuma forma. — Baixou os olhos pensativamente.
— O sacrifício deve ser realizado ao nascer do dia ou ao cair da noite. — Explicou Zia. — Não podemos falhar. Se aparecer um pouquinho do sol nas montanhas do nascente antes de começarmos, terá de ser adiado para o por-do-sol. Se, nessa altura, já não houver luz nas montanhas de poente, não se poderá começar e adia-se para o dia seguinte…
Por fim, Kiala exclamou, decidido: — Iremos buscar a cabeça e as mãos da besta. Com a tua autorização, pedirei a ajuda de Naci e mais alguns.
— Podes dispor de tudo o que é nosso para salvar este homem. — Acedeu Erem.
— Sei que Mirsulo ficará furioso, se Tibaro estiver morto quando ele chegar, mas mais furioso ficará se souber que nada fizemos para o salvar. — Kiala falou diretamente para o companheiro. — Agora deixemos os curandeiros trabalhar.
Erem abraçou brevemente o filho e ouviu com atenção o relato nervoso do que acontecera, enquanto verificava que quase todos ostentavam ferimentos, a maioria ligeiros.
Nehir e Zia observaram o jovem que jazia desacordado na padiola a respirar curta e aflitivamente; tinha, como os outros, o cabelo escuro entrançado e decorado com esferas brilhantes, sobrancelhas espessas e o rosto pálido alongado, atravessado por um ferimento que sangrava abundantemente. Envergava uma túnica comprida castanha que lhe chegava aos joelhos e ostentava uma placa reluzente, marcada com traços, ao pescoço. Os pés e as pernas estavam envoltos em várias tiras de couro que seguravam uma mais grossa que lhe protegia a sola dos pés. A curandeira indicou que o levassem para a tenda dela, enquanto a mãe, ajudada por outras mulheres, começou a cuidar dos feridos menos graves.
Erem olhou com desconfiança para os seis altos e silenciosos guerreiros que seguiram o ferido para a tenda. Todos traziam o cabelo igual, com pequenas variantes, vestiam túnicas semelhantes e calçavam sandálias… tudo manufaturado com grande perfeição. Nem os melhores artesãos do clã conseguiriam reproduzir qualquer daquelas peças.
Naci fez tenção de os seguir, mas o pai tocou-lhe no braço e pediu-lhe que explicasse o que acontecera e quem eram os estranhos. Juntou-se de imediato grande parte do clã para escutar.
— Temos dois belos auroques para ir buscar. — Cemil aproximou-se também, sorrindo para o irmão, havia uma nódoa negra na face direita e um corte na testa que eram as suas mais recentes “medalhas” e os dentes avermelhados exibiam um espaço negro onde haviam desaparecido alguns. — Vamos é ter de os dividir com os nossos novos amigos.
— Mas que são eles? — Era evidente a suspeição de todos, verbalizada por Lemi, que, entretanto, se juntara para saber as novidades.
— Dizem que o seu povo se chama Hati e vivem numa grande povoação toda construída em pedra. Para nós, são o povo das cascatas que se localiza a cerca de dois dias subindo o rio. — Esclareceu Cemil limpando um fio de sangue que lhe escorria para a barba. — O povoado chama-se Hatiweik falam como nós, mas há muitas palavras que não entendemos.
— Estávamos escondidos a vigiar uma enorme manada de auroques, havia uma fêmea mais pequena que se distanciava lentamente dos outros. — Começou a contar Naci. — Esperávamos que estivesse longe o suficiente para o apanharmos sem que o resto da manada se apercebesse…
— … quando aqueles malucos apareceram vindos não sei de onde a atacar o animal que nós vigiávamos. — Continuou Cemil rindo com a sua boca vermelha. — Claro que um enorme macho, que estava por perto, investiu sobre eles assim que se mostraram.
— Num instante, a presa, os estrangeiros e o terrível macho corriam todos na nossa direção. — Naci arregalou os olhos e ergueu as mãos simulando as hastes do auroque.
— Aqui o teu filho, — Cemil colocou o braço sobre o filho do chefe —, sem deixar que o medo o vencesse, ergueu-se da vegetação e atirou a lança certeira sobre o pescoço da nossa presa. O pior é que já estavam todos em cima de nós e eu demorei muito a levantar-me.
— Foi uma enorme confusão. — Confirmou Naci rindo-se com vontade. — Assustaram-se todos connosco e o macho, que vinha logo atrás, começou a distribuir cornadas em todas as direções.
— Quando dei por mim, — acrescentou excitadamente Cemil, exibindo mais uma vez a falta de dentes na boca ensanguentada —, voava de cara contra uma pedra.
— Eu levei com um dos Hati em cima. — Continuou o filho do chefe. — Depois o auroque interessou-se por outro deles e ainda lhe deu umas boas pancadas, antes de nós todos juntos acabarmos com ele.
— Ainda bem que os deuses vos trouxeram a salvo a todos. — Erem suspirou de alívio, mas logo acrescentou, batendo nas costas do irmão e rindo: — A uns mais inteiros que outros.
Todos riram com gosto, mas logo o chefe acrescentou: — Falem com Lemi para terem dois grupos a sair às primeiras luzes e trazer as carcaças da vossa excelente caçada. Eu agora verei como está o estrangeiro.
A tenda de Nehir era invulgarmente grande; dava para estar em pé com uma criança às costas e cabiam três homens deitados ao comprido e quatro à largura. As peles de auroque, cozidas umas às outras, eram suportadas por enormes presas de mamute. Fora o primeiro lar de Erem e da família antes do chefe se decidir trocar por uma casa de pedra, mais pequena e logo mais fácil de aquecer. A filha não os quis acompanhar e continuou lá com o irmão Nuri, posteriormente assassinado pelos homens-macaco. Atualmente, aquele era o local onde todos os feridos e doentes recorriam, antes mesmo de ir pedir a Zia que intercedesse junto dos deuses.
Erem, acompanhado de Alim, que chegara, entretanto, informado do que se passara na caçada, aproximaram-se da entrada da tenda. Alguns membros do clã tentavam convencer os dois estrangeiros de que, se alguém podia salvar o seu companheiro, era aquela curandeira. Calaram-se ao avistar os recém-chegados.
O chefe aproveitou para deitar mais uma mirada ao vestuário dos dois jovens que lhe devolveram uma pequena, mas respeitosa inclinação de cabeça, enquanto franqueavam a entrada.
Toda a tenda estava na penumbra, apenas iluminada pela luz vermelha do braseiro ao centro e o pequeno recipiente de argila, com gordura, que ardia na mão da curandeira. O estrangeiro estava deitado no chão, sem a túnica, apenas com um pedaço de tecido embrulhado na cinta.
Nehir, de joelhos, já havia limpado o longo ferimento do rosto do paciente e observava-lhe o pescoço, enquanto ele respirava com dificuldade em inspirações curtas e rápidas. A pele das faces tornava-se azulada e por vezes abria muito os olhos, como um peixe fora de água. Os braços batiam no chão alternadamente e empurrava com os pés, como se quisesse afastar-se de alguma coisa.
A curandeira olhou com preocupação para o pai e depois para o doente.
— Escapa? — Quis saber Erem.
— Não sei. — Ela fez uma careta com os dentes cerrados. — Está muito mal. Não consegue que o ar entre nele e se continuar assim morrerá em pouco tempo.
— Mas não tem furos no peito nem nas costas. — Observou o chefe.
— Pois não. — A filha concordou, tornando a olhar para o estrangeiro que parecia cada vez mais aflito. — Mas tem o pescoço muito vermelho e parece que não o consegue mexer. Acho que o espírito zangado do auroque que eles mataram se agarrou ali e vai sufocá-lo.
Zia entrou na tenda no preciso momento em que estas palavras eram proferidas. Examinou o pescoço do paciente, afastando-lhe as mãos com que se debatia.
— Não podemos fazer uma oração para expulsar o mal? — Sugeriu Erem, torcendo a boca em desagrado. — Um sacrifício com o fígado do animal? O coração?
— Acho que morre antes disso. — Concluiu Zia para os outros dois, antes de se voltar para a filha: — Ainda te lembras, quando estávamos com Birol, de como Nida, a mulher do xamã Gokai salvou o teu tio depois do ataque do urso?
— Eu era pequena, mas lembro-me bem. — Nehir baixou os olhos. — Também já me lembrei disso, mas tenho medo de o fazer.
— Fez um sacrifício com a cabeça do urso e as pontas das lanças dos guerreiros que o mataram… — Erem recordava-se — … ao por do sol!
— Ele não aguenta até ao por do sol. — Sentenciou Zia. — Além disso, não foi só o sacrifício que Gokai fez…
Um gemido alto, apesar de sufocado, fez com que os companheiros do ferido entrassem alarmados.
— … Nida fez-lhe um buraco para entrar o ar. — Concluiu Nehir sem levantar os olhos.
— Um buraco? — Alarmou-se um dos estrangeiros?
— Não consegues salvar Tibaro? — Quase sussurrou o outro, abordando diretamente Nehir.
— Ele tem um mau espírito, possivelmente o auroque que mataram, no pescoço e não o deixa respirar. — Atirou Zia de chofre.
— E tu queres cortar-lhe o pescoço? — O primeiro dos estrangeiros indignou-se.
— Espera, Himono. — Tornou o outro, antes de questionar, desta vez, Zia. — Achas que o salvas? Que pensas fazer?
— Já vimos salvar um parente nosso com o mesmo problema há muito tempo. — Explicou a mulher do chefe. — Não sabemos se resulta, mas, se não fizermos nada, só poderemos confiar nas orações a Swol. Penso que não verá os primeiros alvores.
— Mas… — o chamado Himono continuava escandalizado —… cortar-lhe o pescoço? Estás louco Kiala? Temos de o levar para casa, para Mirsulo, ele saberá o que fazer.
— Não é cortar o pescoço, é apenas um buraco… — tentou esclarecer Nehir.
— Mirsulo é tão curandeiro como tu ou eu. — Sentenciou Kiala. — Teria de ser o curandeiro Savirio e não sei se aguentará até lá.
— São livres de partir quando quiserem, como eram livres quando chegaram cá. — Esclareceu Erem. — O vosso amigo está muito mal e se a minha mulher e filha dizem que não escapa se não se fizer nada, acredito que assim será. Se não quiserem fazer nada, nada faremos. Se quiserem levá-lo ao vosso curandeiro, enviarei alguns homens para vos acompanhar. De todas as formas, faremos um sacrifício no santuário, assim que formos buscar a cabeça e as mãos do auroque, para que Swol ajude a libertar os ares para o vosso amigo.
— São precisos dois dias para chegar lá, com todos saudáveis. Com ele assim, levaremos mais de três. Mandamos dois dos nossos avisar Mirsulo do sucedido com o filho, mas serão dois dias para lá e outros dois para cá. — Concluiu o chamado Kiala. — Também compreendo que ele não aguentará de nenhuma forma. — Baixou os olhos pensativamente.
— O sacrifício deve ser realizado ao nascer do dia ou ao cair da noite. — Explicou Zia. — Não podemos falhar. Se aparecer um pouquinho do sol nas montanhas do nascente antes de começarmos, terá de ser adiado para o por-do-sol. Se, nessa altura, já não houver luz nas montanhas de poente, não se poderá começar e adia-se para o dia seguinte…
Por fim, Kiala exclamou, decidido: — Iremos buscar a cabeça e as mãos da besta. Com a tua autorização, pedirei a ajuda de Naci e mais alguns.
— Podes dispor de tudo o que é nosso para salvar este homem. — Acedeu Erem.
— Sei que Mirsulo ficará furioso, se Tibaro estiver morto quando ele chegar, mas mais furioso ficará se souber que nada fizemos para o salvar. — Kiala falou diretamente para o companheiro. — Agora deixemos os curandeiros trabalhar.
Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.
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