quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Almiro Mateus, o médico “especialista em gente”, que dá consultas gratuitas e recebeu uma medalha de ouro de Penafiel

 Saiu de Torre de Moncorvo para estudar medicina em Coimbra. Prometeu que de lá só sairia para um sítio que tivesse cinema e uma equipa de futebol na 1ª divisão. Penafiel recebeu-o bem em 1985 e hoje, mesmo sem uma coisa nem outra, ofereceu-lhe uma medalha de ouro. Almiro Mateus, que presidiu ao Conselho Clínico e de Saúde Tâmega II do Vale do Sousa Sul, traz em cada conversa dezenas de histórias do que viveu nas consultas. E diz que “cada vez temos mais doutores e menos médicos”.

Rui Oliveira - Fotojornalista

Foi em dezembro de 2021, depois de uma conversa algo embaraçosa à mesa e com um bom prato de javali, que Almiro recebeu o convite para um “desafio maravilhoso”. O padre de Boelhe, sentado ao seu lado, aproveitou que saiu da mesa para fumar um charuto para o seguir e lhe pedir um favor em privado. “Tenho tanta gente aqui que não tem acesso ao centro de saúde, ou porque lhe falta médico, ou porque ninguém atende os telefones... Pedia-lhe que passasse umas receitinhas aos meus idosos”.

O médico disse-lhe que sim, que ele mandasse à secretária uma lista com as necessidades das pessoas e logo ele devolvia com as respectivas receitas. E voltou para a mesa.

Mais um bocado de javali, mais um copo, quando o padre voltou ao assunto. “Sabe, doutor, eu ando um bocado exausto porque, durante o confinamento, os idosos não tinham ninguém com quem falar. Tinham medo, isolavam-nos nos quartos, e eles estão perturbados. Se o doutor lhes pudesse dar uma palavra… Sabe o que é que eu fiz no tempo do confinamento? Semanalmente, eu acendia uma lamparina em todas as campas do cemitério de Boelhe”.

Almiro Mateus diz que saber do gesto do padre mexeu consigo. Saber que naquela aldeia de Penafiel havia a quem acudir ainda mais. E respondeu-lhe. “Ó padre, escreva aí: a partir de janeiro, eu venho cá de 15 em 15 dias, faço uma consulta gratuita ao sábado e não quero nem vinho, nem presuntos, nem salpicões, nem cabritos, nem queijo... não quero nada. Caso contrário, da mesma forma que entrei, eu saio”.

A partir de então, Boelhe preparou-se para receber Almiro, com um consultório improvisado dentro da associação de desenvolvimento e até placa com o seu nome na porta. No começo de janeiro, lá estava.

Um senhor de 84 anos era o primeiro paciente. “Ó doutor, eu sou diabético. Estas caixinhas de comprimidos sem receita custam cem euros. Queria ver se me podia passar umas receitas, porque a minha filha já ligou para o centro de saúde e ninguém atende; o meu genro já perdeu um dia de trabalho para lá ir e o médico não estava”.

Almiro passou três receitas, mas sentiu um certo desconforto no homem, olhando para os papéis e já caminhando no sentido da porta como quem tinha algo mais para dizer. “Sabe, doutor, eu tenho uma vergonha em mim”. Explicou-lhe que devia dez receitas à farmácia localizada mesmo ao lado de sua casa e, para não enfrentar os farmacêuticos, nos últimos meses já ia dar uma volta grande, com as pernas a ressentirem-se, até à segunda farmácia mais próxima.

Passou-lhe todas as que tinha em atraso, sob um olhar de orgulho do homem. Percebeu que tinha ali um novo fã, mas longe de si pensar no que aconteceria ao final da tarde. De carrinha mal estacionada e com alguma pressa, o genro do senhor chegou-lhe com batatas e cebolas para levar para casa. “Eu disse que não quero nada!”, repetiu Almiro. “Não, o senhor padre disse que não queria nem presuntos, nem coelhos, nem vinho, nem salpicão, nem leitões… Eu trago-lhe aqui umas batatinhas e umas cebolas”.

Almiro anuiu. Não tinha como ripostar um argumento assim. Estava ali explanada a razão pela qual aceitou o desafio de dar consultas aos idosos de Boelhe – e ainda o continua a comandar, mas também para os netos desses idosos, tios, emigrantes e até para pessoas de outras aldeias que sabem das consultas pro bono e lá vão. Encontrara ali, mais uma vez, o porquê de ter querido seguir medicina.

Rui Oliveira - Fotojornalista

A PALAVRA CURA

Depois de uma infância passada em Torre de Moncorvo e da juventude vivida na cidade dos doutores, Coimbra, onde chegou a morar numa república e a ter aulas de neurologia no Jardim da Sereia, Almiro queria assentar num sítio próximo do Porto – “tinha de ter cinema e um clube de futebol na 1ª divisão”.

Em 1985, Penafiel parecia-lhe bem para ficar com a esposa e a primeira filha, já nascida. “De facto, tinha um clube na 1ª divisão, tinha um cinema e estava próxima do Porto”, características que viria a perder dois anos depois de chegar.

O novo médico vinha motivado para romper com as formalidades que eram esperadas pela sua posição social na cidade. De sapatilhas e camisa “com a fralda de fora”, como ainda hoje, gostava de almoçar nas tascas olhadas de lado pelo seu superior, por considerar que “não eram sítio onde os doutores pudessem comer”.

QUERIA SER MÉDICO E NÃO DOUTOR. E QUE DIFERENÇA É ESSA, AFINAL?

Sentado no consultório da clínica Medifala, onde é diretor clínico depois de jubilado do Serviço Nacional de Saúde, Almiro diz que aprendeu em Coimbra que “se um médico não puder ajudar, ao menos não faça mal” e que “há uma enorme diferença entre ser médico e ser doutor e nós cada vez temos mais doutores e menos médicos”.

Das paredes do consultório sobressaem quadros, muitos deles oferecidos, e presépios, porque faz coleção. Um deles tem Maria, José e o menino Jesus de máscara – recordação dos tempos difíceis que Penafiel viveu com a pandemia de covid-19, quando ainda era presidente do Conselho Clínico e de Saúde Tâmega II do Vale do Sousa Sul. Se houve coisa que Penafiel lhe deu foi reconhecimento: a medalha de ouro também, mas sobretudo o respeito dos penafidelenses. E se houve coisa que pensa ter trazido a Penafiel, foi “a relação próxima para com as pessoas, o hábito de vestir a pele de cada doente”.

Os gatos estão por todo o lado. Percebemos que, mais do que por gostar de felinos, os doentes enchem-lhe o espaço com figuras destes animais por ser conhecido pela expressão “nem tudo o que mia é gato”. Isto é, “nem toda a tosse é pneumonia, mas pode ser. Nem toda a falta de menstruação é gravidez, mas pode ser”, explica. E a diferença da medicina geral e familiar, que sempre foi para si a primeira escolha, está em entrar no mundo do doente. Não lhe dar medicação para dormir antes de perceber o que é que lhe tira o sono. E ouvi-lo, porque a experiência diz-lhe que por vezes, só de falarem, os doentes já saem mais aliviados da consulta.

Dos 40 anos de medicina, as histórias saem-lhe de cor. Chegou a safar um idoso quando até o padre já lhe tinha ido a casa fazer a unção. “Estava com uma pneumonia mas ainda demorava a morrer e só morria se a família não o levasse ao hospital”. Desde então, todos os anos o senhor entregou-lhe um cabrito numa cesta de verga. “Marque este dia, 20 de julho. Enquanto eu for vivo, todos os vintes de julho eu vou trazer-lhe um cabrito. Eu sou o homem que o doutor visitou e estava morto”, recorda das palavras do idoso.

Chegou a abrir a USF de Castelo de Paiva no fatídico dia de 2017 com mais incêndios em Portugal, com a cidade toda em chamas. “Falei com um taxista amigo, atravessámos a serra a arder, abrimos o hospital, atendemos 40 pessoas e transferimos 20. E a população aderiu: vieram enfermeiros da zona ajudar, veio um colega médico. Aí é que se vê o que é ser solidário”, lembra também.

Rui Oliveira - Fotojornalista

DIAGNÓSTICO: O SNS PADECE DE UMA “HOSPITALITE”

Almiro diz que a medicina como a aprendeu está em vistas de extinção, com a especialidade de medicina geral e familiar a perder perceção de importância social e as pessoas a dirigirem-se cada vez mais à urgência.

“O dia em que um senhor doutor for à urgência e estiver lá nove horas sem que ninguém lhe diga nada, vai começar a perceber que vai ter de tratar melhor as pessoas”, envageliza. “Agora [o sistema] envia uma mensagem. “Aguarda análise”. Eu creio que não pode ser. Tem de haver alguém que venha à sala e diga que está mais demorado porque entretanto chegou um acidente. Perdemos tudo no dia em que o interface humano for substituído pelos ipads”.

Segundo o médico, as novas gerações são tecnicamente ótimas mas “fizeram a medicina em cruz”, respondendo a testes de escolha múltipla, e por isso, “têm uma visão de funil do diagnóstico”. Se uma “dor de barriga é na fossa ilíaca esquerda, então é apendicite”.

Mas nem tudo o que mia é gato. E por isso teme qual o futuro da medicina em Portugal.

“Esta cultura da malta nova, muito hospitalocêntrica, vai dar um rombo ao SNS”, acredita o médico jubilado. “A “hospitalite” não promove a relação próxima que as USF ainda vão mantendo com os doentes, de serem gestores desde a pré-concepção, ao bebé, ao adolescente, ao adulto, até ao idoso”.

Por isso, na consulta que ainda mantém no privado, grande parte das pessoas que lhe aparecem no consultório apenas querem uma segunda opinião. Muitas vezes, o médico não conseguiu dispensar os minutos suficientes para explicar o porquê de estar tudo bem.

Aos 66 anos, Almiro continua a ter agenda cheia. Todos os dias a secretária imprime uma folha A4 com as horas das consultas e dos compromissos e ele corta a tabela e cola-a na agenda. Não pensa abandonar a consulta a não ser à quarta à tarde, o pedaço de dia que reserva para cuidar das mais de 150 navalhas transmontanas ou para aparar as pontas aos Bonsais – e que desta vez destinou a receber o Expresso.

Joana Ascensão - Jornalista

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