Os habitantes de Trás-os-Montes (TOM), nomeadamente em Barroso vivem em comunidades fechadas, entre altas montanhas: Larouco e Gerês, Cabreira e Barroso, com fundos vales, colinas suaves, planaltos e extensas planícies, ao longo dos rios Cávado, e Rabagão, povoados de lagos artificiais.
São aldeias pequenas, concentradas, de granito escuro e telha recente que substituiu o colmo negro, com ressaibos e parecenças aos castros celtas, que deram origem ao nosso povoamento medieval.
Região interior, de uma monotonia relaxante, sem indústrias, cada vez menos habitada, servida por ruas e estradas estreitas, recentemente alcatroadas. Esbarramos do lado norte com a Galiza irmã a comungar connosco no ancestralismo e pureza de tradições e língua.
Poucas escolas, a não ser a primária, que agora vai fechando pela desertificação galopante, O Transmontano aprendeu a ler e contar, apenas para emigrar, tirar a carta, e saber assinar o nome e pouco mais lhe serve o que aprendeu. Os que aprenderam algo mais voltam aos torrões ou emigram.
Casa c'anta caibas, terra c'anta veijas, afirma a ansiedade de espaço aberto, arável, e o conformismo ao desconforto da casa.
Ontem as famílias eram numerosas, hoje reduzidas ao casal e um, ou 2 filhos. A autoridade vai-se diluindo e a juventude é menos participante, e mais atraída pela extroversão ao meio tradicional.
Há uma separação de sexos, trabalhos e responsabilidades repartidas, serviços exclusivos, no profano e no religioso, que dão ao homem superioridade, exibida e persistente.
Sendo o homem um animal religioso, reconhece o homem de TOM que há um Deus que nos domina e governa. Bendita seja a luz do dia, bendito seja quem a cria... é a oração do Barrosão ao levantar. A religião é temida e respeitada porque dá respostas a todas as grandes inquietações que desde a nascença acompanham o nosso homem, que nasce religioso. E o transmontano tem à sua volta um universo religioso. O segredo surge fácil. A sua origem e o seu destino são perguntas que só no sagrado encontra resposta. No nascer, viver e morrer encontra sempre em tela de fundo o sagrado, que o atrai. E faz nascer e desenvolver uma mentalidade simbólica e uma cultura em que o homem se sente em simbiose com a vida e com o mundo.
A religiosidade é conatural ao Transmontano, e mistura-se com a magia e superstição indivisamente. Com a mesma certeza admite Deus e o demónio, as bruxas, videntes, santos, extravagâncias mágicas, espíritos que povoam a mente mágico- -religiosa do Transmontano.
O ciclo festivo do ano, é religioso, e mágico e ilude e aligeira e faz esquecer o peso da vida agrícola, económica, familiar, social.
Os santos de cada dia, os da paróquia e das redondezas são os necessários e bastantes para satisfazer a falta de médicos e restabelecer a saúde e necessidades afectivas e psíquicas do homem.
A procura dos santos e da magia aumenta na medida em que o descrédito do médico e da farmácia cresce.
Todas as festas religiosas são uma afirmação de presença do divino na vida, e também uma afirmação conjunta da comunidade como tal, força viva, actuante, dominante, que atrai as gentes e os vizinhos.
A festa congrega, famílias, amigos, estranhos que alargam a geografia de influência da terra e da família. Exibe-se, abre-se a casa, a adega, a cozinha, a caixa do pão e presunto.
O grande objectivo da festa é o equilíbrio da saúde, a satisfação de dívidas de vivos e mortos, aos santos, da parte da família e também dos animais domésticos de quem aquela depende.
O prazer da festa está na tentativa de encontrar o sagrado, apaziguar os santos, pagar dívidas sagradas, promessas, fazer novos contratos com o sagrado, regressar feliz da abundância de tudo quanto a festa lhe deu. O gosto de ver, sentir, apalpar o sagrado de perto, atrai o Homem Transmontano que sacraliza espaços, a rua, a casa, os objectos, as pessoas, a comida, o dinheiro, com o fim de contentar os santos para que vivam em paz com Deus e com os homens.
A crença é escrupulosa, inalterável, de efeito certo e rápido, infalível. Postas as condições, resultam os efeitos. Não admite alterações, é normativa, tem regras comummente aceites e exigidas, sem atitude crítica. Nestas qualidades e seu cumprimento assenta a eficácia e força mágica da festa, da religiosidade popular, da crença.
Não há casamento pobre... e a festa é o enlace profundo do profano como sagrado, do Homem com a divindade, que revela e exige abundância, generosidade, extravagância, alegria, drama, participação colectiva.
II – O Pão da festa
Igual que nas velhas civilizações orientais, bíblicas, as festas e comidas sagradas hoje verificadas e outras já desaparecidas, têm semelhança, paralelismo, sequência, continuidade histórica.
São compromissos com a divindade, promessas colectivamente propostas e aceites seladas pelo sagrado em que se envolvem.
No monte Sinai fez Javé aliança com o povo. Caso se cumpram as cláusulas, serei o vosso Deus, caso não virão os castigos, as pragas do Egipto, os gafanhotos. Lev. 26. Os Cananeus tinham com o Deus Baal as suas promessas.
A promessa compromete a divindade e a colectividade, o povo inteiro, a aldeia e exclui as outras, tanto do cumprimento, como do castigo.
A divindade escolhe o povo, o acto ritual, o dia e o local. A refeição é geralmente o sinal do acordo. As bênçãos e pragas de hoje são mais ou menos parecidas às da Bíblia, a peste, a fome, a guerra.
Por isso a festa não pode morrer, nem parar. Repete-se cada ano para que tudo siga bem.
Os grandes acordos de hoje, políticos e económicos e as grandes decisões tomam-se à mesa, ainda hoje: a boda, o pedir a noiva, o enterro, a festa do santo, as partilhas, os réis, a festa dos rapazes, a dos pastores, a das comadres, compadres, etc.
Existe ainda a tradição de imolar um animal. O touro, o anho, o cabrito. Os hebreus tinham já sacrifícios de comunhão mesmo sem sacerdotes. O animal morto era tripartido: uma parte para Deus, outra para o sacerdote, outra para o povo.
Os romanos nos altares e aras que ergueram por todo o lado nos fóculos, cipos e fossetes, repartiam carnes, sangue e vísceras com fins rituais.
Hoje os povos das diferentes civilizações seguem o mesmo caminho.
Por todo o País e ilhas os bodos (votos), em memória do espírito Santo nas ilhas e Ribatejo, e a outros santos como S. Sebastião, S. Brás, no Norte, Nossa Senhora na zona centro Leiria, Coimbra e Viseu, sobrevivem contra todos os ventos, carestias e marés, ainda para afastar as pestes, epidemias, fomes, guerras. As capelas de S. Sebastião estão situadas na entrada dos povos donde sopram os maus ventos ou donde vem as pragas às culturas.
O pão entra no ritual principal da festa. Na refeição é o elemento comum. Na região de Coimbra e Leiria os bodos são o pão levado em açafates, à cabeça dos mordomos. O pão da festa é o mimo das crianças.
O Pão é sagrado. Beija-se quando cai ao chão. Não se deve deixar cair, ou atirar com ele. Oferece-se aos Santos, às almas. Estas vêm ao lar comer as migalhas da mesa assim como o menino Jesus no Natal.
Tem uma certa perenidade, não apodrece o pão de S. Sebastião, S. Estevão, S. Lourenço, S. Brás. Pelo país dia 1 de Maio, e no Barroso dia 23 de Junho as maias colocam-se nas searas e nas casas para que o pão e a família sejam protegidas das pragas.
Dia da Ascenção o sacerdote faz rogações, procissões, ladainhas para afastar as pragas das colheitas sobretudo do pão.
Trazido para a eira, no fundo da meda faz-se uma cruz, já feita também no medoucho, e outra na coroa da meda.
A sacerdotisa que o amassa, traça sobre ele a cruz rogando: S. Mamede te levede, S. Vicente te acrescente, S. João te faça pão. E para que por fim saia perfeito e crescido, diz traçando a cruz com a pá na porta da fornalha: Cresça o pão no forno...
Ao partir o encerto tem que se fazer ainda uma cruz com a faca no pão do lado que assentou no forno.
O das festas rituais tinha forno próprio no adro, na casa do santo, do pároco, ou na casa dos mordomos. No Couto de Dornelas vão fazer um forno para a festa de S. Sebastião.
Este pão da festa foi novamente benzido na igreja ou em casa dos mordomos pelo sacerdote com água benta.
Levado depois para casa, não apodrece. É incorruptível. Participa do poder da divindade de curar e durar. Cura os presentes na festa e os que ficaram em casa, pessoas e animais.
Comia-se nos adros e igrejas primitivamente, nas festas e enterros. D. Manuel, alguns bispos e padres acabaram com alguns usos nalgumas terras, noutras passou a celebrar-se fora da igreja. Nos cemitérios à saída dos funerais ainda existe o uso em muitos povos.
Conforme o calendário o exige, a tradição o impõe, e a generosidade se mantém há prendas rituais que ainda sobrevivem.
Eis algumas.
Levar a cesta recheada de pão e géneros no parto do primeiro filho do vizinho. A chouriça dada aos afilhados dia de reis e Ano novo; o falar da Páscoa dado ao Padre, o alqueire de grão da primícia, as cabeceiras, pelo mortório; a água de S. Brás e o pão para as doenças da garganta; o pão da boda que ainda dura, as amêndoas da boda, o vinho que o namorado, que namora fora tem de pagar; o galo de Domingo gordo, morto e comido, as castanhas de S. Martinho e as fogueiras nos montes, as maias, castanhas do dia 1 de Maio para dores de cabeça; o leite que lavou os pés de S. Mamede bebido pela mãe que produz mais leite; o carolo dos enterros que se leva para casa e se come para aliviar o morto de penas e o vivo de doenças; as ervas e chás apanhadas na noite de S. João para tomar todo o ano; as carnes afumados e outras dadas aso santos e almas e leiloados aos Domingos ao fim da missa; os jantares do espírito Santo, nas Beiras entre a Páscoa e o Pentecostes, oferecidos pelos Mordomos; os reis de S. Sebastião em Valdanta e a comida oferecida pelos mordomos que fazem 25 anos de casados; a festa dos rapazes na zona de Bragança com a morte da vitela, comida em honra de S. Estevão em Dezembro; o abate de touros na festa do Espírito Santo em Leiria e Santarém; o cordeiro que se come dia de S. João, etc.
António Lourenço Fontes
Revista de Guimarães, n.º 103, 1993, pp. 101-107
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