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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Evocação da mátria Bragança

JC sobrevalorizava memórias de infância. Durante anos fora um admirador dos mares, da sua imensidão, mistério, sortilégio e temor. Evocava a História Trágico-Marítima que tanto o influenciara no liceu para se identificar com os pobres colonos e náufragos abandonados em terras hostis de gentios. Nesta fase madura, prezava mais as vagas das serranias transmontanas banhando as dunas de montes e fragas. Se as águas do mar em Portugal eram gélidas, não menos frias eram as montanhas da Bragança, cujas marés vivas surgiam com grandes nevões entre Dezembro e Fevereiro. Eternamente na sua memória, pintavam alva a paisagem de contrastes, autêntico estudo de paletas de cor durante o ano. Contraste com o verde eterno que viria a descobrir nos Açores. Esta beleza verde perene que até causa náuseas. 
Curiosamente, JC crescera e amadurecera a olhar o oceano, embevecido, apaixonado pelas ondas, seus movimentos, todo um ciclo lunar que o fascinava e no qual se deixava embalar enquanto escrevia poemas. Era no mar que encontrava a paz interior e a calma de que necessitava para resolver as suas contradições internas e os amores incorrespondidos. Com o passar dos anos voltara-se mais para o campo e as montanhas. Eram estes que lhe propiciavam a paz interior e a acalmia de que carecia para se concentrar. Foi assim que (2002) em Bragança recomeçou a escrever e nos Açores, (após 2005) olhando, com saudades transmontanas, para tremidos montes e vacas, desabrochou em pleno a sua veia croniqueira.
Em Bragança todos se habituaram a JC, ao longo dos anos, como um australiano que falava português, sem pressagiarem os seus antecedentes genéticos. Nem ele os confessava. Fora preciso enxergar nas entrelinhas enquanto coligia o Cancioneiro Transmontano 2005 (ed. Santa Casa da Misericórdia de Bragança. Lera testemunhos, lendas e contarelos. Redescobrira laços maternos de que andava arredado. Sempre soubera que provinha dessa enorme ilha chamada Trás-os-Montes, encravada no oceano dos sargaços e algas enleantes e viscosas em rija fraga, chamada Nordeste. 
Portugal profundo, chamavam-lhe os governantes como sinónimo de esquecido. Revisitara o baú das reminiscências. Recriara passos perdidos, há quarenta anos atrás, em aldeias, vilas e lugarejos perdidos na memória de tempos idos. Visitou-os a todos. Raras vezes encontrou os coevos dos percursos da infância e adolescência A desertificação humana maciça e os limites da longevidade haviam impossibilitado a reconstrução. Poucos sobravam para falar desses tempos. Alguns, mais novos, mencionariam a memória dos seus avós maternos. Do tempo das aldeias pujantes e vibrantes. Ou seria da vida escrava nesse feudalismo que era a Trás-os-Montes de 1960.
Teriam progredido? Mais casas novas. Maiores. Desertas. Velhas casas senhoriais abandonadas, inabitadas. Em ruínas. Disto ninguém falava melhor do que o ilhéu micaelense (açoriano) Daniel de Sá no seu excelente livro “Os Pastores das Casas Mortas” e nem transmontano era. Das gentes sumira-se-lhes o rasto. Perdidas na voragem consumista das grandes urbes. Anónimas no litoral que o 25 de Abril roubara à emigração a salto. Desaparecidas as “vendas”, os cafés e as tabernas. Nem botequins havia. Não restara quem os sustentasse. Os escassos septuagenários, congregados no adro das igrejas. Vazias. Sem serviços dominicais. Escolas abandonadas às silvas. Destroços. Poucas aproveitadas e ocupadas por novas valências. Definhavam na vegetação que se reapoderava dos seus terrenos. 

Em Outubro de 2006, JC voltara a Bragança para mais um Colóquio da Lusofonia. Faria o mesmo em 2007, 2008, 2009. Sentira uma sensação estranha a preencher-lhe o vazio interior. Na rua o ar bem fresco, muito seco da cidade. 16 ºC. Não chovia e fora a pé até ao restaurante Poças, local privilegiado de almoços e jantares, guardado no baú mítico das memórias dos anos de 1960 bem antes de ter saído de Portugal rumo aos Orientes exóticos e à Austrália. 
Na manhã seguinte caminhara até ao Café Torre da Princesa, porto de abrigo durante anos. Revira os donos. O filho Nigel quis lá ficar com o seu amigo luso-suíço Stefan. Depois, visitaram uns primos direitos do seu avô materno, então com 83 anos, satisfeitos por serem lembrados pelos mais novos. 

Foi então...
Nesse dia, pela primeira vez, a escassos metros daquela que fora a sua casa em Bragança, sentira um apelo inesquecível. Fora então que se sentira transmontano dos quatro costados, apesar do pouco tempo contabilizado a viver na região. Não sabia dizer porquê, mas lembrar-se-ia sempre do instante exato, já era lusco-fusco, quando sentiu aquela picada no coração, aquela dor profunda de mágoa e alegria, em simultâneo. Tinha acabado de encontrar as suas raízes. Sentira os pés pesados a colarem-se ao solo. Uma experiência que se assemelha ao que se sente quando uma pessoa sabe que está apaixonada e que encontrou a alma gémea para partilhar o resto da vida. 

Como alguém dissera, em tempos, a pátria não é o lugar onde nascemos mas o lugar onde o coração habita. Ali estava bem visível. Descobrira-a instantaneamente nas suas origens e raízes. Bragança mátria. Que disso não restem dúvidas. Jamais sentira um apelo emocional tão forte, em parte alguma. Estava mais apegado àquela terra do que imaginara. Inenarrável sentimento. Não se descreve a quem nunca o experimentou. Sentimentos não se partilham em palavras. 
Para os que têm pátria ou sempre pertenceram a um local, de nascimento, trabalho ou necessidade, esta noção não se explica. Para os apátridas, sem bússola geográfica a marcar o ritmo de pertença, é fácil entender o que atrás se disse. Um dia, tentará explicar esta afeção. Não se define. É inexpressável. 
Já há muito dizia que Sidney (e depois, Bragança) eram a sua base terrena. Se bem que goste de estar nos Açores e se identifique com a luta de alguns (ainda?) não os sente a todos como irmãos. Partilham projetos de vida e sonhos mas não está na sua pátria. Por mais que se esforce nunca será um deles nem o aceitarão como um igual, como um par inter pares. 
Jamais sentira - antes deste momento mágico -, um tal sentimento de pertença. Mesmo que os coevos bragançanos o não aceitem, não precisa deles para ser aceite. Podem até não ter projetos comuns ou seguir vias díspares mas fazem parte da família e esta não se escolhe. Tal como o seu pai, que dissera sempre ser de Afife (Viana do Castelo) embora nascido no Porto, JC sempre se afirmara australiano. De nacionalidade, que não de nascimento. Quando lhe perguntarem donde é, dirá TRANSMONTANO. De Bragança. 

Nem de propósito lia, no jornal diário, que uma pessoa radicada em Castelo Rodrigo, há anos, dizia sempre “Quando me perguntam donde, digo que sou donde está o coração.” De facto, em Bragança ficou a sua alma. Podia ser habitada por nazis, por espanhóis invasores, por extraterrestres ou pelos seus maiores inimigos, mas sempre a sentiria sua. Essa sensação não se apaga, nem se limpa com lixivia que para esses sentimentos não há branqueador que chegue.
Nada sentia em relação ao Porto natal onde vivera um terço da vida. Nada lhe dizia. Turisticamente, achava a Ribeira e a Foz do Douro espantosas em dia de borrasca e atraentes no período estival. Já a medieval Sé e as velhas ruas do antigo burgo o deixavam indiferente. O clima era cinzento, como as gentes de sotaque desagradável e palavrões vernaculares incómodos. Sonoridades agrestes e demasiado vulgares para ouvidos sensíveis. Pessoas, macambúzias, preocupadas com futilidades. Vira gente em casas da Câmara, pretensamente necessitadas, com carros novos. Iam almoçar e jantar a restaurantes e marisqueiras. Vidas sem um único livro. Mas gabavam o último modelo de telemóvel e TV de plasma.

A mulher re-encontrara ex-alunos do Politécnico de Bragança, habituais voluntários do secretariado do Colóquio. Sempre alegres e contentes por a verem, sem que persistam elos de professor e aluno. Contaram projetos adiados e os já realizados. Histórias de conquistas e derrotas. O percurso de cada um que só se conta aos amigos. Tudo isto fazia uma pessoa sentir-se bem. Parecia que sempre os conhecera. Nem fora professor deles, embora tivessem assistido a palestras que dera na Escola Superior de Educação. 
Jantaram no Poças (pronunciado Pôças, assim como Sabor é pronunciado Sábôr). Fora ao dentista, ao relojoeiro e ao sapateiro, num ritual de repetir atos quotidianos como quando lá vivia. Recriava rotinas que já não eram atuais. Reminiscências de tempos felizes, quando sonhava em permanecer ali até ao fim dos dias. Repetia atos singelos como se nunca se tivesse apartado daquelas calçadas, daquelas casas com histórias centenárias. Idealizava que saíra apenas uns dias antes e ora estava de regresso. Vinham à memória recordações várias do tempo em que ali vivera. Não tinha a ver com pessoas, antes com o ar que respirava, com a memória das pedras, das casas, do Castelo, do nascer e do pôr-do-sol, com o calor, o frio e a neve, as trovoadas, os sotaques e a memória de tempos ancestrais que não vivera mas sentia-os como se fossem seus.
Passara hora e meia na feira. Comprara fatos, calças, sapatos, camisas, e o que a mulher necessitava para ela e filho. Na primeira tenda disseram-lhe que já ali tinha comprado uns pares de calças. Noutra, reconheceram o casaco que levava. Rapidamente o enrouparam como novo...Se bem que fizessem muitas compras, nas feiras trimensais jamais lhe ocorrera ser recordado pelos feirantes, quinze meses depois. 
Encomendara no seu antigo açougue, as típicas alheiras de fabrico artesanal, cuja falta sentia em São Miguel. Gosta de quase todos os enchidos, e na Austrália deliciava-se com os húngaros, mas nunca se acostumou aos dos Açores. Evoca com saudades o tempo em que a avó materna, as tias-avós e primas faziam a matança do porco e em Outubro enviavam as primeiras alheiras, na Páscoa, os folares e bolas de carne e no Verão, a compota de ginjinha. Seguiram-no para todos os países menos para a Austrália que ali não podia entrar comida estrangeira. Comera alheiras e ginjinha feitas pela família em Timor, em Macau e noutros locais. Ainda sentia no palato o seu sabor distinto, sempre o acompanhara como um cordão umbilical. Há paladares que são como os odores, nunca se apagam do subconsciente. 
No antigo Largo do Toural encontrara os idosos repetindo tradições centenárias, agora que já não se mercadejava gado naquele local ocupado por delegações bancárias e outras instituições. Ali estavam em amena cavaqueira como haviam feito durante um século ou mais sempre que se deslocavam das suas aldeias para virem à feira nos dias 3, 11 e 22 de cada mês. Também eles recriavam uma memória coletiva de um povo para quem as várias mudanças de local da feira e o progresso urbano pouco ou nada representavam, pois sabiam qual o lugar que ocupavam. 
Vira casas renovadas na velha urbe e na Cidadela. A cidade continuava galante, aprazível e bela. Paisagens de quilómetros. Até onde a vista alcança na Serra de Sanábria e nos montes do Parque Natural de Montesinho. A parte de cima da rua onde viviam, Avenida do Sabor, ora denominada Cidade Zamora estava nesse ano a ser vítima de um esventramento com modificação de passeios e eixos viários. Decerto a embelezaria mais. Não conhecia obras há quatro décadas, desde que fora rasgada como última saída da cidade, rumo a Espanha, o reino vizinho onde se ia ao supermercado. Ou meter gasolina, mais barata. Que algum proveito haviam os espanhóis de ter além de despertarem ódios antigos e rivalidades nunca extintas na construção da independência de Portugal mas que hoje eram frequentemente esquecidos. Se bem que nalguns locais do distrito não se notasse qualquer diferença entre a fronteira que os homens marcaram e as pessoas que lá habitavam, como era disso exemplo Rio de Onor, noutros a fronteira era meramente um inconveniente, memória de contrabandos e de perseguições dos Guarda Fiscais de Portugal e da Guardia Civil espanhola. A história comum das gentes da Raia era feita de famílias unidas ancestralmente pelos laços do matrimónio, por interesses comerciais e pelo apoio mútuo que substituía a atenção que as capitais dos dois Reinos não prestavam às gentes esquecidas naquele interior profundo de ambos os países.
Surpresa foi ver o sonho antigo da Ponte de Quintanilha erguido por entre vales e montes. Acabara a ridícula continuidade do itinerário IP4, pela estreita estrada de montanha, ao longo de seis quilómetros até à fronteira. A ponte estaria completa e inaugurada em 2009, A prometida autoestrada finalmente chegará, um dia, e dera os primeiros passos com o túnel do Marão que começara a ser aberto nas entranhas da serrania (em meados de 2009) antes de uma providência cautelar o mandar parar por seis meses. As obras iam lentamente progredindo em 2010 como ouvira nas rádios locais que escutava na internet a mil e oitocentos quilómetros de distância nos Açores. Continuava a escutar os programas radiofónicos da região para fingir que ainda fazia parte daquele rincão. 
Nesse ano, o passeio dos colóquios levara-os a Miranda do Douro, sempre bonita, limpa, bem recuperada e interessante. Receção com a Capa de Honras na Câmara Municipal. Visitas ao Museu, Biblioteca e Centro Cultural, fora de horas. Encheram-nos de explicações e partilharam o orgulho transmontano e mirandês que bem falta ao resto do país. 
Nota negativa para a velha funcionária da Sé que não os deixou visitar a Catedral. O clero consegue ter destas simpatias. Talvez fosse a megera que há anos repetira a proeza. Desde 1980 que não fotografava o Menino Jesus da Cartolinha. Iria finalmente fazê-lo apenas em 2008. Todos gostaram. Além do mais, aprenderam a existência duma segunda língua oficial portuguesa. 
Os dias passados nessa voragem da descoberta da mátria chegaram ao fim, era hora de fazer as malas. O Nigel de volta, delirando de alegria. Revira o melhor amigo e a aldeia dele, Babe. Este filho mais novo adora aldeias e velharias: igrejas, castelos, etc. Saiu rural. Para o ano regressará. As hipóteses de ali voltarem a viver são profissionalmente impossíveis na atual conjuntura.

(ADAPTADO DE ChrónicAçores: uma circum-navegação vol. 1, de J CHRYS CHRYSTELLO, ed. VerAçor www.veracor.pt)

por:Chrys Chrystello

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