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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Caretos já preparam candidatura a Património Cultural Imaterial de Portugal

O Carnaval só volta em fevereiro, mas por Podence o trabalho já há muito começou. E não é Carnaval, não. É Entrudo Chocalheiro.

Depois de ter sido considerado Património de Interesse Municipal, fica a aguardar o parecer para Património Cultural Imaterial de Portugal. Por altura do próximo Entrudo pode já haver parecer, e o próximo passo é a UNESCO.

Uma equipa de filmagens, da Edições Imaginarium, está a ajudar na preparação desta candidatura. Para isso vai acompanhar o que precede o Entrudo Chocalheiro, até ao culminar na grande folia, que termina com a queima em público de uma figura carnavalesca gigante.

Podence, a poucos quilómetros de Macedo de Cavaleiros, ganha outra vida por altura do Entrudo Chocalheiros.

Nesta festa, os homens naturais da aldeia vestem-se com fatos feitos de retalhos de mantas antigas, enfeitados com franjas de lã coloridas. Antigamente, as cores eram muito variadas. Agora, as três cores nacionais são as eleitas – vermelho, verde e amarelo. O fato não fica completo sem as campainhas, traçadas sobre o peito, os pesados chocalhos (sim, daqueles usados pelo gado) e, claro, as máscaras feitas na sua maioria de lata (mas podem ser de couro), que conferem o verdadeiro espírito de libertinagem associado a estas figuras – os caretos.

O fato tem um gorro, com uma “cauda”, que ajuda a proteger de forma mais perfeita os homens que correm pelas ruas de Podence, para fazer tropelias e chocalhar as raparigas.

A poucos meses de mais um Entrudo Chocalheiro, prepara-se uma nova fase para os caretos. Desta vez tenta-se conseguir um selo de Património Imaterial de Portugal, que carimbe esta peculiar festa. Em caso de parecer positivo, segue para a UNESCO.

Para isso, é necessário recolher fotografias, documentos e depoimentos, também em vídeo, que comprovem o diferencial deste carnaval, que pode muito bem ser o mais genuíno de Portugal.

Os dias de filmagem já iam longos quando fui ao terreno. No curto caminho entre Macedo de Cavaleiros e Podence (cerca de 7km) a equipa da Edições Imaginarium, responsável pela coleta de material que há-de servir de enchimento à candidatura, foi-me explicando ao que íamos – recolher documentos visuais sobre esta festa no antes e na atualidade, junto dos intervenientes.

Vários dias de contactos, de tentativas de encontrar quem possa contar as histórias, antes que o tempo as envolva.

Chegados à localidade, pouca gente se vê – é altura da apanha da castanha, e o dia está soalheiro. Há que aproveitar. Na realidade, também poucos habitantes efetivos restam, cerca de 200. Muitos estão emigrados ou migrados.

Na primeira casa não temos sorte. A vizinha não sabe onde está a dona Rosa, que nos haveria de receber, e só nos resta procurar outro testemunho.

Acabámos por encontrar o senhor Alcino Cesário, depois de muito bater à porta. O sorriso ao relembrar os seus tempos áureos de careto é inevitável. São 76 anos a falar, os últimos 9 sem trajar no Entrudo. “Quando nos vestíamos de careto, quando éramos novos, parece que tínhamos mais força. Parecíamos o diabo!”, é desta forma que Alcino responde quando a interlocutora lhe pergunta qual é a sensação de envergar aquele fato.

A primeira vez que Alcino experimentou a face de careto exigiu um pouco mais da memória. “Devia ter alguns 7 ou 8 anos. Fazíamos uns fatos com as sacas do adubo. Fazíamos umas calças e um casaco, e andávamos por aí vestidos”. A transição para o fato oficial só vinha mais tarde, feitos das tais “colchas antigas”.

O Sr. Alcino com os chocalhos e a
máscara, que hão-de ser usados pelo neto,
que tem 14 anos e já é Careto
O senhor Alcino com os chocalhos e a máscara, que hão-de ser usados pelo neto, que tem 14 anos e já é careto.
Mas os caretos, não permaneciam só em Podence. Domingos antes do dia assinalado, os caretos iam visitar as povoações vizinhas, como Lamas de Podence, Quintela de Lampaças, Veigas, e mesmo Macedo de Cavaleiros.

Também lá as raparigas tinham medo destes diabos coloridos, cheios de genica, que teimavam em agarrá-las para lhes bater com os chocalhos nas costas.

As origens do Entrudo Chocalheiro não são claras. Não se sabe se remontam aos celtas, aos romanos ou a povos autóctones anteriores ainda, porque, relembra a minha guia neste dia de filmagens, formada em Sociologia, “antes desses já havia outros povos a residir na região, e que ainda não são conhecidos. Ainda estão em estudo, como por exemplo os Zoelas”.

O que é mais certo é que esta tradição está ligada aos ciclos da agricultura. Coincidiam com sementeiras e com as mudanças climatéricas, que guiavam as vontades da terra. Um pouco à semelhança do Samhain celta, que por sua vez era comemorado à boca do Inverno, e que é a base do Halloween atual.

A fertilidade, claro, está muito vincada. O Entrudo é a passagem da época fria e sombria para a efervescente Primavera. Os chocados a bater nas costas das mulheres podem muito bem ser, pois, um incentivo à natalidade, à renovação.

Alguns dos registos mais antigos sobre Podence e os seus caretos são, como quase todos os existentes sobre Trás-os-Montes, provenientes das memórias de Francisco Manuel Alves, conhecido mais vulgarmente como Abade de Baçal. É ele quem nos dá conta de que, no século XVIII (por volta de 1760), a Igreja Católica não via com bons olhos as tropelias dos caretos. Havia mesmo proibições e coimas pesadas (que atingiram os 500 contos de réis), que não excluíam o clero. Os padres estavam incumbidos de se certificar que esta restrição, e podiam ser alvo de multa. Contudo, não constituiu um travão para esta festa, uma vez que, ainda nos mesmos registos, não consta que os párocos vissem com maus olhos estes rituais pagãos.

O etnógrafo Benjamim Pereira vai mais longe, e não exclui a hipótese, o seu livro de 1973, Máscaras Portuguesas, de esta festa ter sido transportada para a altura do Carnaval, mas, na realidade, pertencer ao rol das conhecidas Festas dos Rapazes, que se repetem em algumas aldeias transmontanas, na altura do Natal.

Capa do Livro´
Máscaras Portuguesas
As brincadeiras há uns anos eram, cataloga Alcino, “um bocado estúpidas”, mas “havia muita alegria”.

“Os caretos nessa altura eram um bocado mais violentos do que agora. Às vezes estavam as famílias sentadas ao lume, em casa, e eles entravam por lá adentro. Pinchavam tudo, panelas e tudo! Não havia esses eletrodomésticos, o estrago era mais pequeno. Outras vezes, para chocalhar as raparigas, arrombavam-se portas. Uma vez subi aquela varanda ali, para as apanhar”. Alcino comanda o relato que nos leva numa viagem no tempo de Podence. Não lamenta que estejam menos agressivos, antes pelo contrário. “Qual era o objetivo?”, não pode deixar de se perguntar. “Era ter o prazer de as chocalhar, e de as ouvir ameaçar-nos. Elas gostavam, era uma provocação. Quanto mais nos diziam que não as íamos conseguir chocalhar, mais corríamos atrás delas.”

Alcino Cesário não abandona o local onde está a ser filmado (numa fonte no largo principal da aldeia, no centro da aldeia, na Praça de São Roque, onde outrora havia uma capela em homenagem ao santo que lhe dá o nome) sem falar das contradanças que ali se organizam no dia em que os caretos saíam à rua. Era aí que apareciam as matrafonas, que se podem descrever como figuras femininas com formas desproporcionais, propositadamente, para que não se soubesse quem estava por debaixo da roupa. As caras eram tapadas com panos de renda, e era o traje permitido às mulheres, apesar de haver quem afirme, de forma nada consensual, que algumas mulheres furavam a tradição, e desafiavam a lei, vestindo-se de caretos.

E não se findavam os gracejos carnavalescos sem os casamentos, comuns em outras aldeias transmontanas. De um ponto elevado da aldeia, com os chamados embudes (que mais não são do que funis), faziam-se novos pares. “Palhas alhas leva o vento/ aqui se vai ordenar e formar outro casamento…”, eram os dizeres que iniciam este ritual. Claro que estes matrimónios arranjados não passavam de brincadeiras, ainda que houvesse quem aproveitasse para se aproximar da rapariga de quem gostava. Na manhã seguinte, a rapariga abria as portas de casa ao noivo, para lhe dar o pequeno-almoço. No menu constavam, por exemplo, nozes, figos secos e água-ardente.

Os fatos de careto não ficam completos sem as franjas de lã, que cobrem os braços e as pernas. Já são feitos quase todos de forma mecanizada. Paulo Alves é mais novo do que Alcino, ainda na casa dos 40 anos. É o último da aldeia a saber fazer manualmente as franjas. Aprendeu com o tio, copiou-lhe o tear e não vê, para já, quem queira aprender a arte. “Para fora não faço, só aqui para a aldeia, porque a tradição é aqui de Podence. Não vamos passá-la para fora”, declara, orgulhoso. Ele sim, ainda encarna o papel de careto. “É preciso disfarçar a voz, e mesmo o andar, para que não nos conheçam”.

Paulo Alves sentado ao tear, com as franjas de lã
que hão-de enfeitar os fatos do próximo Entrudo
Paulo Alves sentado ao tear, com as franjas de lã que hão-de enfeitar os fatos do próximo Entrudo.
Durante algumas décadas, os caretos estiveram adormecidos, sem que haja uma explicação única para tal. Nessa altura, Paulo apareceu trajado na festa da aldeia, em agosto, e parece ter lembrado a tradição.

Corria o ano de 1985 quando é fundada na aldeia a Associação de Melhoramento de Festas e Feiras. A ela cabia não só a organização das feiras de gado, que decorrem uma vez por mês, como também agregava a festa dos caretos.

Esta situação manteve-se até 2002, conta António Carneiro, altura essa em que se aperceberam que fazia falta uma associação dedicada só ao Entrudo Chocalheiro. E assim nasceu a Associação do Grupo dos Caretos de Podence, da qual António é presidente. Em 2004 é inaugurada a Casa do Caretos, que alberga também um museu.

“Esta associação tem como objetivo dinamizar o espaço da Casa do Careto, preservar a tradição e dá-la a conhecer por todo o Portugal e todo o mundo”, explica António.

Foi o antigo programa Portas da Terra Quente que permitiu que a Casa do Caretos saísse do papel. A ideia não era recente, “mas nunca tinha sido possível”, até 2001. Há dez anos que está concluída e aberta ao público.

Mas esta festa, o Entrudo Chocalheiro, não é uma mera recriação de outros tempos. Tem que se dizer que a festa está viva, e que continua a ser vivida de forma intensa. O tempo só mudou o grau de ira dos caretos, que fazem dos chocalhos um uso mais moderado. Também já não há casas com danos materiais a registar, e, claro está, a festa passou a atrair centenas de visitantes que não têm ligações familiares a Podence.

120 pessoas são sócias da Associação do Grupo dos Caretos de Podence, mas não se sabe quantos trajam. Varia conforme os anos, e não é preciso ser sócio. Os requisitos para ser careto, esses, parecem ser curtos e precisos – ser homem e ter raízes em Podence – pelo menos é assim que nos explica Paulo Alves, ainda sentado ao tear.

Os emigrantes de Podence não rumam à terra natal em agosto – em agosto não há Entrudo. A minha guia na aldeia explica que esta festa passou a ter um “cariz social”. As pessoas voltam nessa altura para se reunirem com a família e com os amigos, à volta de uma tradição que teima em renascer, e, ao que tudo indica, com mais vigor a cada ano.

Os caretos só irão sair à rua em fevereiro, e muito falta fazer. Azáfama, azáfama! Juntar-se-ão as gerações, juntar-se-ão os emigrantes, juntar-se-ão os turistas. Juntar-se-ão todos em Podence, porque se espera um ano pelo Entrudo Chocalheiro.

Escrito por ONDA LIVRE

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