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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Marmelos e Marmelada

Os marmelos nascem em árvores chamadas marmeleiros, árvores de baixo porte mas que produzem um fruto prodigioso. Lembro-me bem de os marmelos chegarem a minha casa, e desenvolver-se uma azáfama para confecionar marmelada clara, marmelada escura e geleia. O período de produção na natureza era relativamente rápido e, portanto, era necessário dar vazão aos marmelos. Havia, no entanto, marmelos que caíam e eram apanhados do chão e tinham um caminho especial: a pocilga para os requinhos acabar de cevar para a matança. Mais um alimento precioso para a qualidade da carne, e a garantia de um bom bísaro. 
O marmelo é um dos produtos que continua a ser sazonal e não me apercebi, ainda, da sua produção global ou fora da espontaneidade da Natureza. Supõe-se que tenha origem no Médio Oriente mas foram os gregos que o notabilizaram chamando-lhe “maçã de ouro”, simbolizando a fertilidade feminina e ainda os ofertavam a Afrodite, a deusa do amor. Poderá ser por estas origens que em linguagem popular “marmelo” significar seio feminino. Consta que na Grécia Antiga a noiva, em dia de casamento, deveria comer um marmelo, ação a que o noivo se deveria abster. Hoje em dia afirma-se que os marmelos têm grande porção de taninos e pectina, e atribuem-se-lhe qualidades anti-inflamatórias.

Em Portugal encontramos muitos marmeleiros no Ribatejo, Trás-os-Montes e Beira Alta. Surgem também no Minho e Beira Litoral. No Brasil supõe-se que o marmeleiro tenha sido introduzido na Bahia por Martin Afonso de Sousa em 1530, e que os primeiros locais de produção segura foram na Capitania de São Vicente e na Serra de Mantiqueira. Atualmente a maior produção regista-se em Minas Gerais, e o marmelo é praticamente só utilizado para produção industrial. Está a perder-se o hábito de fazer marmelada em casa. Em Portugal esta tradição ainda se mantém, apesar de já não ser como era nos meus tempos de habitar com as minhas transmontanices. Era hábito oferecer uma tigela de marmelada aos vizinhos ou quando se visitava a casa de amigos ou família. Prática que a minha irmã Lina mantém. E a sensação de prazer agradável à vista, quando se desenformava marmelada, aquele brilho fazia-nos, de imediato, crescer água na boca. Muitas vezes, um pedaço de marmelada impedia que se ficasse com “boca de pobre”.

Os marmelos, quando maduros, têm um cheiro muito intenso e por isso utilizados como aromatizador antes de irem para os tachos de marmelada. Mas os marmelos também se cozem com açúcar e canela para servir de sobremesa, ou assados no forno como se faz para as maçãs. Ou ainda em calda. Petisco doce que ainda como nos Restaurantes Académico e Geadas, em Bragança. Mais longe vai o Restaurante D. Roberto, em Gimonde, Bragança, que faz um inesquecível gelado de marmelos. Mas marmelos também se usam para acompanhar carne assada no forno, que lhe dá um gostoso sabor agridoce. Importante é ainda no Magrebe onde se servem várias “Tajines” de carne com marmelos, designadamente o cordeiro. Mas a utilização mais importantes dos marmelos é fazer marmelada e depois a geleia.

Segundo o meu amigo Armando Fernandes, o termo “marmelada” é de origem portuguesa, e eu acredito nele. Pelos vistos, dos portugueses, adotaram os ingleses a palavra “marmelade”, habitualmente uma geleia de frutos cítricos. Também têm “marmelade sauce” igualmente com frutos cítricos e outros que geralmente acompanham carnes. Hoje em dia o termo generalizou-se e usa-se para outros doces com frutas. Os franceses usam o termo “marmelade” que é uma espécie de puré doce de frutas assemelhado às nossas marmeladas mas menos consistentes.

Vamos então ver como se utilizam os marmelos para fazer marmelada. São antigas as referências à confeção de marmelada. Temos notícias de vários doces com frutas desde a Idade Media. Os doces adquiriam das frutas diretamente os seus nomes. Assim temos a perada, pessegada, e obviamente a marmelada. A marmelada terá embarcado em várias naus das Descobertas, pela sua facilidade de conservação. E, naturalmente, as primeiras notícias escritas estão registadas nos conventos. O mais romanceado é o do Mosteiro de Odivelas pela notoriedade das visitas Reais. Neste local onde ainda hoje se produz a famosa marmelada branca. Depois também temos registos nos conventos de Coimbra do Mosteiro de Santa Clara, Mosteiro de Celas, Convento de Sant’Ana e Convento de Sandelgas. Ainda referência no Convento de Trancoso e, curiosamente, no livro de Receitas da Casa do Mosteiro de Landim no qual surge uma receita de “Marmelada de Maçã”.

Genericamente a marmelada é o fruto do cozimento de marmelos em calda de açúcar. Mas com algumas variante e que nos darão as duas principais marmeladas: a branca, e a comum ou crua, ou vermelha. Depois ainda se confeciona a extraordinária geleia.

Não são evidentes as regras para obtenção da marmelada branca ou vermelha. Segunda a receita do Mosteiro de Odivelas para conseguir a marmelada branca, cozem-se os marmelos descascado, a partir de água fria. Seguidamente passam-se por peneira fina. Com o dobro do peso da massa dos marmelos, de açúcar, obtém-se um ponto alto e retira-se do lume. Junta-se na calda de açúcar a massa de marmelos, mexe-se bem e volta ao lume até borbulhar. Retira-se do lume e coloca-se em taças ou malgas, para secar. Já Maria Emília Cancella de Abreu, 1982, propõe que para marmelada branca se cozam os marmelos, e só depois de cozidos sejam pelados. É importante que o açúcar esteja em ponto de rebuçado e, depois de bem misturado, fora do lume, se continue a mexe até arrefecer. Só então se coloca o creme em recipientes para secar, ao Sol, e depois de seco se cobre com papel vegetal molhado em aguardente. Desta mesma forma é apresentada a receita no “Dicionário do Doceiro Brasileiro”, de António José de Sousa Rego, 1892, a receita de marmelada branca. Ainda o mesmo livro apresenta receita para marmelada de ameixas, crua de pêssegos, de damascos, de maçãs, uma chamada de “sumo”, e uma fantástica “de Lisboa” que sugiro leiam. Não a coloco aqui por ser muito extensa. Em minha casa, a minha irmã Lina continua a fazer do mesmo modo e com sucesso, para “a marmelada clara fazia-se com marmelos muito pouco maduros e descascados, e depois de cozidos, passados pelo passe-vite mais fino. O açúcar deve estar em ponto de rebuçado e mistura-se a massa, mexe-se e não ferve.”

Vamos agora ver a diferença para a vermelha. Segundo Maria Emília Cancella de Abreu a diferença é na junção do açúcar. Aqui não se faz uma calda de açúcar para receber a massa dos marmelos, mas o açúcar é junto à massa que continua ao lume, e continua a mexer-se. Já no Mosteiro de Odivelas a diferença consiste em não passar os marmelos por uma peneira mas esmagados com uma colher, não se deixa arrefecer, e junta-se o açúcar sem deixar de mexer. Voltando às receitas de minha casa, “a marmelada escura era com marmelos maduros que se coziam inteiros. Quando estão cozidos pelam-se e passam-se pelo passador. O açúcar deve estar em ponto de rebuçado, mistura-se a massa do marmelo e deixa-se ferver e mexe-se sempre enquanto estiver a ferver.” Em minha casa havia sempre marmelada que se comia também como sobremesa, e com queijo. Esta tradição é muito frequente no norte que apelidam carinhosamente, a junção de queijo com marmelada, de “Romeu e Julieta”. Também se pratica, ainda em Lisboa (e lembro-me da Confeitaria da Ajuda), os cubos de marmelada embrulhados em papel celofane.

Como se pode assistir, a marmelada portuguesa saltou o Atlântico e assentou arrais no Brasil. No recente livro “Vocabulário do Açúcar”, de Raul Lody, define marmelada como “Doce feiro de marmelo (Cydonia Oblonga). Também é uma designação para doces de diferentes frutas que se apresentam na forma de pasta.” Ora esta definição é perfeita para mais de um exemplo da “verdadeira cozinha de fusão”. Insisto em escrever que cozinha de fusão só tem expressão quando a receita ganha perenidade. Experimentar não chega! Mas o exemplo é a goiabada. Tão importante que é, sujeita-se a disputa anualmente em concurso. O meu amigo Dias Lopes já me presenteou com excelentes goiabadas. De lamber os dedos!

Para terminar uma breve referência a mais um derivado do marmelo: a geleia. Doce, muito doce, com aplicação múltipla até para recheio de bolos, ou simplesmente rechear castanhas cozidas ou assadas. Para “a geleia aproveitam-se as cascas e os caroços dos marmelos, põe-se a mesma quantidade de açúcar. A água para dissolver o açúcar é a de cozer os marmelos. Deixa-se ferver até ter ponto  (eu vejo a olho) e depois filtra-se. Põe-se logo nos frascos porque ela solidifica ao arrefecer.” Pouca precisão para quem não tem o hábito de a confecionar. A mão, e o sentimento da doceira são fundamentais…!

Viva a marmelada. E vamos lá, partam à descoberta de um vinho para acompanhar marmelada, pois a sobremesa saberá melhor.

Virgílio Nogueiro Gomes
in:virgiliogomes.com

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