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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 18 de maio de 2019

NATAL EM FAMÍLIA

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."

Afonso deu um último arranjo à toalha de mesa que estava um pouco encorrilhada. As crianças, Maria e Pedro de doze e nove anos respetivamente, riam e empurravam-se em tentativas simuladas para derrubar o outro da cadeira. Ele deitou um olhar em volta; a luz que inundava a sala espaçosa, a árvore decorada com cores vivas e brilhantes, os presentes por baixo. Tudo estava a regressar ao normal. Sim, tudo iria ficar bem.
- Podes sentar-te, “môrzito”. - A sua esposa, Francisca, nunca perdera o hábito de o tratar por aquele apelido carinhoso. E ali estava ela, com a travessa das batatas cozidas com bacalhau, tão típicas da época. Era uma tradição que ele detestava, mas suportava.
Sentou-se, compôs os pratos, moveu-os uns centímetros para um lado ou para o outro, nervosamente. Compôs os talheres em cima dos guardanapos enquanto admoestava as crianças:
- Vá, meninos, comportem-se agora. Vamos comer, senão, ainda acabam por magoar-se.
- Sim, papá!!! - Gritou Maria com a voz propositadamente esganiçada, como ela gostava de fazer.
- Maria! - Avisou Francisca. - Então, que é isso? Comporte-se, menina!
- Sim, papá!!!! - Gritou Pedro, imitando a irmã.
- Então?!? - A voz forte do homem fez-se sentir, num ralho carinhoso. - Vamos sentar quietos e fazer o jantar de Natal como deve de ser ou não?
- Pai. - O tom de voz de Maria mudou radicalmente para a de criança mimada. - Posso ver o que o Pai Natal me trouxe, antes de jantar?
- Eu também quero!!! - Exclamou Pedro.
- Não. Ninguém vai ver prendas antes de acabar de jantar. - Determinou Afonso.
- Primeiro vamos todos comer como deve de ser. Vamos portar-nos muito bem e só depois veremos as prendas. - Brincou Francisca, compondo o guardanapo à volta do pescoço de Pedro. - O Pai Natal disse que só se pode abrir depois de jantar, senão para o ano não traz nada e põe o nosso nome na lista dos mal comportados.
- Eu não sou mal comportado, pois não mãe? - Quis saber Pedro.
- Não, meu querido filho, claro que não, és um menino muito bem comportado. Tu e a tua irmã são as maiores prendas que Deus nos poderia ter trazido.
- Mãe! - Exclamou Maria. - Se tu já tens “estas prendas”, eu posso ficar com que o Pai Natal trouxe para ti?
Os pais soltaram uma gargalhada quase em coro.
- Não podes querer tudo para ti. - Afonso passou, carinhosamente, a mão pela cabeça da filha. - Este ano temos prendas para todos.
A refeição correu de forma pacífica e era visível, no rosto agradavelmente corado de Francisca, que estava muito feliz. Conseguiram conversar de forma mais ou menos amena, envolvendo as crianças o mais possível, falando da escola e dos professoras, das peripécias do recreio e dos colegas. Cada vez que cruzavam olhares, milhares de palavras eram passadas de um para o outro sem qualquer som. Havia muita conversa para pôr em dia.
Assim que acabaram de jantar, foi um furacão que varreu a área onde estavam os presentes. Num instante, todo o chão da sala estava cheio de pequenos bocados de papeis. Maria sentou-se no chão, ao pé do sofá, a brincar com o kit de maquilhagem e a enorme boneca que a deixou felicíssima. Pedro estava deitado no chão da sala a brincar com a garagem com vários piso cheios de automóveis que ele havia pedido ao Pai Natal mais do que uma vez.
Afonso e Francisca, recostados e enlaçados, no sofá, apreciavam as brincadeiras da sua prole.
- Já não sabia o que era um Natal em família... mas este ano foi todo diferente. - Ele comentou pensativamente enquanto ligava a TV com o controlo remoto.
- Já há mais de quatro anos que não estavas disponível nesta altura. - Francisca confirmou. - O teu trabalho, como enviado do jornal no Alto Comissariado para os Refugiados, estava a afastar-te muito de nós.
Como que a propósito, na televisão, estavam a passar imagens da chegada de mais umas centenas de emigrantes africanos às praias italianas. As cenas de dor, crianças e adultos desesperados, o resgatar dos corpos do mar, a chuva intensa que caía, eram imagens dolorosas.
- Estes pobres diabos vêm da fome e da guerra para a fome e indiferença. - Afonso tinha lágrimas nos olhos.
- Antes a indiferença que a guerra! - Afirmou Francisca. - E não somos assim tão indiferentes, estamos a fazer mais por eles, que são de outros países, do que às vezes pelos nossos. Também há fome por cá. Graças a Deus não há guerras.
- Concordo de certa forma mas... é uma dor de alma...
- Mas já agora, nunca explicaste completamente o que se passou, para deixares a tua função no Alto Comissariado.
- Oh, isso foi... um pequeno desentendimento com um elemento do staff do Guterres. Mas já passou, “convidaram” o jornal a tirar-me daquelas funções, mas eu não me importei muito, já estava farto. O cretino que causou esta confusão toda também não teve muita sorte, ouvi dizer que foi assassinado num assalto, lá na Itália, à saída de um bar. Nem conseguiu ter a felicidade de me ver sair do país, diz-se que “Cá se fazem e cá se pagam”.
- Que horror. Não devias ficar contente com a morte de alguém, ainda que nos tenha feito mal. - Francisca soergueu-se para o olhar nos olhos.
- Não estou contente nem triste. O tipo era-me completamente indiferente, só achei engraçada a coincidência... “Deus não dorme!” - Piscou-lhe um olho e beijou-lhe rapidamente os lábios.
- Pelo menos assim estás mais próximo de nós, não tens todas aquelas viagens para fazer, apenas umas noitadas por entre outras.
- Sim, estou feliz por regressar... retomar o meu lugar na redação do jornal, voltar a escrever artigos mais genéricos.
Na televisão passava agora a noticia de mais um homicídio na cidade. Já se contavam sete homicídios, no espaço de poucos meses, ligados a um assassino em série a que chamavam “A Sombra”. A polícia, desesperada, não conseguia pistas para o apanhar.
- Terrível, este assassino. - Comentou Francisca. - Dizem que agride as vítimas com algo pesado e que, depois de estarem sem sentidos, faz-lhes um corte na jugular e deixa-as a morrer.
- Então até não é muito mau. - Afonso deu um sorriso trocista. - A maior parte deles nem deve perceber o que lhes aconteceu.
- Parvo! - Ela exclamou. - Isso é coisa que se diga?
- A sério! - Ele continuou. - Podia até tortura-las, tirar-lhe bocados, como fazem os grandes assassinos que vemos nos filmes, sei lá eu. Mas põe-nas a dormir e depois manda-as à vida... ou à morte, mais propriamente.
A notícia continuava e o jornalista fazia uma relação das vítimas, que foram assassinadas nas próprias casas, e dos produtos roubados. Eram, na sua maioria, mulheres com posses, que viviam sozinhas, ou não tinham companheiro certo. Os roubos eram normalmente dinheiro e jóias, além de algumas obras de arte esporádicas. O assassino sempre fora cuidadoso em deixar de lado peças famosas, ou demasiado valiosas, que pudessem ser identificadas. Mas desta vez cometera um erro; uma das peças era muito valiosa e tinha, inclusivamente, seguro próprio. No ecrã foi exibida a fotografia de um magnífico pingente de ouro e pedras preciosas e o jornalista pediu, a quem visse aquela peça, participasse imediatamente às autoridades. A família da vítima oferecia uma choruda recompensa, assim como a companhia de seguros.
- Tá tramado! - Disse Afonso pensativamente.
- Parece impossível que consiga andar por aí alguém a matar pessoas e a polícia não consiga fazer nada. - Francisca estava apreensiva.
- Não é fácil. Estes criminosos estão cada vez mais mais evoluídos. Têm acesso a informações e tecnologias como nunca tiveram antes. Por acaso, até acho que vou abordar esse tema na minha próxima crónica de opinião no jornal. Será “Polícia versus criminosos, estaremos a perder a corrida?”
- Oh. A tua crónica? Já ta deram outra vez?
- Não te disse que tenho estado a reocupar o meu lugar na redação? Eles têm que reconhecer o meu valor.
- Mas não tinham dado a crónica ao... àquele tipo horrível, com o capachinho ruivo e os óculos grossos... o Norberto, não era?
- Sim, era esse, mas eu avisei logo o meu chefe que o Norberto não era de confiança. Tinha aparecido há coisa de um ano e tal, sem ninguém saber de onde, armou para lá umas confusões na redação, “calcou cabeças” e “subiu às costas” de quem pôde para conseguir o que queria. Agora, penso que já deve ter atingido os objetivos dele, desapareceu há umas semanas... não atende o telemóvel, a casa alugada está vazia e com a renda paga até ao fim do mês.
- Por isso devolveram-te a crónica.
- E um bónus, que eu reclamei logo. - Afonso soltou uma gargalhada. - Caiu muito bem agora nesta altura do Natal.
Beijaram-se ternamente e começaram a acariciar-se.
- Não achas que são horas das crianças irem para a cama? - Ele perguntou.
- Penso que sim. - O sorriso dela dizia tudo. - Meninos, vamos dormir.
- Oooohhh, mãe!!!! - As crianças gemeram em uníssono.
- Nada de confusões! - Insistiu ela erguendo-se e batendo as palmas.
Afonso deixou-se ficar um pouco, com um sorriso nos lábios, olhando a sua adorada família. Por fim ergueu-se também e gritou para a área dos quartos:
- Vou à cave ver a caldeira e já vou ter contigo ao quarto.
Era realmente um homem afortunado, com uma família bela e feliz como aquela... que mais poderia desejar? Acendeu a luz da escadaria da cave e desceu, pensativamente.
Na ampla divisão, dirigiu-se a um armário, que abriu com uma chave que trazia no bolso. Pegou uma mochila preta do interior e caminhou para a porta da caldeira onde ardia um lume forte, visível através do vidro.
Abriu a portinhola e, de dentro da mochila, tirou uma cabeleira ruiva e uns óculos com armações de massa, que olhou por uns segundos com um sorriso nos lábios. Atirou os objetos para o fogo com umas palavras de despedida:
- Adeus Norberto! Espero que encontres um jornal onde escrever lá no Diabo que te carregue.
Mais uns segundos a olhar para o fundo da mochila e tirou um fantástico pingente em ouro e pedras preciosas que fez rodar em frente dos olhos enquanto comentava: 
- É uma pena... ias render bom dinheiro, se as outras renderam o que renderam, tu ias garantir umas boas férias com a família..."
Atirou a peça para o lume enquanto comentava para consigo:
- Sete homicídios?!? Palermas, já passei os vinte.
Atirou também a mochila para o interior da caldeira, fechou a porta e abandonou a divisão, a caminho da cama onde a sua adorada mulher o aguardava. 

Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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