Foto: Joana Gonçalves |
Mas é cá dentro que todos vêm. Um grupo de dezenas de pessoas, claramente saídas de uma camioneta turística, atravessa a praça. Vão directas à catedral não se detendo, pelo menos por enquanto, nas duas lojas que convivem na praça. São ao “gosto espanhol”. “A maior clientela é espanhola, isto é o que procuram”, diz-nos a proprietária renitente de uma delas, montra com porcelanas Vista Alegre e atoalhados, interior com pijamas, faqueiros, panelas, vinho do Porto, t-shirts. A segunda é ainda mais ecléctica. “Móveis, electrodomésticos, candeeiros, têxteis do lar, coisas do dia-a-dia”, concretiza Paula, a empregada. Os móveis e electrodomésticos estão na outra loja, “lá em baixo”, que é como quem diz, fora das muralhas — “os espanhóis levam muitos móveis”, explica a proprietária Maria Alice Ferreira. Aqui temos uma espécie de best of da região: de brinquedos tradicionais aos candeeiros e panelas, sem esquecer panos da louça, toalhas de mesa, rendas, colchas, objectos de cobre, ferro forjado, madeira e vime e a cutelaria.
Nas ruas vivemos o presente, no museu um relance de como se vivia — vive? — no planalto mirandês. Agricultura e pecuária, âncoras centrais da economia e subsistência da região, uma cozinha típica, o coração da casa, onde “se nascia e se morria”. Um andar acima, o mundo da lã (e do linho: “Já Estrabão dizia que nesta área se fazia o melhor linho do império [romano]”), com manequins vestidos com o traje de mulher, o traje de jovem (quanto mais jovem, mais colorida) e a inconfundível capa de honra que de protecção aos boieiros e pastores nesta terra de “nove meses de Inverno e três de inferno” se tornou um símbolo da região. Mais adiante, as máscaras de rostos distorcidos em esgares excêntricos e cores berrantes, ícones das chamadas festas de Inverno, e as danças e festas. Novamente, os pauliteiros.
Foto: Joana Gonçalves |
Miranda do Douro foi-se à guerra dos Sete Anos (que aqui ficou conhecida por Guerra do Mirondum) e o seu castelo foi-se pelos ares. No acosso espanhol à cidade muralhada, um projéctil caiu sobre um armazém onde se guardava pólvora: as muralhas e a torre de menagem do castelo ruíram, 400 pessoas morreram. Hoje, o que resta da alcáçova do castelo de Miranda é uma bela ruína a mirar o Fresno, o outro rio da cidade, que ensaia coreografias em jactos de água numa represa para mais à frente se diluir no Douro. E o antigo pátio de armas é um parque de estacionamento a dois passos da Rua Mouzinho de Albuquerque, espinha dorsal do núcleo histórico, onde o comércio mais abunda.
Mas é na Rua Costanilha e satélites que o carácter medieval de Miranda parece irredutível — quando fica banhado pela luz amarela dos candeeiros de ferro forjado quase esperamos que surjam cavaleiros ou carruagens apressados. O casario quinhentista de pormenores manuelinos forma um entramado mais ou menos conservado, às vezes inesperadamente erótico, como a Casa das Quatro Esquinas — medieval, é de granito integral, tem quatro janelas a fazer esquina (duas em cada andar), porém o destaque é para os dois cachorros, um simbolizando a luxúria e o segundo Cronos, o deus grego do tempo: a primeira é representada por um cão que com a língua toca os órgãos genitais de uma mulher; ou imprevisivelmente profano, como antiga igreja setecentista dos Frades Trinos transformada na biblioteca municipal.
E, depois, há o “exagero”, como comenta alguém. “Ninguém espera isto aqui.” Mas “isto”, a igreja matriz, é também a antiga Sé de Miranda do Douro, herança do período em que a cidade foi sede de diocese, entre 1545 e 1780 — este é caso para inverter o ditado popular: foram-se os dedos, ficaram-se os anéis. A agora Concatedral de Miranda do Douro exibe-se orgulhosa num extremo do pequeníssimo planalto que é este centro histórico, entre as ruínas do antigo palácio episcopal (o resto do claustro, na sua sucessão de colunas onde ainda se apoiam os arcos é uma espécie de alegoria à transitoriedade do poder — e da vida) e as vertigens do Douro (690 metros), erguida como se fosse o diabo a olhar para Castela, para parafrasear Miguel Torga.
Foto: Joana Gonçalves |
A figura de pequeno tamanho dá corpo à lenda que conta que durante um cerco espanhol à cidade, quando a população exaurida pela fome e pelas doenças se preparava para a rendição, começou a surgir um menino em vários pontos da muralha a instilar ânimo aos habitantes. Foi bem-sucedido, mas nunca foi encontrado. O milagre foi atribuído ao menino Jesus e em sua honra esculpiu-se uma imagem vestida com trajes fidalgos — actualmente, as roupas em miniatura que compõem o seu vasto guarda-roupa (a tradição diz que raparigas solteiras devem dar as meias e as camisas) são também parte da curiosidade.
Os filhos do rio
De tanto rondarmos o Douro, sabíamos que em algum momento nos renderíamos. E é assim que, ao fim da tarde, vemos o sol jogar às escondidas nas escarpas durienses, mostrando-se e escondendo-se ao ritmo das curvas do rio até que transforma Miranda do Douro, altaneira no topo das arribas, em sombras. Já se está a pôr e nós a terminarmos o cruzeiro ambiental promovido diariamente pela Estação Biológica Internacional (EBI) de Miranda do Douro. Entre a barragem de Miranda e o Vale das Águias subimos e descemos o Douro Internacional, sempre com Portugal de um lado e Espanha do outro: o que o passado separou o presente e o futuro juntam neste projecto transfronteiriço onde se miram os dois parques naturais que têm o Douro como coração. Laura, a guia, é um paradigma: “Sou do rio”, apresenta-se, concretizando, “filha de pai português e mãe espanhola”.
Ainda não embarcáramos e já nos haviam lançado o desafio do “2”. “Consegues ver o 2 nos penhascos?”, dizem-nos, apontando um afloramento rochoso amarelo do lado espanhol (a cor deve-se aos líquenes, aqui em grande quantidade e variedade, o que é sinónimo de ar, livre de contaminação). Estamos no sítio certo, vemo-lo à primeira — de outras perspectivas não foi tão óbvio. Voltaremos a ouvir no barco a maldição (?) do “2”: os solteiros que não o vêem não casarão, os casados que não o vêem estão a ser traídos.
À primeira curva, fica para trás a “civilização”. “Agora é só natureza”, anuncia Laura, em espanhol e português — afinal, esta é “uma expedição transfronteiriça”. Com resultados imprevisíveis: “Isto não é um zoo”, avisa, “ver espécies depende da sorte” (pode contar-se sempre com o “milagre” da azinheira de quase 200 anos e raízes na rocha). Quatro corvos imediatamente fazem uma aparição, depois uma águia que o capitão avista, mas todos os outros perdemos, passamos a “poça das lontras” e nem uma surge. Depois os ninhos: de cegonhas negras, “abandonado pelo efeito da caça furtiva” (desde o início do projecto estão a recuperar, porque são vigiados), de um casal de águias-reais e novamente de cegonhas negras. Não vemos nenhuma, são caprichos normais da natureza. Menos normal é a falta de chuva que eclipsa duas cascatas “de Inverno” (depois destes dias chuvosos podem ter feito aparição), uma das quais, a da “Mangueira”, “protegida” pela “Rocha do Urso” e, a crer em Laura, “um dos efeitos naturais mais bonitos” deste troço — “somente o ruído é impressionante”. Mesmo antes desta, a chamada “área temática do Vale da Águia” deixa um relance da vida de antanho: uma cabana no cimo de uma escadaria de pedra era a casa de quem cultivava os socalcos arrancados aos rochedos.
Foto: Joana Gonçalves |
Domingos Raposo é um homem do Douro, de Miranda e do mirandês. O seu nome é sinónimo da recuperação do mirandês e do seu reconhecimento como segunda língua oficial portuguesa — é ele quem nos guia até ao miradouro de São João de Arribas, bem perto da sua casa de turismo rural Puial de l Douro em plena Aldeia Nova (a segunda aldeia portuguesa banhada pelo Douro — a primeira é Paradela). Nova porque a “velha” situava-se bem perto do miradouro onde, novamente, nos deixaremos fascinar pelas escarpas do Douro: um castro revelou ocupação humana contínua entre os séculos IX a.C. e X — quando a população se transferiu mais para cima. Domingos entusiasma-se a apontar os restos do baluarte entre a vegetação rasteira destas altitudes, a relatar a sucessão de povos que aqui se instalaram, a enumerar os achados arqueológicos. Dos romanos ficou a lenda de um pote de ouro por aqui enterrado e várias epígrafes — fora o que foi para museus. E o mais evidente: a lápide honorífica a um tal Emílio Balaeso, que seria originário daqui e terá sido o porta-estandarte da ala sabiniana durante as campanhas na Britânia , cuja cópia enfrenta o canhão do Douro. O original foi encontrado, juntamente com colunas romanas, na pequena capela dedicada a São João Baptista, cujo culto aqui se perde no tempo e é celebrado em Maio com missa campal, convívio. Hoje a tranquilidade é total quando nos sentamos no muro de pedra — será o nosso puial (banco de pedra): “Neste puial de pedra que já foi fraga...”, declama Domingos.
Foto: Joana Gonçalves |
Andreia Marques Pereira
FUGAS/Jornal Público
Nos sabores de Miranda cabem alheiras e almas penadas
Foto: Joana Gonçalves |
Já conhecíamos as alheiras, graças à generosidade de vizinhos comuns, vida repartida entre o litoral e a aldeia de Picote. Não o nome oficial nem quem as faz. No Sabores Mirandeses descobrimos que, pelo segundo ano consecutivo, são as melhores alheiras do festival de gastronomia e artesanato. As irmãs Anabela e Bernardete Galego são as alquimistas por detrás da Cozinha Regional de Picote e quem recebe os visitantes no stand. O orgulho é discreto, mas irreprimível. Afinal, é a recompensa para uma daquelas mudanças de vida que alimentam alguns sonhos.
Há “cinco, seis anos” viviam em Braga, conta Anabela, enquanto a mãe, agora com 93 anos, ingressava num lar de terceira idade. “Não se adaptou, estava infelicíssima.” Então, as irmãs, que haviam deixado Picote aos 11 e 15 anos, decidiram regressar às raízes. “Não tínhamos nada que nos prendesse em Braga” — “nada” excepto empregos como administrativa e gestora de cartões de crédito. Agora têm “um estilo de vida muito mais saudável”, ainda que o trabalho seja contínuo. “A minha irmã ainda não teve um dia de férias, eu tive uma semana o ano passado”, confessa Anabela. É que não confeccionam apenas os produtos, também criam os porcos. “A alimentação é com tudo o que dá a horta”, explicam, “e faz toda a diferença”. “Nota-se no sabor dos chouriços, do butelo, que não dá para as encomendas, das alheiras”.
Os fumeiros também mudaram a vida da família Pires: foi com intenção de os fazer que compraram uma casa na aldeia de Pena Branca. Acabaram com várias e um turismo de habitação que é também marca de fumeiro, Cimo da Quinta, onde nos alojamos e almoçamos enchidos vários como entrada para um cozido mirandês (“butelo, feijão de casca, chouriço, pernil e outras coisinhas”, descreve a anfitriã, Paula Pires). Antes, uma volta pela produção de enchidos e um relance no forno de pão, memória de outros tempos encaixada numa sala moderna. É Aurora Pires, uma amiga da família, quem coze o pão — “antes trabalhava, agora sou padeira”, brinca —, sempre depois de dizer a reza da mãe, em mirandês (ri-se quando lhe pedimos para escrever).
Também sai doçaria com a marca Cimo da Quinta, mas essa só a vemos no Sabores Mirandeses, onde se apresentam numa banca logo à entrada do recinto, no Jardim dos Frades Trinos, bem rente à muralha de Miranda do Douro. Há animações com pauliteiros, os Galandum Galundaina tocam e descobrimos Ângelo Arribas rodeado de instrumentos musicais, com destaque para as gaitas-de-foles de vários tamanhos e propósitos. “Os Galandum estão a tocar modas que já tocávamos antes”, nota, ele que se apresenta como tocador e construtor de gaitas-de-foles, ainda que estas não tenham o monopólio — toca e faz outros instrumentos, típicos do Planalto Mirandês. Fez parte de “todos os grupos de pauliteiros de Miranda”, conta, e ainda agora, com 82 anos à vista, continua a tocar, mas apenas caixa.
Artesão-construtor, como faz questão de dizer, de instrumentos musicais é-o desde os 50 anos e, não o sabíamos, é uma “estrela” — enumera os muitos países onde tocou, já perdeu o nome dos anfitriões de todos os programas de televisão onde foi e até participou no casamento dos duques de Bragança.
“Só podia ser de Sendim”, ouvíramos horas antes, entre risos, de um grupo. L’ Alma Penada: “O nome provoca”, admite, sorrindo, Aquilino Rodrigues, “e há uma rivalidade entre Miranda e Sendim”. L’Alma Penada é o projecto do seu filho, Anselmo, aproveitando o negócio do pai, engenheiro e enólogo, que na verdade faz parte da família há três gerações: os vinhos. Eles também estão lá, Meseta. “Temos o vinho e o que não vendemos destilamos. Ele fez o seu próprio emprego.” Licores vários (ervas, menta, abrunhos), três ginjinhas, que serve em taças de chocolate, gin. Este, começaram a produzir há um ano (as restantes bebidas há oito anos). “Repare na cor” — é dourada —, “vai para cascos de carvalho”.
Nas dezenas de stands que compõem este festival, encontram-se muitos negócios de família. É o casal Neves com o seu azeite Casa do Mário produzido em lagar próprio, o vinho Lhaços, com assinatura da Casa Marie Pêdra (Maria, filha de Pedro), projecto lateral de pais e filhos que se reaproximaram assim da terra de origem, é o mel de Abílio Domingos Pires, e os doces que a mulher, Teresa Ferreira da Silva, começou a fazer para o acompanhar. A lista continuaria — e negócios de família ou não, recentes ou não, são uma janela aberta para a cultura mirandesa.
A Fugas viajou a convite da Turismo do Porto e Norte de Portugal
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