quarta-feira, 28 de março de 2018

Graça Morais, «o campo é o meu atelier»

De um lado Freixel, a aldeia, pacata e serena, do outro Lisboa, a metrópole, buliçosa e caótica – é num vaivém entre estes dois extremos que Graça Morais tem dividido o seu tempo e continuado a perpetuar a sua obra numa carreira que se estende às cinco décadas. Tendo agraciado a capa da edição de primavera 2018 da EPICUR, aproveitámos o generoso gesto para nos sentarmos a falar com a pintora transmontana sobre a sua relação com a região que a viu nascer e crescer, o foco humanista da sua pintura e como olha para as novas gerações de artistas em Portugal.

440: este é sensivelmente o número de quilómetros que separa Lisboa de Freixiel, ou seja, a distância que Graça Morais percorre cada vez que se dirige para a aldeia transmontana, terra da família paterna dos Morais. Apesar de gostar do ambiente cosmopolita da capital, da penumbra do anonimato (afinal de contas, ser uma figura pública é cansativo) e de alimentar a sua pintura com «várias formas de arte, quer seja música, cinema, livros, coisas que só encontro nas grandes cidades», o esforço logístico de subir a norte é sempre justificado. Em causa não só está a natureza do espaço, «porque o meu atelier prolonga-se por todo o lado; a aldeia, e sobretudo o campo, é o meu atelier, onde procuro o silêncio», como não é de somenos importância o aspeto relacional. Estes seus regressos a Trás-os-Montes são perfumados de afetos: a pintora diz voltar porque «gosto muito de estar com pessoas que me conhecem desde criança, esse encontro de pessoas que conhecem a minha história e eu a delas».

“O Segredo II”, 2008, Graça Morais ©Graça Morais
Esta «história», termo que prefere a «vida», de Graça Morais começa no Vieiro, aldeia próxima a Freixiel e a quase 90 quilómetros de Bragança. Terra isolada, rodeada de fragas, olivais e vinhedos, onde os poucos luxos eram obtidos com trabalho árduo, o modo de vida nesta localidade marcou a pintora, que lá viveu até aos sete anos: «era um lugar em que eu aprendi tudo, fiquei encharcada de sensações, de emoções, de boas recordações e quanto mais envelheço, mais valor dou a essa pequena aldeia». É por isso que, mesmo atravessando o mundo e bebendo das intermináveis torrentes de conhecimento que as grandes cidades oferecem, quando lhe perguntamos se vê as coisas sob um prisma moldado pela sua proveniência, a pintora não nega que, na sua obra, acaba por sobressair «uma herança cultural dum universo muito ligado à natureza e uma existência muito ligada ao mundo rural. Por isso, mesmo quando eu estou na cidade ou quando faço visitas a outros países e quero pintar sobre eles, a matriz é sempre a mesma, eu sou sempre a mesma pessoa».

Todavia, se esta influência é uma companhia constante, por outro lado a pintora denuncia uma certa tendência redutora com que se tende a olhar para sua obra. Se no início dos anos 80, Graça Morais regressou ao Vieiro para olhar e refletir sobre a paisagem e as gentes numa «relação quase antropológica com o lugar, uma ida ao fundo daquilo que eu queria conhecer», por outro lado lamenta que em trabalhos que pouco ou nada têm a ver com a realidade transmontana, «estejam sempre a ver nessas figuras as pessoas de uma região, mas que nem sempre são». Disso são exemplos os rostos dilacerantes em A Coragem e o Medo, exposição que agrupou quadros alusivos a pessoas desesperadas que Graça Morais recortou dos jornais e reproduziu a quente aquando das convulsões das Primaveras Árabes.

“20 de Janeiro de 2017”, 2017, Graça Morais ©Graça Morais
Quer sejam conterrâneos ou viajantes longínquos em busca de salvação, é de pessoas – doridas, generosas, sofredoras, gentis, miseráveis, solidárias, o ser humano no seu melhor e no seu pior – de que trata maioritariamente o trabalho de Graça Morais. Ao pendor humanista da sua obra, a pintora não atribui nenhuma causa direta, mas arrisca que poderá ter a ver novamente com o meio onde viveu e cresceu: «Convivi de perto com gente muito pobre e o meu avô materno tinha uma casa de lavoura grande onde dava trabalho a muita gente. Essas pessoas entravam e saíam de nossa casa com muito à vontade e eu andei sempre no meio delas, mulheres e homens, sem medos, porque me acarinhavam e eu tinha a curiosidade de me sentar ao lado delas a comer e a ouvir as suas histórias». Perante essa situação de carestia de quem a rodeava, Graça Morais habituou-se, não a seguir uma linha doutrinária de caridade, mas a sentir «mais do que empatia, um querer estar ao lado dessas pessoas», destacando que a sua pintura «não transmite apenas essa dimensão da compaixão ou da solidariedade com quem passa mal porque não tem dinheiro, mas atenta também às pessoas que são vítimas de violência e que têm problemas graves na sua vida, os excluídos da sociedade».

No que toca a grupos tradicionalmente vulneráveis, é inegável que um dos focos temáticos por excelência da pintora transmontana é a mulher, nas mais diversas vertentes: da serenidade solitária d’As Escolhidas (1995) à cumplicidade presente em Segredos (2008) – série cujo um dos quadros adorna a edição de primavera 2018 da EPICUR. Desde cedo, Graça Morais dedicou-se a retratar as figuras femininas porque «as observava com muita atenção, era-me mais fácil conhecer o mundo das mulheres do que o dos homens, desde criança que estava proibida de brincar com rapazes». Os costumes tradicionais, a segregação de género no ensino do Estado Novo, a infância nas casas da mãe e do avô materno, coladas uma à outra e unidas por uma grande porta, onde viviam avós, tios e tias – a mãe e as suas irmãs, «Imagine, seis mulheres numa casa! O que se falava, o que se dizia! As festas, as discussões, era tudo um mundo muito complicado mas também muito fascinante» -, todas estas experiências contribuíram para que a pintora focasse o seu olhar na condição feminina.

"As Escolhidas IV", 1995, Graça Morais
Cerne da existência, o primeiro grande modelo foi a sua mãe, que achava as representações pouco lisonjeiras por não aderirem aos cânones típicos do retrato. No entanto, foi essa recusa de aderir a um modelo realista que lhe permitiu, por exemplo, trazer à tela uma figura de mãos vermelho-sangue como em Raiva (2016), que visa a forma por vezes brutal como algumas mulheres são sujeitas à violência dos seus parceiros. Todavia, Graça Morais diz recusar qualquer intuito programático ou ideológico, assumindo que «tudo o que faço não tem a ver diretamente nem com religião nem com um programa político, mas com uma consciência do mundo e de que sou mulher e de como gostaria de estar ao lado de outras que não conseguem aquilo que eu consegui».

Mesmo com uma carreira longa e recheada de louvores, Graça Morais não prescinde da pertinência dos seus trabalhos da urgência da sua arte. Quando a visitámos, encontramo-la na capital, onde está a passar por um período de transição. Gafanhotos secos, batatas greladas e romãs são alguns dos objetos que tem à mesa a servir de inspiração, num espaço despojado que lhe serve de atelier improvisado mas lhe permite continuar a trabalhar, embora sem o conforto ou as condições logísticas que o seu “lar” artístico da Costa do Castelo, atualmente em obras, lhe confere. «Não vivo isolada numa torre de marfim», relembra, «pelo contrário, leio os jornais, informo-me com a televisão, com a internet, observo e falo com as pessoas no meu dia-a-dia». As ilustrações que nos mostra, de gafanhotos antropomórficos, são metamorfoses kafkianas num espelho da realidade no interior do país que a pintora tem observado com inquietação: «estes velhos tão indefesos, são estes gafanhotos, é o drama da solidão, do despovoamento, dos predadores que por onde passaram limparam tudo».

©Miguel Silva
É por isso que, olhando para este estado de permanente instabilidade e futuro incerto que se vive, não apenas em Portugal como no mundo, Graça Morais reage com satisfação a uma geração de artistas engajada «em não fazer uma arte vazia, oca». Numa fase em que uma larga percentagem da juventude do país está no desemprego ou em situações de precariedade, esses efeitos evidenciam-se com agudeza no meio artístico. Em vez de procurar satisfazer o mercado, o que a artista tem visto são «instalações, filmes, fotografias de jovens criadores, nenhum deles a fazer uma arte fútil nem decorativa, estão todos muito empenhados». Encarando o momento como um simbólico “passar de tocha”, a pintora diz-se «muito contente porque sempre estive empenhada em fazer uma arte que inquietasse as pessoas – primeiro a mim e depois aos outros e que os levasse a pensar, porque a Arte é isso, é interrogar as pessoas, é dar-lhes prazer mas também enriquecê-las no seu olhar sobre o mundo».

Há vários meios e ferramentas de despertar as pessoas para a criação artística e uma delas diz respeito diretamente ao legado da pintora transmontana. Inaugurado no centro de Bragança em 2008, o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais foi uma surpresa para a pintora, que aceitou «com muita honra» batizar este espaço com o seu nome projetado por Eduardo Souto Moura. Regressando aos tempos em que andava no Liceu da cidade, Graça Morais lembra-se das visitas ao Museu Abade de Baçal onde, apesar da riqueza do seu acervo em arte sacra, arqueologia e numismática, nele «não encontrava a pintura mais recente que eu procurava». É por isso que a artista considera este centro de arte crucial, não só para a região, mas também para o país, pois o espaço programa exposições de inúmeros artistas, de espetro nacional e internacional. Porém, a relevância deste espaço também toca à sua obra, já que lhe permite ir «criando exposições que considero importantes para as pessoas conhecerem a minha pintura e para eu poder mostrar o melhor que fiz».

©Miguel Silva
Se habituar adultos a ter hábitos de consumo cultural é importante, essa tarefa ganha um cunho fundamental no que trata a educar os mais novos. Para Graça Morais, a maior qualidade do Centro é «ver crianças de 3 anos deitadas no chão a desenhar a partir dos meus desenhos. Quando visito o Centro, gosto mais dos desenhos deles, porque eu acho que as crianças ensinam-nos! Já viu o que é a minha pintura poder despertar nessas crianças a criatividade? Isso é um privilégio.» Numa era de total tecnologização da vida quotidiana, é imperativo continuar a incentivar o público a ter um encontro com a cultura, porque esse contacto «é muito importante para desenvolver uma reflexão em torno da Arte, da Liberdade e da Vida». No cerne da arte está a alma, a de quem criou e de quem aprecia. No que toca a essa conceção tão imaterial quanto presente na nossa existência, Graça Morais conclui: «à alma, não há tecnologia que a substitua».

Por Antonio Moura dos Santos
Fotografia de Destaque – ©Miguel Silva
EPICUR

1 comentário:

  1. Olá Henrique! Obrigada pela partilha. Ontem entrei em casa de uma pessoa para com ela conversar que se sentava num sofá com um quadro da Graça Morais que me deslumbrou completamente. Era desta série "as escolhidas" e fiquei fascinada. Hoje vim procurar saber mais e este artigo do António Moura Fernandes deliciou-me e aquietou a minha curiosidade. Muito interessante esta entrevista, a posição feminina, as raízes da pintura o seu entendimento do mundo e do lugar da pintura nele culminando com a ideia de que " o campo é o meu atelier" que é tão inspiradora. Muito obrigada pela partilha.

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