Vera Moutinho |
Na minha relação com o vinho, vivi na inocência até ao momento em que deixei de ser um mero consumidor (tardio, diga-se) e me tornei produtor. Desde então, já bebi vinhos extraordinários, mas nenhum me soube tão bem como aquela garrafa de Mouchão que, numa noite, teria eu uns 25 anos, fui bebendo sozinho enquanto via um filme na televisão. Nessa altura, não sabia nada sobre vinho, nem sonhava sequer ser viticultor. Era apenas um mero curioso.
Tornei-me produtor por saudade das memórias agrícolas vividas com a minha mãe. Comprei as primeiras terras em Favaios, vila vizinha da minha Alijó natal, mas vicissitudes da vida obrigaram-me a desistir e a mudar-me para Bragança. Num sábado, já em Bragança, eu e a minha mulher, a Cristina, saímos de casa decididos a comprar uma pequena vinha no Douro. Começámos a procura pelo Douro Superior, cujas paisagens me tinham impressionado durante as muitas reportagens que tinha feito nesta região a propósito da polémica das gravuras rupestres. Mesmo sem dinheiro, e hipotecando o pouco que tínhamos, acabámos por comprar uma pequena quinta junto ao rio Douro, em Vila Nova de Foz Côa. Era um lugar idílico, mas de difícil acesso - e as uvas só eram boas para vinho do Porto. Acabámos, alguns anos depois, por vender a quinta a um vizinho e reinvestimos tudo na aldeia vizinha de Muxagata, a uma cota bastante mais alta.
Comecei esta aventura de viticultor em 1999, investindo tudo o que ia ganhando no PÚBLICO na compra de terra e na plantação de vinha. O património que fui criando deu-me uma coisa essencial: independência económica. E foi essa independência económica que me permitiu, em plena crise, pedir à direcção do PÚBLICO para sair de editor da Fugas e, logo a seguir, dos quadros do jornal, ficando apenas como colaborador avençado.
Como todos sabem, independência económica significa basicamente o mesmo que liberdade (embora esta não se exercite só quando se tem desafogo económico). Liberdade de não ter medo de criticar. De criticar até mesmo quem nos paga, como já aconteceu várias vezes aqui no Elogio do vinho, a propósito das promoções enganosas, embora legais, que cadeias como o Continente, que pertence ao proprietário do PÚBLICO, faz regularmente. De criticar as margens abusivas praticadas por alguns restaurantes, o espírito mesquinho e vingativo de alguns dirigentes de comissões vitivinícolas e a inércia de outros, o "enochatismo" de muitos bloggers ou a excessiva dependência das revistas da especialidade do investimento dos produtores e de patrocinadores em cada vez mais feiras e galas. Quem produz vinho e precisa de vender vinho, não ganha nada em ser crítico de todos estes “poderes”. Mas um jornalista nunca pode pensar em si quando escreve, nem nos prejuízos que pode sofrer. E eu, mesmo sendo produtor, continuo a pensar como jornalista.
Tem toda a razão quem critica a duplicidade de papéis que assumo quando escrevo este Elogio do vinho. Sou jornalista e produtor ao mesmo tempo. Esta qualidade devia vir explicitada no final do texto, embora servisse apenas para aliviar a consciência. Quando o actual director do PÚBLICO me desafiou a escrever uma crónica de vinhos, alertei-o para esta situação constrangedora. Não devia ter aceitado o desafio. Decidimos correr o risco - e não me arrependo, apesar das inimizades que fui criando ao longo deste tempo.
Nunca escondi esta duplicidade de papéis, ironizando até com ela em algumas crónicas. Sempre assumi também que neste sector não há inocentes. Só por cinismo e arrogância moral me poderia colocar de fora do “problema”.
O “problema” decorre da natureza do próprio negócio do vinho, que vive muito da necessidade de conquistar notoriedade para o produto e que leva a uma grande dependência dos produtores em relação a quem avalia e escreve sobre vinhos. E decorre, sobretudo, da falência do negócio editorial, que deixa quem escreve sobre vinhos muito dependente dos convites e do envio de vinhos por parte dos produtores.
Num mundo ideal, as revistas que escrevem sobre vinhos deviam depender apenas dos leitores e dos anunciantes. Mas hoje, como toda a gente sabe, dependem quase exclusivamente dos produtores. Ou seja, quem é avaliado é quem garante o negócio. O problema é extensivo também a jornais com secções de vinho, como o PÚBLICO, embora a sua dependência em relação aos produtores seja muito menor.
Perante a inversão da ordem natural das coisas, e por mais isentos que queiramos ser, estaremos sempre um pouco de mãos atadas. Quando participamos como convidados numa viagem de sonho ou numa grande prova, já estamos a ser condicionados à partida. Quem disser o contrário, está a mentir a si próprio. O grande desafio que se coloca hoje a quem escreve sobre vinhos é deixar-se influenciar o menos possível.
Vale a pena recordar que uma crónica é um texto de opinião e vincula apenas o seu autor. Tenho tido sempre razão? Claro que não. Já fui injusto e já cometi muitos erros de avaliação. Também sou merecedor de críticas.
Não vou, por isso, responder a Luís Lopes, a não ser dizer-lhe que não temo as pedras e, já agora, que também ele e a sua revista podiam fazer muito melhor.
Peço desculpa pelo excessivo tom pessoal desta crónica. Termino no mesmo registo, para dizer que, no mundo do vinho, há muito que perdi a inocência, bem como a atracção pelos holofotes e a paciência com a soberba e a arrogância intelectual de quem acha ter o monopólio da sabedoria para poder avaliar e escrever sobre vinhos.
Há alguns meses, manifestei à direcção do PÚBLICO a minha vontade de deixar de escrever esta crónica semanal. Fui convencido a continuar. Até hoje. Desisto do Elogio do vinho por vontade própria. Mas, enquanto a direcção do PÚBLICO me achar útil e eu gostar, vou continuar por aqui, a escrever sobre vinhos e sobre produtores, sempre com o mesmo esforço de independência que é a marca deste jornal.
Pedro Garcias
Fugas
Jornal Público
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