terça-feira, 17 de setembro de 2019

ESTÓRIA DE UM SONHO

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS
São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)


O Nóquinha, apelido do senhor Francisco Xavier, era um homem cordial e sensato. Era também um homem trabalhador. De segunda a sexta feira ele trabalhava como auxiliar de limpeza em um supermercado, no município de Taboão da Serra. Nos fins de semana trabalhava como camelô na Rua Direita, em São Paulo. Ele só tinha um comportamento um pouco estranho: dizia que adorava passarinhos. Sempre era visto andando pelos cantos, dando gorjeios à perfeição. As vezes era um sabiá-laranjeira; outras vezes um canário da terra; outras um avinhado, e por aí adiante. No meio dos colegas de trabalho era conhecido com o apelido de Nóquinha-passarinho. Todos os sábados ele montava sua barraca de CDs piratas, onde vendia só gravações de trinados de pássaros, sejam eles da América, Europa, África, Ásia ou Oceania. Não raro, ele levava uma gaiola com passarinhos para compor o ambiente. O seu assunto era só sobre passarinhos. Nos domingos ele repetia a dose: armava a sua barraca nas primeiras horas do dia, para vender suas fitas, livros e CDs sobre passarinhos.

O Nóquinha fazia esta vida já há uns dois anos. Nos últimos tempos, no entanto, demonstrava andar muito deprimido: devido à recessão, suas vendas foram diminuindo cada vez mais; nem mesmo clientes antigos apareciam para comprar seus produtos. No mercado onde trabalhava durante a semana, os colegas também notaram a mudança. Nas primeiras semanas, andava com ar triste, pouco falava. Quase nunca comparecia ao refeitório na hora do almoço. Alguns colegas chegavam a dizer que ele não comia há pelo menos três semanas, o que seu físico provava, porque o Nóquinha emagrecia a olhos vistos. Passados uns três meses, ele era praticamente pele e osso e com disposição nenhuma para o trabalho. Começou então a ir trabalhar com a mesma roupa por vários dias, e fortes suspeitas, pelo odor, que banho também era coisa que não tomava. Afora isso, começou a usar uns enfeites estranhos: pés de pássaros embalsamados, usado ao pescoço preso por um cordão; colar de penas de pássaros coloridos e etc.

Quase não se comunicava com ninguém: até mesmo a um bom dia ele respondia com um pio, ou um trinado, dependendo do humor. Alguns colegas chegaram a afirmar que o viram comer sementes de girassol, alpiste, semente de mostarda, painço e outras comidas específicas para pássaros. Nos fins de semana, passava o dia todo andando em volta da sua banca de camelô, agitando os braços, imaginando-os asas, soltando gorjeios. Pouco se importava com os seus produtos que, cada vez mais, eram surrupiados pelos desocupados, meninos de rua, fiscais das prefeituras e etc. Ao Nóquinha só interessava imitar pássaros. Na sua cabeça doente, ele próprio era um pássaro. Dessa maneira, seu comportamento virou uma piada. Ele não via mais nada do mundo real. Acreditava ser um pássaro, e se lamentava, às vezes, em altos brados, brigando com Deus e as forças da Natureza, por não o terem feito um pássaro.

Naquele sábado ele chegou bem cedo, armou sua barraca e abriu uma grande mala que havia trazido. No centro da cidade de São Paulo, bem no meio da Rua Direita, despiu-se e vestiu uma espécie de macacão todo revestido externamente com penas de pássaros, uma infinidade delas: penas de ganso e avestruz, papagaio e galinha de angola, pintassilgos, periquitos, canários: sem contar com uma enorme cauda de peru. Vestiu também uma espécie de toca revestida com penas de tucano, onde sobressaía uma enorme crista, como aquelas de galos, feita de tecidos e plásticos vermelhos. Havia até um bico, feito de papel machê, preso por um elástico amarrado nas pontas, o qual o Nóquinha também vestiu, prendendo-o por elástico à nuca. Os seus pés foram cobertos por um par de alpargatas com solado de cânhamo, também revestidos com penas. E assim passou todo o dia de sábado, vestido e comportando-se como um grande pássaro. Nesse dia ele não comeu e nem sequer foi embora: dormiu ali mesmo sobre a lona que forrava sua banca de camelô. Lá pelas tantas da madrugada, os desocupados e malandros que vivem nas ruas, se incumbiram de tirar-lhe tudo o que tinha. Só deixaram a fantasia de pássaro gigante e a aliança da mão esquerda, além da lona sobre a qual dormira. Nas ruas, nem um comentário que não fosse piadas sobre aquele doido que se fantasiou de pássaro.

O domingo amanheceu chuvoso. O pobre Nóquinha acordou tarde, quando milhares de transeuntes passavam ao lado daquela triste figura.

Por terrível coincidência ele acordou molhado, com frio e consciente. Ele pôde constatar por si mesmo que haviam-lhe roubado todas as mercadorias, os suportes da banca, seu minguado dinheiro, sua roupa e sua dignidade. Ele levantou-se e abriu os braços para os céus enquanto bradava por justiça e clemência. Num instante formou-se ali um grupo de curiosos para ver aquela figura, vestido de pássaro, cambaleante, rogando justiça a Deus e aos homens. A cena era tragicômica. Sob uma fina chuva de um domingo friorento do mês de junho, aquele homem ali, vestido como se fora figurante de escola de samba; roupas e gestos bizarros, gritando, xingando a todos que o rodeavam. Ele sentia dores por todo o corpo. Sua cabeça girava, suava frio, embora a temperatura neste dia também estava fria.

Não entendia ter sido roubado, não entendia a vida, não entendia não ser um pássaro, não entendia estar ali naquele momento, molhado pela fina chuva e pelo próprio suor. Nóquinha, em certo momento, também sentiu tonturas e não enxergava muito bem as pessoas ao seu redor: via apenas vultos. Vultos que aos poucos se transformavam em monstros espectrais. Ele sentiu muito medo e pôs-se a tremer, ajoelhado a um canto da rua e semi-coberto pela lona da barraca. Suas penas todas molhadas e amarfanhadas, já se percebia que a qualquer momento começariam a desprender-se. Ele se viu num relance, entre as labaredas do inferno e, em meio ao fogo um enorme monstro cabeludo, carregava um outro igualmente feio monstrinho nos braços, que avançava contra ele e gritava qualquer coisa inaudível com aquela boca horrenda, de enormes dentes. O pequeno monstro também tenta alcançá-lo pelo pescoço. O Nóquinha negaceia, dá uma ginga de corpo e se levanta, pronto para correr e se livrar daqueles monstros que, por sua vez, estavam rodeados também por uma infinidade de monstros, todos horríveis. O entrevero parecia inevitável. Ele começa então a fugir daquela algazarra de monstros. Corre cerca de cinqüenta metros seguido pela turba. Agita os braços, como se fora um pássaro, não levanta vôo e, fica ainda mais apavorado e frustrado.

De vez em quando sente dores nos quadris, nas pernas e nas costas, tal e qual agulhadas. Volta-se e vê monstrinhos dando-lhe pontapés e murros. O monstro cabeludo que tentou pegá-lo e que estava com o monstrinho nos braços, tentava parar aquela imensidão de monstrinhos que chutavam-lhe o traseiro e as costas. Por um instante chegou a pensar que estava tendo visões, e que o monstro cabeludo com o monstrinho nos braços poderia ser sua mulher com seu filho no colo e os outros monstrinhos que o atacavam poderiam ser os pequenos ladrões que viviam infernizando os camelôs. Mas isto foi só por um lapso de tempo. Agora o Nóquinha já alcançava a Praça do Patriarca e percebeu que a chuva havia parado. Agora uma réstia de sol iluminava toda a praça. Ele sentiu o calor do sol no rosto escondido com o bico feito de papel machê. Algumas pessoas de uma religião evangélica que estavam reunidas ali na praça,  uniram-se à turba e foram, também eles, seguindo aquele “palhaço” vestido de pássaro e que agitava os braços, dando saltos para tentar voar; que piava e gorjeava como um pássaro de verdade. Também seguiu a turba, dois policiais que faziam a ronda no local, seguidos de todas as pessoas que àquela hora chegavam na Praça do Patriarca, vindos do Vale do Anhangabau, pela escada rolante. O Nóquinha corria na frente e dava pinotes, como que pulasse de um poleiro ao outro; agitava os braços e gorjeava alto como nunca. Sua esposa com o filho ao colo, só o alcançou quando já estava no Viaduto do Chá, trepado na mureta de proteção. Num certo instante  ele parou, voltou-se para a esposa e filho, fazendo crer que seu cérebro os tinha reconhecido. Até esboçou um sorriso!. Porém, ao ver a multidão que o seguia, seu cérebro deve ter entrado em pane e, novamente, só via monstros à sua volta. Ele, com aquela estranha roupa, subiu no parapeito do Viaduto do Chá. Cinqüenta metros abaixo, carros, ônibus e pessoas às centenas, às voltas com seus estressantes afazeres, nem sequer o notaram. De pé sobre o parapeito do Viaduto do Chá, o Nóquinha deu um último trinado, alto, forte, que foi ouvido até na Praça da República. Ergue os braços/asas, cobertos de pena. Olha para os céus e salta espetacularmente. Seu corpo começa a cair em direção ao solo, em pleno leito do Vale do Anhangabau, ele agita freneticamente as asas. Agita-as mais e mais; apruma-se, volta a bater as asas e começa a subir. O sol agora ilumina em cheio aquela cena, só que ali não estava Ícaro, mas o nosso Nóquinha. Aquela multidão sobre o Viaduto do Chá, sem querer acreditar no que viam, eram testemunhas de um acontecimento incrível. O Nóquinha sobrevoou todo o Vale do Anhangabau, subiu mais voltou em direção do Viaduto do Chá, deu uma rasante e novamente subiu, executando um arco no céu percorrendo todo o arco-íris que, do outro lado do viaduto havia se formado, e se perdeu no infinito.

- O Nóquinha realizou seu sonho!

Referência: este texto faz parte do Livro "Fragmentos", do autor, publicado em 2001 pela Editora Nativa, de São Paulo, Brasil.


Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 9 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de 5 outros publicados em antologias junto a outros escritores.

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