Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo - Brasil
O senhor Etelvino era um homem mau. Até sua mulher e filhos eram vítimas constantes dos maus tratos, imaginem os outros! E não parava por ai. Ele maltratava também os colonos da fazenda da qual era dono, além dos animais. Ele contraíra tifo, e por causa dessa doença mal curada tinha frequentes acessos de fraqueza mental e física e não raro desmaiava nessas ocasiões. Por muitas vezes o doutor Fernando aconselhou-o a se aposentar; deixar a fazenda com os empregados e viajar para a Europa. Às vezes até dizia: o senhor ainda vai morrer por um nada; ao que ele respondia: dessa doença eu não morro! E ele era durão mesmo. Superada cada nova crise, o Etelvino punha-se de pé e gritava ordens e palavrões, contra tudo e contra todos.
A fazenda do Etelvino produzia um pouco de um tudo: quarenta vacas holandesas e parideiras forneciam o leite que, além de amamentar todas as famílias da fazenda ainda transformavam-se em queijos, manteigas e doces de leite; vinte e cinco porcos no mangueirão e oito nas cevas eram garantia de fartura de pernil defumado, linguiça de paleta, toucinho, banha e carne, que depois de fritos em enormes tachos, eram armazenados em latas de dezoito litros devidamente protegidas, e cobertas de gordura de porco, o que fazia com que por períodos de até um ano a família o Etelvino tivesse sempre à mesa, quando bem o quisesse, fartos e suculentas suãs, postas de pernil, lombinho ou costela, os quais curtidos nas latas pareciam frescos, como se a matança houvera sido feita no mesmo dia! A fazenda tinha, cultivados, cem mil pés de café produzindo as variedades “arábico e bourbon”, sendo esse cultivo aquele que realmente sustentava a fazenda e seus empregados. Tinha ainda três tanques para manejo e dois de engorda de peixes de rio, principalmente pintados e piaparas. Essa atividade, nova paixão do Etelvino, ocupava dez colonos treinados para esse trabalho.
O Etelvino, embora não demonstrasse, pois era rídico, possuía uma boa poupança no banco e na Caixa Econômica, e ainda era sócio do único posto de gasolina do vilarejo. À questão de cinco anos, no entanto, meteu-se numa cooperativa para construção de uma usina de álcool para uso em automóveis. No ralo da usina de álcool ele foi injetando seu capital. Primeiro parou a criação de peixes para dedicar-se ao plantio da mandioca, que seria usada na futura usina. Por falta de uma grande área para produzir mandioca em quantidade suficiente para o que seria o consumo da usina, e não querendo diminuir as pastagens para o gado, mandou erradicar vinte mil pés de café, com a desculpa de que o preço internacional estava baixo. Nesses quatro alqueires de terra ele plantou mandioca. E como colheu o tubérculo! Como a usina nunca que ficava pronta, o Etelvino exigiu que a fazenda tivesse que consumir toda aquela mandioca! Era mandioca com melado, com rapadura, com açúcar, cozida, frita, com churrasco, com manteiga, com frango; eram bolos, broas, bolachas, bijus, mingaus e bobós. E dá-lhe mandioca! Passaram a fazer farinha, alimentar os porcos cevados e do mangueirão. Fatiadas, eram servidas ao gado de leite; e dá-lhe mandioca! E nada de usina! E dá-lhe mandioca! O fato é que sobrava mandioca!
Nesse ínterim, finalmente a usina ficou pronta. Mesmo assim o Etelvino continuava com as crises da doença! As crises que eram mensais passaram a ser semanais e, à medida que a usina ia sendo concluída, passaram a ser diárias. Ele começou a ter vertigens no jipe que dirigia, na charrete, no cavalo, e até quando andava a pé! E cada vez as crises eram mais duradouras, que também precisavam de mais tempo para se restabelecer. Desse modo, parou de dirigir a fazenda com “mão-de-ferro”, e o comando da fazenda passou para o Izaltino, pessoa tão bondosa quanto supersticiosa, o qual, segundo alguns, se transformava em lobisomem nas noites de lua cheia. Essa crença era devido ao fato de que o Izaltino, muitas vezes, aparecia de manhã muito pálido, olhos fundos, boca entre verde e amarelada, além das roupas sujas com penas e bosta de galinhas. Dizia-se que o patrão só havia permitido que ele administrasse a fazenda porque, tinha medo de assombrações, aparições, fantasmas e, principalmente, morria de medo de espíritos e almas penadas; sentia vertigens só em pensar.
Um belo dia, o Etelvino recebeu a visita do secretário do governador, ocasião em que foi informado da data de inauguração da usina. Para surpresa e desespero do Etelvino, ficou sabendo que a inauguração seria dali a duas semanas; e o governador em pele-e-osso viria para o evento. O secretário até pediu ao Etelvino que, em caso de discurso, deixasse que o governador “desse a última palavra”. Em seguida, o secretário disse que, a pedido do próprio governador, que o Etelvino abarrotasse a usina de mandioca, pois o governador havia confidenciado a ele que na inauguração da usina ele próprio queria “dar a partida”, para consolidar o discurso que agora iria sobrar energia elétrica e álcool, até para exportar! Dessa maneira, asseverou o secretário, o governador não arreda pé da usina até que ao menos um litro de álcool fosse produzido, e queria mostrar para a imprensa falada, escrita e televisada, que os estoques de mandioca – matéria prima fundamental era suficiente para produzir milhões de litros.
Tão logo o secretário foi embora, o Etelvino começou a dar ordens; mas foi informado pelo Izaltino que havia muito pouca mandioca para o evento; portanto se fossem atender ao pedido do governador, teriam que mandar buscar mandioca de outros rincões, e a peso de ouro, pois teriam que gastar com o combustível, diárias e hospedagens dos colonos motoristas que fariam o transporte; o Etelvino teve três convulsões seguidas, e nos intervalos entre uma e outra, amaldiçoou “o lobisomem” por não ter tido a ideia de economizar mandioca. O Izaltino rebateu às pragas, lançando uma de volta ao patrão, dizendo que mesmo depois de morto viria buscar o Etelvino para acompanhá-lo até os quintos dos infernos, onde era o lugar dele!. De tão transtornado, o Izaltino teve uma síncope e morreu ali mesmo, estatelando-se aos pés do Etelvino, agarrado às suas botas, que desesperado, tentava livrar-se daquelas mãos demoníacas. Depois do enterro do administrador, Etelvino passou a comandar as partidas de mandioca até a usina. Passados dez dias da visita do secretário do governador, recebeu deste um ultimato: no máximo em dois dias o depósito deveria estar pleno, caso contrário, aquela usina nunca mais seria posta em funcionamento, e que o “fogo morto” da usina não poderia ser pretexto para o Etelvino não pagar os polpudos empréstimos que havia tomado do governo, e sem nenhum juro. O governador avisou que se alguém fosse ficar mal com a imprensa, esse alguém seria o Etelvino e de qualquer maneira ele, o governador, do alto do seu posto, deveria sempre dar a versão final de qualquer notícia para a imprensa! Qualquer que fosse o comentário, o governador seria o arauto. Que todos os demais se calassem. O Etelvino reuniu todos os colonos e deu ordens severas: qualquer colono que não colaborasse com afinco ou que não trouxesse mandioca vinte e quatro horas seguidas, seria demitido! Os colonos começaram a correr por todos os lados buscando mandioca para abastecer a usina. Por obra do destino o Etelvino, ele mesmo, pegou um velho caminhão e foi buscar um carregamento de mandioca no Mercado Central da sede da Comarca.
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Entrementes, no vilarejo entre a sede da Comarca e a fazenda do Etelvino, acontecia a festa das “bodas de ouro” do casal Agripina e Izaltino, este, velho e conhecido boêmio da cidade. Mas, apesar dos deslizes do marido, Agripina sabia como levar a casa e os filhos, pode-se dizer que vivem muito bem! Embora o velho Izaltino não desse a suportação moral necessária para os dez filhos, dava-lhes o sustento e algum estudo. Todas as outras necessidades, inclusive as ausências do Izaltino e sua presença patriarcal e a cobrança para com os estudos, eram feitas pela velha professora aposentada, Agripina, que com bondade e paciência, ocultava dos filhos os muitos “casos” do marido boêmio. No dia da festa das bodas de ouro, com orgulho, Agripina e Izaltino confirmaram na igreja, os votos do casamento de há cinquenta anos. Ao lado os dez filhos com outros dez genros e noras, davam o tom festivo. Como presente, os filhos deram aos pais o jipe americano de capota conversível, sonho de consumo do casal. E, para curtirem o presente tão sonhado quanto inesperado, o casal resolveu ir até à sede da comarca, onde seriam hóspedes por dois dias do “Grande Hotel”. Tão logo chegou a noite, despediram-se dos entes queridos e, junto com duas maletas, aboletaram-se no jipe “deles”, sob os aplausos de todos. As luzes de vapor de mercúrio que iluminavam o acesso da Avenida principal com a Rodovia Anhanguera, mostrou a felicidade do casal. O jipe foi até o retorno, passou sob a rodovia, fizeram conversão à esquerda e aceleraram rumo à sede da comarca, para viverem belos momentos.
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O Etelvino terminou de carregar o velho caminhão no Mercado Central, quando as primeiras luzes da sede da Comarca começaram a acender. (A noite chegara sobre a sede da Comarca com a devida aprovação e benção da Câmara Municipal, afinal se a noite não chegasse, o que seria da iluminação pública à gás de mercúrio, caríssima obra que resultou de muitas discussões na casa de leis e polêmica no “Pasquim” local). Quanto ao Etelvino, cansado, porém feliz de naquele dia não ter tido nenhum desmaio, instalou-se na cabine do caminhão, deu partida e entrou vagarosamente no acesso da Rodovia Anhanguera. Mal entrou na rodovia, começou uma fina chuva. O barulho da água da chuva sob os pneus e sobre a capota da cabine era um convite para dormir ao volante. O ar frio que entrou, de repente, na cabine fez com que o Etelvino arrepiasse dos pés à cabeça. Num átimo, lembrou-se do empregado recém-falecido, o Izaltino, que prometeu infernizá-lo depois de morto. O vento do caminhão ao passar pela estrada provocava um redemoinho, que contorciam e dobravam os capinzais à sua passagem. O barulho nos capinzais começou a causar medo ao Etelvino. Por vezes pensou ouvir a voz do Izaltino gritando:
- Pare este caminhão! Aqui é o Izaltino. Pare este caminhão.
O Etelvino fechou e abriu os solhos com força. Por certo estava muito cansado e ansioso. Afinal a usina de álcool, pela qual tanto lutara, seria inaugurada no dia seguinte e ele seria homenageado pelo governador em pessoa, pelos seus esforços na construção daquela usina. Seria reconhecido por todos, com fotos nos jornais, entrevistas em rádio e televisão, onde seria dito o quanto ele trabalhara para que a usina se instalasse naquele lugar e em nenhum outro. É certo que ele doara o terreno e prometera que ainda forneceria toda a matéria prima que a usina necessitasse: a mandioca! Ele como que via sua foto nos jornais ao lado do governador, com manchetes enaltecendo sua atuação. Voltou à realidade: o frio que passava pelas frestas dos vidros, ao invés de animá-lo, antes, aumentava o sono. N a escuridão da estrada, os capinzais deitando-se à passagem do caminhão e aquela voz:
- Pare este caminhão! Aqui é o Izaltino. Pare este caminhão!
Quando se aproximou dos pontilhões do sistema viário, pouco antes do vilarejo, a chuva tornou-se torrencial. Ele não via mais que trinta metros à frente; o limpador do para-brisa na última velocidade. O aguaceiro distorcia as imagens; as luzes desenhavam monstros espectrais; e o Etelvino morrendo de medo. Ao passar sob o pontilhão principal do sistema viário, no cruzamento com uma variante da estrada, ouviu um baque surdo na carroçaria do caminhão. Ele prestou atenção, mas não ouviu mais nada. –Deve ser impressão minha, pensou; e seguiu adiante. Mais um quilômetro; a chuva amainou e ele já sinalizava para entrar no a- cesso da usina. Aquela seria a última partida de mandioca que ele traria por sus próprias mãos. Depois da inauguração, queria voos mais altos: poderia ser vereador ou prefeito, ou quem sabe secretário de governo? A placa ao lado da estrada de acesso da usina indicava que faltavam cinco quilômetros. Nesse instante, em que a chuva já não caía e que uma misteriosa névoa havia invadido a estreita estrada de terra, o Etelvino deu um grito horripilante.
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Tão logo o Izaltino e Agripina entraram na rodovia em direção à sede da Comarca, o tempo fechou rápido. Rajadas de vento de mais de oitenta quilômetros por hora irromperam, trazendo consigo uma chuva torrencial. Debaixo de chuva, Agripina e Izaltino levantaram a capota do jipe, que não sabiam ser tão difícil. Tudo dentro do jipe estava molhado. A roupa que o casal vestia, estava colada à pele. De tão surpreso com a rapidez da chuva, da capota aberta e da roupa molhada, nem se falavam. De quando em quando se via a luz de um ou outro carro vindo em sentido contrário. No entanto o vidro do pára--brisas ficou totalmente embaçado. E começavam a sentir frio. Ela, para levantar o astral do querido Izaltino, abre a sua maleta e de lá retira uma garrafa de vinho do Porto, que ela secretamente ocultara. Ele, maravilhado com o fato, tomou um longo trago, findo o qual, ela tenta recolocar na maleta, no que é impedido por ele, que toma mais três ou quatro goles. Agripina vê, com pesar, que a garrafa já está pela metade. E começa a discutir, enquanto o álcool do vinho do Porto começa a atuar. E ele, embora pouco possa ver em meio à borrasca, finca o pé no acelerador, enquanto ela suplica: ele ri, ri muito, ri alto, e resolve recolher, de novo, a capota do jipe! Ele bêbado e feliz, quer sentir aquela chuva na cara, pouco se importando com ela. E mais acelera, e mais ri, até que ao passar num pontilhão por sobre o sistema viário, justamente na junção com a estrada que vem da sede da Comarca, ele bate violentamente na amurada, no exato momento em que para sentir maior sensação, dirigia “de pé”. Um estrondo se ouve, e os dois passageiros do jipe são atirados para fora. Agripina estatela-se no meio da rodovia, nariz sangrando, e desmaia.
O Izaltino foi jogado por cima da amurada e vai caindo na pista de baixo, numa altura de dez metros. Eis, porém que, antes de esborrachar-se no asfalto da pista que está abaixo, passa o velho caminhão do Etelvino, carregado d e mandiocas. Izaltino desfalece e permanece desmaiado por cerca de dez minutos. Agora sóbrio, desespera-se ao ver-se só, sem Agripina, em meio a mandiocas enlameadas. Ergue-se tanto quanto pode, e nota que há somente uma pessoa na cabine do caminhão. Olha à volta: a estreita estrada de terra está envolta por uma névoa espessa. Pensa em saltar do caminhão em movimento, mas lembra-se que já tem mais de setenta anos e, mesmo em baixa velocidade, um tombo pode significar a morte. Mas ele quer saber da Agripina! Não tem a menor ideia de como foi parar no velho caminhão de mandiocas. Então, resoluto, arrasta-se por sobre as mandiocas enlameadas; ele próprio um barro só, da cabeça aos pés. Desesperado grita para o caminhão pare. Não tem resposta. Então, arrasta-se até o mais próximo possível da cabine, e grita a plenos pulmões:
- Pare este caminhão! Aqui é o Izaltino! Pare este caminhão! Aqui é o Izaltino!
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O grito de horror do velho Izaltino foi seguido de outro, tétrico, do Etelvino. –Meu Deus, pensou o Etelvino: o Izaltino veio me buscar. Vou morrer e vou com ele “pros infernos”. O caminhão seguia lento; desesperado na carroçaria, o Izaltino deu meia dúzia de murros na cobertura da cabine, gritou, gritou mais de cem vezes: - pare este caminhão! Aqui é o Izaltino. Pare este caminhão!
Paralisado de terror, Etelvino freia o caminhão automaticamente, atônito, corpo gelado. Izaltino então, não sem muito esforço, desce do caminhão e caminha até a cabine. Bate na porta, chama; ninguém responde! Sobe então no estribo e olha. Ao volante o Etelvino paralisado, olho arregalado e vítreo. Na face, nenhuma reação! Com muito custo o Izaltino entra na cabine pela outra porta e incita o Etelvino com gritos primeiro; depois com xingos e pescoções. Só quando o dia já amanhecia é que aos poucos o Etelvino voltou a si. Primeiramente movimentou uma das mãos, depois os joelhos das duas pernas, e mexeu os olhos. Estava pálido e aterrorizado. Mais alguns instantes, e começa a chorar, rosto apoiado nos joelhos. Izaltino o incita mais e ele então se apruma e olha. A visão daquele senhor alquebrado, coberto de lama preta dos pés à cabeça; onde até no rosto tem tabletes de lama, é aterrorizante. Etelvino então balbucia:
- Quem é você?
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Agripina volta a si com gritos de pessoas o seu redor:
- Ei dona, acorde. Ei dona! Ei.... !!!!!!!!!!!!
Ela abre os olhos. Está deitada no acostamento da rodovia. Sob a cabeça, a guisa de travesseiro, uma mochila ou embornal; provavelmente de uma daquelas pessoas. Ao seu lado, no acostamento um velho ônibus estacionado, que não deixa dúvidas: são boias-frias. Provavelmente, pensou, pararam na rodovia para socorrê-la. E era isso mesmo! Aos poucos sua consci6encia foi voltando. Estava toda molhada. Lembrou-se da festa, do jipe que era presente dos filhos, e do marido. Ai então falou:
- Onde está o Izaltino?
Um dos homens que a havia socorrido disse:
-Não tem mais ninguém não, dona!
Agripina visualizou o jipe a poucos metros. Cambaleante, foi até lá e pode constatar que nada mais havia no jipe além de duas maletas e uma garrafa de vinho do Porto, totalmente vazia. Ela desesperou-se e gritou a plenos pulmões:
- I –Z- A- L- T -I -N -OOOOOOOOO!
O silêncio foi a resposta! Um pouco mais calma, Agripina relatou às pessoas que ali estavam, o quê ocorrera. Agora era essencial encontrar o Izaltino. Procuraram-no nas moitas dos capinzais ao longo e ao rés da rodovia, numa plantação de laranjas, em cima e em baixo do pontilhão. Tudo foi vasculhado. Nada! Resolveram então levar a Agripina para o vilarejo e comunicar aos filhos que o velho Izaltino havia desaparecido.
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Tão logo o Etelvino perguntou quem era aquela pessoa enlameada, o “homem das mandiocas” respondeu:
- Izaltino, seu criado! O senhor não está bem e vou levá-lo.
Etelvino sentiu chegado o momento final. Começou por tremer os lábios, depois os dentes, ao final todo o corpo tremia; e mais uma convulsão tomou o corpo. A diferença das outras convulsões é que, desta vez, era acompanhada por dores no peito, além de uma taquicardia. Os olhos turvos do Etelvino nem chegaram a prestar atenção que no retrovisor do velho caminhão alguns pontos escuros mostravam os carros embandeirados com o nome do governador e do partido; era o governador que chegava em carreata, para inauguração da usina. Os carros aproximaram-se em baixa velocidade. O próprio governador e seu secretariado socorreram-no e acompanharam aquelas que seriam as últimas horas de vida do Etelvino. Um carro foi designado para levar o Izaltino, ao passo que uma perua equipada com equipamentos de primeiros socorros e pequena sala de cirurgia que acompanhava a comitiva, foi colocada à disposição. Na parte lateral da perua estava escrito: “Unidade Móvel de Saúde”. Nesta perua o Etelvino foi conduzido para casa, conforme desejo do governador que, aliás, convidou a imprensa que os acompanhava para que o fotografassem ao lado do moribundo, que “Ele haveria de transformar em mártir e herói”. Foram muitas as fotos, inclusive uma em que o governador agachado junto ao Etelvino, em meio à parafernália hospitalar, esforçava-se para ouvir aquelas que seriam as últimas palavras do moribundo. De fato, quando o governador levantou-se, o Etelvino já havia partido deste mundo.
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A usina foi inaugurada, mesmo com os contratempos, pois o governador julgava que estava lucrando politicamente com os fatos. Mas, após o discurso de inauguração da usina, durante o coquetel em que o governador tomou o maior porre, os jornalistas indagaram-no, sobre quais teriam sido as últimas palavras do Etelvino, o mito; que dava nome à usina. O governador, muito emocionado, garantiu que ouvira as últimas palavras daquele herói que “dignificava o povo paulista”. O Etelvino teria dito, não sem muito esforço:
- Governador, tire o pé da mangueira de oxigênio!
Autor: Antônio Carlos Affonso dos Santos
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos. É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos” e quatro em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”.
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