(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Passei hoje uma vez mais em frente do edifício que foi, na década de 60 do século passado lugar de grande azáfama e de produção de vinho que resultava das uvas dos produtores de Bragança. Não conheço suficientemente a história desta Cooperativa que teve uma época áurea em meados de 60 e nos anos 70 perdeu a pujança e em declínio acelerado fechou portas. Não conheço por ignorância assumida, da estrutura da Sociedade, nem das causas subjacentes à sua incapacidade para continuar com a produção que naquele tempo me parecia a mim, ter uma qualidade de bom nível e um agradável método de "Marketing", já que os rótulos das garrafas eram agradáveis à vista e a variedade de vasilhame cumpria com a diversidade de garrafeira…
Vamos ao que me levou a escrever esta crónica.
Vale de Álvaro era um local pacato, mas que começava a ser local de construção de vários edifícios destinados à residência de população com origem nas aldeias do Concelho que decidiam passarem a viver na cidade.
Lembro-me de o meu pai haver construído logo a seguir às Obras Públicas, duas casas em sequência ao Sr. Fernando Lelo de Rabal e uma outra no seguimento das já construídas à face da estrada para o Senhor Leal, camionista de França. O Arquiteto Manuel Ferreira construiu ali a sua residência, sendo "vox populi" que era uma residência moderna e de qualidade.
É impossível que eu possa descrever a imagem ou imagens que tenho na memória da distribuição do edificado e suas caraterísticas mais ou menos rústicas das Quintas que hoje são o local ocupado pelas centenas de edifícios que nos mais variados modelos foram sendo construídos e alteraram definitivamente a paisagem e o ritmo de vida no que foi em tempos um espaço rural que apenas a Estrada Nacional construída pelo Estado Novo descaraterizava pelo seu quê de coisa nova.
Passando o Armazém das Obras Públicas entrava-se num espaço desafogado, com vistas de longo alcance que se espraiava pelas terras da Lombada e mais para a esquerda, Norte, Montesinho. Era um estradão cujo pavimento era em paralelepípedos que largo e ladeado por muro de granito com capa em ambos os lados separava a Quinta do Dias à direita e um espaço gigante de lameiro também com muro do lado esquerdo que terminava onde foi construída a Adega e perto mas oposto à chamada Quinta do Silvano. Esta visão da paisagem apagar-se-á quando a minha geração findar. Não conheço fotos que tenham registo do que foi o espaço chamado Vale de Álvaro nesse tempo. Mas era para mim um sítio agradável e onde se podia andar com à vontade e do qual tenho recordações agradáveis.
Era a porta de saída para o outro Sabor que na adolescência substituía o Sabor da Ponte Nova e nos deslocava para a cosmopolita (?!) Presa de Oleirinhos.
Há uma infinidade de imagens e sentimentos que me ligam a este lado da cidade, que durante décadas, me passaram despercebidas e hoje me chegam em vagas que tenho sentido e classificado como o último preenchimento e atualização das minhas memórias do que já não existe.
Chegou entretanto o tempo da Adega Cooperativa. Devia ter os meus treze, catorze anos e deliciava-me com a fila interminável de tratores carregados de cachos de uvas que, acabadas de vindimar, eram transportadas, assim a céu aberto para a Adega. A garotada fazia carreira ao longo da estrada e não só pelas uvas que facilmente e com agilidade tiravam dos atrelados como pelo ar de festa que a azáfama da safra transmitia, esse tempo outonal e tépido, quase morno, tinha um encanto de sonho e vida, que só o Outono confere. As tinas gigantes de cimento ainda hoje, já escuras do tempo e do clima, me recordam passagens alegres e também algumas tristes dos vários estádios que compõem o mapa das idas a Vale de Álvaro em tempo de vindimas. Resistem como testemunhas dum tempo passado que se perdeu e de quem já ninguém fala.
Como em todas as unidades fabris, há regras de trabalho que têm a sua aplicação explicitada e que os trabalhadores devem cumprir. Máquinas e ferramentas devem usar-se com cuidado e sempre em estado de alerta. Só assim se evitam situações que podem redundar em drama como aquela que vou contar.
Por razões de higiene foi necessário fazer-se uma limpeza e desinfeção às tinas de cimento que estão à ilharga do edifício principal da Adega. Depois de vazias entraram dois operários numa delas. Levavam equipamento para procederem à limpeza e utilizaram uma escada para descerem entrando pela boca das tinas que está no topo e tem um raio suficientemente grande para caber um homem. Já no interior apercebera-se que havia ainda algum vinho que não havia sido retirado. Começaram a sentir tonturas e procuraram pedir auxílio. Mas o ambiente dentro estava saturado com o cheiro causado pelos vapores e ambos desmaiaram. Os outros operários aperceberam-se que algo corria mal e chamaram socorro.
Chegaram os Bombeiros e depois de os resgatarem levaram os dois homens para o Hospital da Misericórdia, ambos inconscientes. Assim permaneceram algum tempo, o bastante para que um deles fosse considerado morto e o outro continuasse a resistir teimando em agarrar-se à vida. Foi um tempo de luta dos médicos e enfermeiros para lhe salvar a vida.
Muito tempo após, o homem começou a dar de si e mais esforço e expectativa foram postos na ação até que finalmente o homem abriu lentamente os olhos e vagamente começou a recuperar os sentidos. O pessoal médico estava eufórico e expectante até que o médico responsável sentindo-o com alguma lucidez lhe perguntou: -Então como se sente? O homem encarou-o perplexo e responde por sua vez, perguntando: -Onde está o meu chapéu? Foi uma risada incontida. Como é possível que o desfecho de um acidente de gravidade tal, seja relativizado com uma preocupação tão pueril? Mas o cérebro é que comanda o corpo e o resto limita-se a obedecer-lhe.
Ressalvo aqui que a história é verdadeira não sabendo eu datá-la. Aconteceu no tempo em que a Adega trabalhava em "full time". Pode eventualmente haver pormenores que eu desconheço em absoluto. Foi-me contada pelo meu irmão Luís que era o naquele tempo, Enfermeiro de Serviço.
E por hoje despeço-me da Adega Cooperativa de Bragança e do Vale de Álvaro dos meus anos de menino e moço.
Bragança 22/04/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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