(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Aproveitei para reler o pequeno conto de Natal, que um dia, me havia sido oferecido em Londres, por pessoa amiga e que na capa ostentava o título: Novos Contos da Montanha.
Os vários contos que antecipavam o titulado como Natal e que desde esse dia se tornou no conto de Torga de que mais gosto, li-os com prazer. Mas o Natal do Garrinchas foi algo que apreciei e que me fez meditar na relação dos simples com uma realidade que imaginam real e onde os diálogos com a divindade são possíveis porque não há dúvida da sua possibilidade.
A vida ensinou-me a conhecer os homens e quando pequeno, conheci o relato de um ato de desespero que foi recorrente durante um certo período e que me fez ver o que a crença e a religião podem fazer nos homens que desesperados, passam além dos limites aceitáveis aos usos e costumes, mas que a honra e verticalidade podem limpar dando contas a Deus e unicamente a Ele.
Um homem sem trabalho que tinha mulher e filhos e não tinha dinheiro algum, resolveu pedir emprestado, ao Divino algum que bastasse para poder matar a fome aos filhos e à família.
A capela onde se venera a imagem do Divino Senhor da Piedade, está implantada no monte de S. Bartolomeu logo acima do Jardim Dr. António José d' Almeida e foi ali que se desenrolou a história que marcou a vida deste homem honesto que correu risco de ser considerado um patife mas que com a ajuda do Senhor, assim ele o cria, resolveu a sua vida e ficou eternamente grato à divindade que dele se compadeceu e a qual ele assumiu como concordante já que afirmava convicto que terminado que foi o ato de pedir o auxílio o Senhor o olhou e sorriu para ele como pai sorri a filho querido! Apenas ele e o Divino sabiam de tal contrato. Durante cinco semanas ele entrou na capelinha e retirou do pêto uma certa quantia de dinheiro, sempre a mesma quantia que lhe serviu para que os seus filhos não passassem fome. À sexta semana conseguiu trabalho e ele deixou de retirar o numerário do pêto das esmolas e logo que lhe foi entregue o primeiro salário, apressou-se a separar a quantia igual aquela que era a fração correspondente ao primeiro quinto da dívida que o homem contraíra com o Divino Senhor da Piedade.
Após a primeira fração ter sido liquidada seguiram-se as outras quatro pendentes e que foram liquidadas com a mesma prontidão e cumprimento de prazos. No último dia após haver feito o pagamento, dirigiu-se humildemente à imagem do Divino e disse-lhe: -Acabei de liquidar a minha dívida para com a fazenda que tens aqui neste local e que está voltada a Norte, sobranceira à cidade de Bragança e ao Rio Fervença que corre na base deste monte e torna o local agradável aos olhos das gentes e outras criaturas.
-Estou-te verdadeiramente agradecido por este empréstimo, mas mais ainda por me haveres dado um trabalho onde eu posso labutar ganhando o meu salário, podendo assim cumprir com as minhas obrigações e ter a dignidade que Tu gostas de ver nos homens. Também te agradeço por não teres permitido que alguém se apercebesse do meu ato de trespasse o que seria tomado como ação de ladroagem o que faria de mim um homem sem honra a quem não seria permitido levantar o rosto e o olhar para Te poder falar de frente. Peço-te hoje de novo que me dirijas o teu sorriso para eu ficar seguro que o meu contrato, Contigo, está liquidado e que me terás em bom conceito fazendo que eu tenha sempre ocupação para poder criar os meus filhos na Tua Lei e eu Te prestarei o tributo que me for ordenado pela tua justiça e magnanimidade.
E o Senhor olhou-o no rosto e pareceu-lhe vê-Lo sorrir.
Sereno saiu da capela fazendo a genuflexão com que se honra a Deus nos templos e manteve o seu segredo, que ele sabia, só ser conhecido de Deus que o permitira e ele próprio que um dia de Verbenas de Verão quase no fim do seu tempo de passagem pela terra me pediu para o acompanhar na subida que era íngreme desde o degrau que dava início ao Caminho do Senhor da Piedade no outro lado do rio de onde se descia para as Fontaínhas que são ainda um ponto de referência na minha lembrança desse tempo e iniciamos a subida até à branca capelinha onde se despediu depositando toda a sua Fé e agradecimento, pois que se havia consumido o tempo e cumprida a sua passagem o era também de revelar o segredo a alguém que agradecesse ao Senhor por ele após o seu passamento.
Continuo nos dias que me são dados viver a recordar o rosto e a expressão do único homem que acreditava haver falado com Aquele que o salvou num tempo de aflição e de descrença. Os desígnios do Senhor são insondáveis.
Que linda é a Capelinha do Divino Senhor da Piedade que eu amo desde a minha idade de rapaz, andarilho de todos os lugares que tendo nascido na Caleja do Forte sempre amou os sítios todos desta terra que foi onde achei nos dias da minha infância as lições mais insólitas, mas proveitosas e de profundo significado, para que eu fosse capaz de amar como amo o meu povo, que até me deu alguém como amigo que com as lágrimas nos olhos e o coração nas mãos me confiou algo de transcendente que eu interpreto como uma revelação dirigida aos humildes.
P.S.: O Garrinchas do conto de Torga trouxe a Virgem e o Menino para que o acompanhassem na sua Ceia de Natal fazendo ele próprio de S. José. O meu amigo falou com o Homem crucificado que perdoara ao Bom Ladrão e lhe prometera estar com ele no céu quando findasse o dia e não o puniu a ele que Lhe assaltou o pêto para dar de comer aos filhos. E a vida continua já que a terra continua a girar e os homens às vezes encontram Deus.
"Sapete perché Il mondo vá? Perché intorno al Mondo gira l' amore (Gigliola Cinquetti).
Bragança 22 de Novembro de 2019
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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