quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Lendas mouras do monte de S. Leonardo © António Cabral

A ponta de rochedos que é o morro de S. Leonardo, em Galafura, debruçado sobre o grande vale duriense, presta-se a que ali florissem lendas de mouras encantadas, cerzidas umas nas outras e afins das que pululam por toda a região. O que as distingue é constituírem um conjunto harmonioso e pitoresco, ligado ao efeito de surpresa num fundo maravilhoso onde se fazem eco os anseios da vida, duma outra vida como ela é sonhada. Aida Coimbra fez uma recolha em livrinho que me ofereceu há já uns quarenta anos e foi impresso anonimamente e sem data na tipografia Artística de Vila Real. O eixo central é o de uma gruta, subjacente à capela de S. Leonardo e vigiada por temíveis dragões, que vai ter a uma caverna, “palácio fantástico, todo forrado a ouro em chapa, com um tronco todo cravejado a pedras preciosas, onde se encontra adormecida a linda e graciosa D. Mirra, menina encantada por seu Pai, um dos mais ricos mouros que estiveram em Portugal e talvez na Península” (texto 5). Os relatos, todos eles muito breves, são dez, seguidos de uma historinha centrada na lenda de D. Mirra, destacada assim como alvo principal das atenções. O texto 6 suscitou especialmente o meu interesse por me lembrar um episódio de outra moura encantada, a do Vale de Maria, em Castedo do Douro, que me remete à infância. Ora a lenda de S. Leonardo é semelhante. Ei-la: “Uma bela noite, certo homem ia para um dos armazéns que antigamente existiam para os lados de S. Leonardo. Ao dar a meia-noite, viu, estendida ao luar, uma manta coberta de figos como se estivessem a secar. Naturalmente apanhou uma mão de figos e meteu-os ao bolso. No armazém, para acompanhar um copo, tirou os figos e saíram-lhe umas tantas moedas em ouro; e ouviu uma voz: “A manta de figos eram moedas em ouro que D. Mirra te destinava”. Voltou à procura da manta, mas nunca mais a encontrou”. Ora toma, que é para a gente perceber melhor que não é ao luar que os figos secam. As historinhas do morro apresentam matizes bem curiosas e complementares, como:

“Um rei mouro encantou a filha com a seguinte fórmula: “Abre-te, fraga, aqui fica a minha filha até ao dia em que semearem linho sobre esta rocha, fizerem com ele uma toalha e sobre ela comerem um jantar”. Um pastor ouviu o rei e pôs terra na fraga, acabando por cultivar o linho e confeccionar uma toalha que lhe serviu para um jantar. A menina todavia continuou encantada, por ele não empregar bem a frase mágica. Ora toma que é para de futuro prestares melhor atenção ao que ouves. Certa mulher encontrou uma menina que com atados de giesta embaraçava a passagem dos viajantes pelo caminho. Que andas a fazer? – perguntou-lhe. E a menina: para me desencantares tens de ir desatando as giestas que aí vês. Mas a mulher não conseguiu porque a menina era mais lépida que ela no seu afã. Ora toma, que é para aprenderes a caminhar. Um aventureiro, sabe-se lá se apaixonado pela miragem da D. Mirra, foi tomar conselho aos mouros para desencantar a princesa e abornalar-se com os seus tesouros. Basta levares um pão de quatro cabeças e ofereces-lho, dizendo que lhe apresentas o seu desencante. O aventureiro pôs-se em campo. Como a caminhada fosse extenuante, manducou uma cabeça da broa. Nada feito. D. Mirra desiludiu-o: “Como poderei caminhar num ginete de três pernas?” E continua encantada. Ora toma: um homem não deve ser lambisqueiro. No lugar das Lamas havia uma grande e estranha pedra que atraiu a atenção dum passante. Este consultou os sábios da moirama que o informaram do condão que a pedra possuía. Bastava, dizer-lhe: “Arco diabo vai para a tua terra”. E o desavisado, que acreditava em tudo o que lhe diziam, foi-se à pedra e repetiu o que ouvira. Caramba!, o calhau faiscou, voou e desapareceu. Se dissesse “Arco diabo vai para minha casa”, o calhau iria mesmo e, como era forrado a ouro, o homem ficaria rico. Ora toma: quem vê caras não vê corações.

Há quem diga que afinal os dragões que guardam a entrada da gruta são “dois rochedos que se aproximam como duas queixadas e trituram os ossos de quem lá for espreitar”. Põe-te a pau: as coisas que se assemelham são uma e a mesma coisa, como se vê na poesia. Ou tu não gostas de poesia? Põe-te a pau. Um valentaças de Galafura meteu no bestunto que havia de desencantar D. Mirra. Consoante um sonho, teria de, à meia-noite, esperar numa encruzilhada um cavalo branco que o conduziria ao destino. Meu dito, meu feito. O cavalo branco, porém, só tinha três pernas e o nosso homem amoleceu. “Vinhas tão animado e tinhas tanta coragem e tens medo?” Ora toma: santos da porta não fazem milagres. Para não dizer, meu cagarolas: quem tem cu tem medo. A menina que andava à lenha “viu uma cobra enorme com uma trança de cabelo que a cobria”. Ia fugir quando D. Mirra lhe disse que não tivesse medo. Fosse ter com a mãe e pedisse-lhe um bolo dentre o pão que estava a cozer e lho levasse, tendo no entanto de guardar segredo. Mirra gostava não apenas de jovens audazes, mas também de crianças. Ante a insistência da mãe, a menina acabou por dizer o que se passava, estragando tudo. Quando chegou com o bolinho, ouviu uma voz que a repreendia: “O que tu precisavas era que eu te furasse a língua com uma agulha”. Se não fosses bisbilhoteira, “conseguirias desencantar-me”. Aprende, cachopa: de futuro tem tento na língua. Pela boca morre o peixe. O pretendente de D. Mirra e sua fabulosa fortuna terá de, à meia-noite em ponto, nem vírgula a mais nem a menos vencer os ferozes dragões que impedem a entrada na gruta e deixar-se beijar pela princesa “metamorfoseada em descomunal cobra”. Porra! Ya te las entiendo, S. Leonardo.

António Cabral António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa. Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra. Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, pelos Xícara. No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro. Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação. Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990). António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

in:antoniocabral.com.pt

Sem comentários:

Enviar um comentário