“Percorrendo as civilizações antigas, no 3° milénio antes de Cristo, podemos acompanhar a evolução da Europa Mediterrânica através da trilogia da sua alimentação básica: trigo, azeite e vinho.
O vinho era, de facto, uma bebida fortificante, alimentícia, cujo trato e cultivo mereceu ao homem mediterrânico particular interesse e carinho, aliás, a exemplo do que se verificara nas civilizações da Mesopotâmia e do Médio Oriente.
Quem, como a Bíblia, soube transmitir a mensagem da importância do vinho para a vida do homem?
Não podemos deixar de trazer aqui à colação a quele emblemático texto do livro do Génese (7, 18-27) onde, em aparente anedota etiológica, se faz a defesa da crença do monoteísmo javeísta contra a paganizante divinização das forças da natureza e se tenta desmitologizar a origem do vinho atribuindo-a à inventiva e trabalho do homem.
É nesse sentido que a Bíblia projeta para a Proto-História da Humanidade, para o reinício dos tempos pós-diluvianos a história da bebedeira de Noé ou, como se diria hoje, para o começo do Neolítico, quando o homem deixou de ser recolector para se tornar sedentário, cultivando as terras.
O patriarca Noé, salvo por Deus do castigo do Dilúvio, terá empreendido para a nova humanidade a tarefa da plantação da vinha.
Na alegria da colheita, terá experimentado, pela primeira vez, os efeitos inebriantes deste delicioso néctar.
Apesar da narrativa etiológica do Génese, o Povo de Israel não deixou de apreciar o vinho e, mesmo reconhecendo os malefícios no excesso do seu consumo, valorizou o vinho em múltiplas dimensões, relacionado com a vida, a alimentação, a alegria, a felicidade, o prazer, tomado como sinal religioso da Aliança de Deus com o Seu povo e símbolo da alegria do banquete escatológico no Reino de Deus.
Para o homem bíblico, a idílica expressão «habitar debaixo da vinha» (Mq. 4,4; Zc. 3,10; I Re. 5,5; I Mcb. 14,12) com uma «mulher fecunda» (Sl. 127,3) era símbolo premonitório de felicidade e de paz!
O cristianismo não se afastou desta visão quase sagrada do vinho e Jesus elevou-o a elemento sacramental para que o sacrifício do Seu sangue se perpetuasse em rito de eterno memorial: «Bebei todos, porque isto é o meu sangue, o sangue da Nova Aliança» (Mt. 26,27-28).
Mas a Antiguidade também descobriu as qualidades profiláticas e medicinais do vinho, a ponto de S. Paulo recomendar ao seu discípulo Timóteo a conveniência dum moderado copo de vinho «por causa do estômago e das frequentes fraquezas» (1Tm. 5,23).
Não é, por isso, de admirar que algumas religiões atribuíssem aos deuses a sua origem, sobretudo no que toca ao vinho que sustenta, cura e alegra o homem.
Assim, para os gregos, Dionísio era o deus do vinho e, para os romanos, lá estava o deus Baco, prazenteiro e folgazão, inebriado com os etílicos aromas e deliciosos sabores do vinho, convidando os mortais para uma experiência gustativa.
Em Roma, a aproximação do culto de Baco aos mistérios de Dionísio levou a excessos de licenciosidade e subversão, degenerando nas chamadas orgias de fraternidade e amor, até que, por razões, morais, religiosas e políticas, a ponto de um senato-consulto do ano 186 a.C. proibiu as festas Bacanais (Tito Lívio – Ab Urbe condita XXXIX, 8,3-19,7).
Desde então, o culto de Baco ficou conotado com erotismo e subversão moral e social, o que, naturalmente, veio adulterar a imagem e o culto inicial deste deus do panteão romano, mas sem conseguir diminuir o apreço que os romanos tinham pelo vinho.
Os romanos conheciam um verdadeiro ciclo do vinho com as festas respetivas.
Em meados de Agosto, a 19, por altura das vindimas, celebravam as VINALIA RUSTICA, associando o culto de Júpiter, Pai dos deuses e fonte de todo o bem, a Vénus, deusa do amor e da alegria.
A 11 de Outubro festejavam as MEDITRINALIA, palavra derivada de medeor = curar, quando se provava o vinho novo e se armazenava em grande vasilhas chamadas «dolia» e ânforas.
Depois, a 23 de Abril, celebravam as VINALIA PRIORA, festas das primícias do vinho em honra de Júpiter.
Foram os romanos, sem dúvida, quem mais desenvolveu o cultivo e a técnica de fabricação e conservação do vinho.
Ninguém melhor do que eles saboreou o vinho no que ele tem de prazer e de regalo; ninguém como eles explorou e estudou o carácter medicinal e curativo do vinho.”
Fonte: Geraldo J. A. Coelho Dias, in “As confrarias báquicas: sua natureza e função associativa” (“Douro – estudos e documentos” – nº 6 – Outono 1998) – texto editado
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