Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Um dia Ismael vibrou de alegria quando a Mãe lhe deu um pião que comprara na feira dos vinte e três. Não era um pião esbelto, antes pelo contrário; era um pião bojudo, largo e pouco alto, aquilo a que os miúdos chamavam “ cebola”. Mesmo assim Ismael ficou radiante. Fez de imediato uma baraça e correu para o cimo da Lameira, para o largo atrás da capela do Senhor dos Aflitos, onde andavam outras crianças e jovens a jogar ao pião. O que fosse ganhando todas as etapas, dava sete “secos” no pião perdedor. Havia já quem lhe tivesse substituído o ferrão original por um prego bem afiado. Os piões perdedores eram metidos numa frincha duma parede e o vencedor, dava-lhes os “ secos “ previamente combinados, tentando destruí-los o mais possível.
Ismael chegou exuberante na sua inocência pura e infantil e deixaram-no entrar no jogo. Jogou o pião para dentro do círculo marcado no chão e, enquanto girava, ficou à mercê dos adversários. Havia no grupo o Zé Manel, que já não era criança e tinha a aura de campeão e era temido por todos. Com um sorriso de orelha a orelha, enrolou bem apertada à volta do pião, a baraça até meio. Com a outra extremidade da baraça deu duas voltas no indicador e com o polegar e o médio à volta do corpo e o indicador no “cornitcho” do pião, levantou o braço acima da cabeça, fez pontaria com o seu , munido de um ferrão de prego de caibrar, afiado no esmeril da forja do Ti Meireles , e...traz, acertou mesmo no centro do pião de Ismael, partindo-o em duas partes. A madeira de pinho verde foi manteiga para aquele ferrão mortífero. O resultado foi risada geral e todos bateram palmas, numa caçoada que feriu Ismael como abrolhos, excepto o Domingos, o seu melhor amigo. Só Domingos não sorria nem batia palmas. Olhava para Ismael com olhos de compaixão e de pena. Ismael ficou destroçado e triste, mas não chorou. Sabia ser duro e implacável como o mais duro transmontano – mas também sabia ser dócil e fiel como o mais puro transmontano. Aquela criança tinha a sílica a correr-lhe nas veias e não vergava à primeira saraivada do vento galego. Pegou carinhosamente nos dois pedaços e foi desolado para casa com o coração também partido, debaixo da caçoada de todos. Aí chorou convulsivamente no colo macio da Mãe, mostrando-lhe o pião entre as mãos trémulas. A Mãe tentou acalmá-lo, prometendo que lhe compraria outro. Quase de seguida apareceu o Domingos com os olhos tristes, solidários e dolorosos. Olharam-se os dois e o olhar daquelas duas crianças encerrava o que de melhor há na humanidade: compreensão, solidariedade incondicional e perdão. Ismael veio sentar-se na rua, numa pedra comprida que havia junto à parede, onde a Mãe e as vizinhas, nas tardes de sol de Inverno e da Primavera, costuravam e catavam mutuamente os piolhos e as lêndeas umas às outras. Domingos veio sentar-se a seu lado em silêncio. Descia sobre eles a transcendente paz dos crepúsculos rurais, profundamente melancólicos. Aquele canelho era agora iluminado pela luz do sol poente.
- Se quiseres, posso dar-t´um, porque tanho dois.
- Deixa ´star. A nha Mãe dixo que me merca oitro no sóto do papagaio.
E ali, abandonadas ao seu próprio destino, numa espessa solidão, aquelas duas inocentes crianças, em silêncio, praticavam o verdadeiro valor da amizade, do apego e do afecto, fiéis à crueza das fragas, não havendo espaço para o fingimento. Por mais chocante que possa parecer, o sentimento mais bonito entre duas pessoas é o da amizade e não o do amor. O amor é efémero, egoísta e temporal; já a amizade é incondicional e prevalece para além de todos os interesses momentâneos e calculistas. Aquelas duas crianças estavam unidas na dor, na humilhação e no vexame pelos laços da verdadeira amizade, da ternura e do altruísmo, vindos dos confins do coração puro e totalmente disponível, sem restrições. Apenas a presença de Domingos era suficiente para aplacar o coração e o feitio selvagem, duro, indomável e intrincado de Ismael, que herdara da Avó materna. A génese da humanidade estava consubstanciada no elo de aço da amizade que unia aqueles dois amigos. Era uma amizade sólida, resistente e fiel. Quando a escola os restituía à liberdade das ruas, dos campos e do sonho, reuniam-se todos no largo da Lameira, atrás da Capela do Nosso Senhor dos Aflitos, ou no fundo do lugar. Era um grupo de uma dúzia de garotos ligados pelo espírito da alforria. Quando as folhas dos conchilros estavam secas, esmagavam-nas e fumavam-nas enroladas a uma folha de jornal ou de costaneira, que já servira para embrulhar as sardinhas ou os chicharros e assim se julgavam adultos, nos seus pensares. Corriam livres como as nuvens no céu. Entretinham-se e divertiam-se deitados nas fragas quentes da Pioca do Ribeiro dos Moinhos, ao sol, a fazer “ gaiolas “ e a competir quem “ scupia” mais longe. Ainda estavam na idade em que o corpo produzia apenas “ aguadilha “.
Dominguinhos tinha um problema de adaptação à escola: não gostava nem de números e nem de letras. Era aquilo a que se poderia chamar " guitcho c´má biqueira dum sóco ", mas tinha um um coração do tamanho do mundo. Quando saía da escola ia logo para casa do Ismael fazer os deveres, ajudados pela Guidinha. “ Só bais pró retouço despois d os deberes feitos” – era a regra que Deolinda ao Ismael. Mas Dominguinhos apenas gostava do campo, de andar livremente pelas serras, pelos vales, pelas matas, pelos ribeiros e pelo rio, como a cigarra em pleno verão. O seu maior prazer era andar com o Fernando Patoleia - pastor do avô - a guardar as ovelhas, a mudar as cancelas do bardo e ordenhá-las, como um adulto. Ninguém como ele conseguia dirigir um rebanho de cento e vinte ovelhas para a corriça ou para o bardo. Na época do calor adorava acarrar com elas à sombra das oliveiras, dos olmos ou dos freixos, à beira do rio. Dormia sobre o chão, debaixo de uma olveira, de chapéu na cara, para impedir de ser picado pelas moscas, moscardos e varejeiras. A cada passo dava uma sapatada em si próprio e raramente acertava no alvo. Nessa altura praguejava impropérios contra a Mãe-Natureza. Era um autêntico condutor de rebanhos. Ao seu assobio ou à sua voz, as ovelhas obedeciam religiosamente. Mesmo que houvesse um campo de centeio, de trigo ou de cevada a crescer num tapado sem paredes, com a autoridade imposta pelo Dominguinhos, nenhuma se atrevia a desobedecer. Já o Avô e o Pai do Patoleia tinham sido pastores do Bisavô e do Avô. Era uma apego de família, transmitida com paixão de geração em geração. Patoleia costumava ter grandes conversas com Dominguinhos e dizia-lhe com a voz embargada: “ O meu Abô, cando andaba nas serras co gado, só tinha o caldeiro pra fazer as sopas pra ele e prós cães. Inté m´ensinou uma cantiguinha já munto antiga, cos pastores antigamente cantabam: ” Indo ala serra arriba, repicando meu caldeiro e remendando mi samarra...”. Contava-lhe histórias antigas de lobos, de fantasmas, de lutas contra bruxas e lobisomens que faziam o fascínio de Dominguinhos.
Fernando Patoleia, tinha quase a mesma idade do senhor Figueiredo. Era viúvo e apenas tinhas dois dentes em cima e um em baixo. A mulher e o filho morreram da tísica, quase em simultâneo. Já era pastor da casa ainda de solteiro, desde os seus dezasseis anos. Quando ficou só no mundo, continuou a ser pastor e passou a ser irmão, tio e protegido da família, mas fez questão de continuar a viver no velho casebre, um pouco já fora da aldeia, em vez de se mudar para a casa dos patrões. Talvez lá se sentisse um pouco mais acompanhado, com as memórias da mulher e do filho.
Um dia em que foi com o rebanho para um olival perto da povoação e ficaria o dia todo nas imediações, o Domingos, na companhia do Ismael, foi-lhe levar o jantar para ele e para os cães, que eram dois : o mondego e a raposa, ambos corpulentos. A raposa tinha tido filhos e ficaram com um filhote, agora já com três meses, a quem o Dominguinhos lhe dera o nome de Hércules. O jantar eram sopas, pão centeio, uma tira de toucinho gordo cozido e uma chouriça crua com azeitonas. Não faltava a cabaça de litro de vinho tinto. Como Patoleia não tinha dentes, não conseguia trincar o toucinho: apenas o mastigava com as gengivas e ia engolindo-o. De tanto o engolir sem o trincar, o toucinho começou a acumular-se na garganta em fole e Patoleia começou a sufocar, a virar os olhos e a gemer: “ Hó, hó, hó “ ...Dominguinhos e Ismael brincavam com o Hércules, em correrias doidas quando ouviram os gemidos. Viram então o pastor deitado no chão, a estrebuchar com os olhos virados e vidrados, fixos no céu. Apenas se via o branco baço do cristalino. Dominguinhos começou a chorar e teve a destreza de puxar o pedaço do toucinho que lhe pendia da boca. Puxou, puxou e a carne gorda ia saindo , toda enrolada, parecendo um harmónio. Patoleia respirou finalmente e vomitou tudo. Abraçaram-se os dois a chorar e, logo a seguir, quando viu que o perigo já tinha passado, disse-lhe a sorrir : Catantchos, desta já me safei. Inda ´stibo cum pé no oitro lado” ! A partir daí, Patoleia chamava-o de “ Meu Anjinho da Guarda” e queria-lhe tanto, ou ainda mais, do que ao filho falecido.
Tal como Ismael, o seu maior prazer era nadar e mergulhar nas água límpidas e tranquilas do Sabor. Adoravam mergulhar até ao fundo do rio e beber a água fresquíssima do leito de areia fina. Quando estavam debaixo de água tudo era diferente e fantasmagórico: o som, a luminosidade, a cor dos peixes que lhes fugiam... Os raios do sol penetravam na água até determinada profundidade, balouçavam com a corrente em pequenas ondas e formavam pequenos e inúmeros arcos-íris. Era como um sonho aquele silêncio absoluto do fundo do rio, como se estivessem numa redoma, protegidos de todo o mal; apenas o marulhar suave da ondulação da água. Aquele desprendimento absoluto do corpo envolto no calor morno da água límpida e transparente, aliado ao alheamento de todas as preocupações, fazia com que se sentissem no Paraíso. O leito de areia fina, siltosa, com a sílica a brilhar, era um tapete almofadado e suave sobre o fundo rochoso de granito e xisto.
Num dia de sorte, Ismael levou para casa , espetados pelas guelras num pau de salgueiro, catorze peixes de tamanho médio, ideais para assar em lenha de vides. Como sabia que a Mãe o proibia de ir para o rio, argumentando o Ismael que sabia nadar, e a Mãe contra-argumentando : “ Pois é. O rio quer aqueles que sabem nadar, pois os que num sabem, certos ´stão “, normalmente Ismael manchava propositadamente as mãos, a cara e, às vezes até a roupa, com o sumo de amoras. Naquele dia em especial, achou que não seria preciso, pois aqueles peixinhos, que dariam um jantar para toda a família, seria um trunfo importante e um salvo conduto. Quando entrou em casa, sorrateiro, com os peixes escondidos atrás das costas, disse-lhe logo a Mãe, vendo-o corado e de cara lavadinha : “ Q´antas bezes te tanho dito que num quero que bás pró rio?! “ – “ Oh...olhe, olhe bem “ – disse o Ismael todo sorridente mostrando-lhe aquele arsenal de peixes. Deolinda pegou nos peixes e deu-lhe com eles na cara. Ismael não compreendeu e ficou frustrado e revoltado com aquela atitude da Mãe. Mais tarde, quando comiam os peixes de escabeche, os pais explicaram-lhe os motivos e tudo ficou esclarecido. Ismael continuou a ir para o rio sem a Mãe saber, mas nunca mais levou peixes para casa.
Os Avós e os Pais do Dominguinhos ficavam tristes e infelizes porque queriam fazer dele um Doutor ou alguém importante, pois tinham posses para isso. Principalmente os Avós ficavam desesperados porque o neto não correspondia aos seus anseios, aos seus sonhos e às suas ilusões.
Não devemos forçar as crianças a irem contra a sua própria e inalienável Natureza e muito menos amputar as suas qualidades naturais só para nosso reconforto. Antes pelo contrário, devemos dar-lhes a liberdade de expandirem e se afirmarem pelas suas qualidades natas e não pelas impostas. Quando assim acontecer seremos todos mais felizes, sem dúvida. Seremos uma sociedade mais real, mais natural, mais alegre, mais adaptada e menos frustrada, quando nos aceitarmos como verdadeiramente somos. O pior castigo que se pode aplicar a um ser humano é ir contra a sua Natureza ou ser forçado a isso. Que o diga o Tonho da Cruz, que o obrigavam na escola a escrever com a mão direita, sendo ele um canhoto puro. Por isso todos os regimes autoritários estão votados ao fracasso e à derrota mas, entretanto, já infectaram a sociedade com o seu vírus letal.
No fim do dia, daqueles dias em que as moscas e os moscardos torturam os animais no focinho e nas orelhas, quando caía com vagar a tarde sonolenta e tranquila sobre as casas pardas e as almas amolecidas da aldeia, chegou o Pai vindo do trabalho. Ismael correu para os braços do Pai, com o pião partido em dois e contou-lhe a tragédia que lhe tinha acontecido. “ Num t´apoquentes, meu filho. Bou – t´arranjar um mais duro do que todos os oitros “.
No dia seguinte levou para casa um pedaço de raiz de nogueira, a madeira mais rija que conhecia. Com a sua arte e com o seu canivete afiado na aguçadoura, em três dias esculpiu, como um verdadeiro artista, um pião esbelto, equilibrado e redondinho, com um ferrão de prego, bem afiado.
- Toma – disse ao filho. – Co este ninguém te ganha ou, pro menos, já num to ´scabacam. O segredo ´stá na maneira cmo apertas a baraça. A primeira bolta junto ó ferrão tem que ser bem apertada e despois, as oitras, tamãe tenem qu´ a baraça ´star sempre bem ´sticadinha, com força e nunca ficar uma bolta em cima da oitra. Òspois tães qu´alebantar bem o braço inté atrás da cabeça e dares um arreplão com toda a força prá frente. Assim ele roda mais.
Caetano era habilidoso de mãos e, principalmente, de coração.
No dia seguinte, orgulhoso e feliz, Ismael saiu a correr para o largo da Lameira para jogar com as outras crianças. Ainda não tinham esquecido a última humilhação e ficaram interiormente esperançados em mais uma caçoada. Embora o pião rodasse na perfeição, - “ inté zenia! “ - mais uma vez perdeu para o Zé Manel aliás, como quase todos perdiam, que não cabia de contente, perante a espectativa de todos os outros, que já se preparavam para mais um fartote de riso. Alguns até o aconselharam ironicamente, na crueldade própria das crianças: “ Ó `Smaiel! É milhor ires já mercar oitro ó sóto”. Zé Manel enfiou o pião do Ismael numa frincha da parede e bem se esforçava por aplicar toda a sua energia em cada golpe, mas nem uma pequena lasca lhe conseguia arrancar – apenas umas pequenas marcas. Quando ia dar o último “seco “ e com o apoio de todos, cerrou os dentes e empregou toda a sua força. Aplicou toda a energia de tal maneira exagerada que o ferrão acertou de raspão, o pião dele resvalou e bateu violentamente com a mão na pedra da parede, ficando a sangrar com abundância. Todos se riram e gozaram com o Zé Manel, aplaudindo e ovacionando Ismael, que não cabia em si de orgulho, tendo passado de subjugado a herói repentinamente. Aliás, como nascem quase todos os heróis na História. (Tão depressa se passa de herói a vilão como de vilão a déspota!). Dominguinhos vivia interiormente aquela vitória do seu amigo como sua. A vingança serve-se fria e esta estava superiormente servida. De salientar que o Zé Manel era o melhor não só a jogar ao pião, como também a jogar à bola; não precisava de ser o dono da bola para jogar. Todos o escolhiam para a sua equipa.
Ismael ficou eternamente grato ao Pai.
Ismael chegou exuberante na sua inocência pura e infantil e deixaram-no entrar no jogo. Jogou o pião para dentro do círculo marcado no chão e, enquanto girava, ficou à mercê dos adversários. Havia no grupo o Zé Manel, que já não era criança e tinha a aura de campeão e era temido por todos. Com um sorriso de orelha a orelha, enrolou bem apertada à volta do pião, a baraça até meio. Com a outra extremidade da baraça deu duas voltas no indicador e com o polegar e o médio à volta do corpo e o indicador no “cornitcho” do pião, levantou o braço acima da cabeça, fez pontaria com o seu , munido de um ferrão de prego de caibrar, afiado no esmeril da forja do Ti Meireles , e...traz, acertou mesmo no centro do pião de Ismael, partindo-o em duas partes. A madeira de pinho verde foi manteiga para aquele ferrão mortífero. O resultado foi risada geral e todos bateram palmas, numa caçoada que feriu Ismael como abrolhos, excepto o Domingos, o seu melhor amigo. Só Domingos não sorria nem batia palmas. Olhava para Ismael com olhos de compaixão e de pena. Ismael ficou destroçado e triste, mas não chorou. Sabia ser duro e implacável como o mais duro transmontano – mas também sabia ser dócil e fiel como o mais puro transmontano. Aquela criança tinha a sílica a correr-lhe nas veias e não vergava à primeira saraivada do vento galego. Pegou carinhosamente nos dois pedaços e foi desolado para casa com o coração também partido, debaixo da caçoada de todos. Aí chorou convulsivamente no colo macio da Mãe, mostrando-lhe o pião entre as mãos trémulas. A Mãe tentou acalmá-lo, prometendo que lhe compraria outro. Quase de seguida apareceu o Domingos com os olhos tristes, solidários e dolorosos. Olharam-se os dois e o olhar daquelas duas crianças encerrava o que de melhor há na humanidade: compreensão, solidariedade incondicional e perdão. Ismael veio sentar-se na rua, numa pedra comprida que havia junto à parede, onde a Mãe e as vizinhas, nas tardes de sol de Inverno e da Primavera, costuravam e catavam mutuamente os piolhos e as lêndeas umas às outras. Domingos veio sentar-se a seu lado em silêncio. Descia sobre eles a transcendente paz dos crepúsculos rurais, profundamente melancólicos. Aquele canelho era agora iluminado pela luz do sol poente.
- Se quiseres, posso dar-t´um, porque tanho dois.
- Deixa ´star. A nha Mãe dixo que me merca oitro no sóto do papagaio.
E ali, abandonadas ao seu próprio destino, numa espessa solidão, aquelas duas inocentes crianças, em silêncio, praticavam o verdadeiro valor da amizade, do apego e do afecto, fiéis à crueza das fragas, não havendo espaço para o fingimento. Por mais chocante que possa parecer, o sentimento mais bonito entre duas pessoas é o da amizade e não o do amor. O amor é efémero, egoísta e temporal; já a amizade é incondicional e prevalece para além de todos os interesses momentâneos e calculistas. Aquelas duas crianças estavam unidas na dor, na humilhação e no vexame pelos laços da verdadeira amizade, da ternura e do altruísmo, vindos dos confins do coração puro e totalmente disponível, sem restrições. Apenas a presença de Domingos era suficiente para aplacar o coração e o feitio selvagem, duro, indomável e intrincado de Ismael, que herdara da Avó materna. A génese da humanidade estava consubstanciada no elo de aço da amizade que unia aqueles dois amigos. Era uma amizade sólida, resistente e fiel. Quando a escola os restituía à liberdade das ruas, dos campos e do sonho, reuniam-se todos no largo da Lameira, atrás da Capela do Nosso Senhor dos Aflitos, ou no fundo do lugar. Era um grupo de uma dúzia de garotos ligados pelo espírito da alforria. Quando as folhas dos conchilros estavam secas, esmagavam-nas e fumavam-nas enroladas a uma folha de jornal ou de costaneira, que já servira para embrulhar as sardinhas ou os chicharros e assim se julgavam adultos, nos seus pensares. Corriam livres como as nuvens no céu. Entretinham-se e divertiam-se deitados nas fragas quentes da Pioca do Ribeiro dos Moinhos, ao sol, a fazer “ gaiolas “ e a competir quem “ scupia” mais longe. Ainda estavam na idade em que o corpo produzia apenas “ aguadilha “.
Dominguinhos tinha um problema de adaptação à escola: não gostava nem de números e nem de letras. Era aquilo a que se poderia chamar " guitcho c´má biqueira dum sóco ", mas tinha um um coração do tamanho do mundo. Quando saía da escola ia logo para casa do Ismael fazer os deveres, ajudados pela Guidinha. “ Só bais pró retouço despois d os deberes feitos” – era a regra que Deolinda ao Ismael. Mas Dominguinhos apenas gostava do campo, de andar livremente pelas serras, pelos vales, pelas matas, pelos ribeiros e pelo rio, como a cigarra em pleno verão. O seu maior prazer era andar com o Fernando Patoleia - pastor do avô - a guardar as ovelhas, a mudar as cancelas do bardo e ordenhá-las, como um adulto. Ninguém como ele conseguia dirigir um rebanho de cento e vinte ovelhas para a corriça ou para o bardo. Na época do calor adorava acarrar com elas à sombra das oliveiras, dos olmos ou dos freixos, à beira do rio. Dormia sobre o chão, debaixo de uma olveira, de chapéu na cara, para impedir de ser picado pelas moscas, moscardos e varejeiras. A cada passo dava uma sapatada em si próprio e raramente acertava no alvo. Nessa altura praguejava impropérios contra a Mãe-Natureza. Era um autêntico condutor de rebanhos. Ao seu assobio ou à sua voz, as ovelhas obedeciam religiosamente. Mesmo que houvesse um campo de centeio, de trigo ou de cevada a crescer num tapado sem paredes, com a autoridade imposta pelo Dominguinhos, nenhuma se atrevia a desobedecer. Já o Avô e o Pai do Patoleia tinham sido pastores do Bisavô e do Avô. Era uma apego de família, transmitida com paixão de geração em geração. Patoleia costumava ter grandes conversas com Dominguinhos e dizia-lhe com a voz embargada: “ O meu Abô, cando andaba nas serras co gado, só tinha o caldeiro pra fazer as sopas pra ele e prós cães. Inté m´ensinou uma cantiguinha já munto antiga, cos pastores antigamente cantabam: ” Indo ala serra arriba, repicando meu caldeiro e remendando mi samarra...”. Contava-lhe histórias antigas de lobos, de fantasmas, de lutas contra bruxas e lobisomens que faziam o fascínio de Dominguinhos.
Fernando Patoleia, tinha quase a mesma idade do senhor Figueiredo. Era viúvo e apenas tinhas dois dentes em cima e um em baixo. A mulher e o filho morreram da tísica, quase em simultâneo. Já era pastor da casa ainda de solteiro, desde os seus dezasseis anos. Quando ficou só no mundo, continuou a ser pastor e passou a ser irmão, tio e protegido da família, mas fez questão de continuar a viver no velho casebre, um pouco já fora da aldeia, em vez de se mudar para a casa dos patrões. Talvez lá se sentisse um pouco mais acompanhado, com as memórias da mulher e do filho.
Um dia em que foi com o rebanho para um olival perto da povoação e ficaria o dia todo nas imediações, o Domingos, na companhia do Ismael, foi-lhe levar o jantar para ele e para os cães, que eram dois : o mondego e a raposa, ambos corpulentos. A raposa tinha tido filhos e ficaram com um filhote, agora já com três meses, a quem o Dominguinhos lhe dera o nome de Hércules. O jantar eram sopas, pão centeio, uma tira de toucinho gordo cozido e uma chouriça crua com azeitonas. Não faltava a cabaça de litro de vinho tinto. Como Patoleia não tinha dentes, não conseguia trincar o toucinho: apenas o mastigava com as gengivas e ia engolindo-o. De tanto o engolir sem o trincar, o toucinho começou a acumular-se na garganta em fole e Patoleia começou a sufocar, a virar os olhos e a gemer: “ Hó, hó, hó “ ...Dominguinhos e Ismael brincavam com o Hércules, em correrias doidas quando ouviram os gemidos. Viram então o pastor deitado no chão, a estrebuchar com os olhos virados e vidrados, fixos no céu. Apenas se via o branco baço do cristalino. Dominguinhos começou a chorar e teve a destreza de puxar o pedaço do toucinho que lhe pendia da boca. Puxou, puxou e a carne gorda ia saindo , toda enrolada, parecendo um harmónio. Patoleia respirou finalmente e vomitou tudo. Abraçaram-se os dois a chorar e, logo a seguir, quando viu que o perigo já tinha passado, disse-lhe a sorrir : Catantchos, desta já me safei. Inda ´stibo cum pé no oitro lado” ! A partir daí, Patoleia chamava-o de “ Meu Anjinho da Guarda” e queria-lhe tanto, ou ainda mais, do que ao filho falecido.
Tal como Ismael, o seu maior prazer era nadar e mergulhar nas água límpidas e tranquilas do Sabor. Adoravam mergulhar até ao fundo do rio e beber a água fresquíssima do leito de areia fina. Quando estavam debaixo de água tudo era diferente e fantasmagórico: o som, a luminosidade, a cor dos peixes que lhes fugiam... Os raios do sol penetravam na água até determinada profundidade, balouçavam com a corrente em pequenas ondas e formavam pequenos e inúmeros arcos-íris. Era como um sonho aquele silêncio absoluto do fundo do rio, como se estivessem numa redoma, protegidos de todo o mal; apenas o marulhar suave da ondulação da água. Aquele desprendimento absoluto do corpo envolto no calor morno da água límpida e transparente, aliado ao alheamento de todas as preocupações, fazia com que se sentissem no Paraíso. O leito de areia fina, siltosa, com a sílica a brilhar, era um tapete almofadado e suave sobre o fundo rochoso de granito e xisto.
Num dia de sorte, Ismael levou para casa , espetados pelas guelras num pau de salgueiro, catorze peixes de tamanho médio, ideais para assar em lenha de vides. Como sabia que a Mãe o proibia de ir para o rio, argumentando o Ismael que sabia nadar, e a Mãe contra-argumentando : “ Pois é. O rio quer aqueles que sabem nadar, pois os que num sabem, certos ´stão “, normalmente Ismael manchava propositadamente as mãos, a cara e, às vezes até a roupa, com o sumo de amoras. Naquele dia em especial, achou que não seria preciso, pois aqueles peixinhos, que dariam um jantar para toda a família, seria um trunfo importante e um salvo conduto. Quando entrou em casa, sorrateiro, com os peixes escondidos atrás das costas, disse-lhe logo a Mãe, vendo-o corado e de cara lavadinha : “ Q´antas bezes te tanho dito que num quero que bás pró rio?! “ – “ Oh...olhe, olhe bem “ – disse o Ismael todo sorridente mostrando-lhe aquele arsenal de peixes. Deolinda pegou nos peixes e deu-lhe com eles na cara. Ismael não compreendeu e ficou frustrado e revoltado com aquela atitude da Mãe. Mais tarde, quando comiam os peixes de escabeche, os pais explicaram-lhe os motivos e tudo ficou esclarecido. Ismael continuou a ir para o rio sem a Mãe saber, mas nunca mais levou peixes para casa.
Os Avós e os Pais do Dominguinhos ficavam tristes e infelizes porque queriam fazer dele um Doutor ou alguém importante, pois tinham posses para isso. Principalmente os Avós ficavam desesperados porque o neto não correspondia aos seus anseios, aos seus sonhos e às suas ilusões.
Não devemos forçar as crianças a irem contra a sua própria e inalienável Natureza e muito menos amputar as suas qualidades naturais só para nosso reconforto. Antes pelo contrário, devemos dar-lhes a liberdade de expandirem e se afirmarem pelas suas qualidades natas e não pelas impostas. Quando assim acontecer seremos todos mais felizes, sem dúvida. Seremos uma sociedade mais real, mais natural, mais alegre, mais adaptada e menos frustrada, quando nos aceitarmos como verdadeiramente somos. O pior castigo que se pode aplicar a um ser humano é ir contra a sua Natureza ou ser forçado a isso. Que o diga o Tonho da Cruz, que o obrigavam na escola a escrever com a mão direita, sendo ele um canhoto puro. Por isso todos os regimes autoritários estão votados ao fracasso e à derrota mas, entretanto, já infectaram a sociedade com o seu vírus letal.
No fim do dia, daqueles dias em que as moscas e os moscardos torturam os animais no focinho e nas orelhas, quando caía com vagar a tarde sonolenta e tranquila sobre as casas pardas e as almas amolecidas da aldeia, chegou o Pai vindo do trabalho. Ismael correu para os braços do Pai, com o pião partido em dois e contou-lhe a tragédia que lhe tinha acontecido. “ Num t´apoquentes, meu filho. Bou – t´arranjar um mais duro do que todos os oitros “.
No dia seguinte levou para casa um pedaço de raiz de nogueira, a madeira mais rija que conhecia. Com a sua arte e com o seu canivete afiado na aguçadoura, em três dias esculpiu, como um verdadeiro artista, um pião esbelto, equilibrado e redondinho, com um ferrão de prego, bem afiado.
- Toma – disse ao filho. – Co este ninguém te ganha ou, pro menos, já num to ´scabacam. O segredo ´stá na maneira cmo apertas a baraça. A primeira bolta junto ó ferrão tem que ser bem apertada e despois, as oitras, tamãe tenem qu´ a baraça ´star sempre bem ´sticadinha, com força e nunca ficar uma bolta em cima da oitra. Òspois tães qu´alebantar bem o braço inté atrás da cabeça e dares um arreplão com toda a força prá frente. Assim ele roda mais.
Caetano era habilidoso de mãos e, principalmente, de coração.
No dia seguinte, orgulhoso e feliz, Ismael saiu a correr para o largo da Lameira para jogar com as outras crianças. Ainda não tinham esquecido a última humilhação e ficaram interiormente esperançados em mais uma caçoada. Embora o pião rodasse na perfeição, - “ inté zenia! “ - mais uma vez perdeu para o Zé Manel aliás, como quase todos perdiam, que não cabia de contente, perante a espectativa de todos os outros, que já se preparavam para mais um fartote de riso. Alguns até o aconselharam ironicamente, na crueldade própria das crianças: “ Ó `Smaiel! É milhor ires já mercar oitro ó sóto”. Zé Manel enfiou o pião do Ismael numa frincha da parede e bem se esforçava por aplicar toda a sua energia em cada golpe, mas nem uma pequena lasca lhe conseguia arrancar – apenas umas pequenas marcas. Quando ia dar o último “seco “ e com o apoio de todos, cerrou os dentes e empregou toda a sua força. Aplicou toda a energia de tal maneira exagerada que o ferrão acertou de raspão, o pião dele resvalou e bateu violentamente com a mão na pedra da parede, ficando a sangrar com abundância. Todos se riram e gozaram com o Zé Manel, aplaudindo e ovacionando Ismael, que não cabia em si de orgulho, tendo passado de subjugado a herói repentinamente. Aliás, como nascem quase todos os heróis na História. (Tão depressa se passa de herói a vilão como de vilão a déspota!). Dominguinhos vivia interiormente aquela vitória do seu amigo como sua. A vingança serve-se fria e esta estava superiormente servida. De salientar que o Zé Manel era o melhor não só a jogar ao pião, como também a jogar à bola; não precisava de ser o dono da bola para jogar. Todos o escolhiam para a sua equipa.
Ismael ficou eternamente grato ao Pai.
Excerto adaptado do romance “Por entre a solidão das fragas”.
Fontes de Carvalho
Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
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