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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

UMA CARTA!

 Há trinta anos, não tinha endereço email, nem caixa do correio tampouco, nem computador; tinha uma morada onde podia receber cartas. Para escrever uma carta, pegava numa folha que comprara numa livraria, às vezes folhas de diferentes cores, com a minha parker oferecida num aniversário, e que carregava com tinta preta ou azul, mais tarde com as recargas pelikan que são estandardizadas. Seguidamente escrevia, querido tio, estimado amigo, queridos pais, estimado vizinho … Era preciso um certo tempo para escrever uma carta. Não era uma obra, era menos do que isso e era mais do que isso, porque colocava no papel algo de sentimental, num gesto ao mesmo tempo íntimo e universal, importante ou superficial, fosse ela curta ou longa.
Através duma mensagem, contava uma história. Por vezes apagava, por vezes reescrevia a fim de melhorar um pouco o estilo, tornar o pensamento mais preciso, formular de forma mais concisa. E também para evitar demasiadas rasuras, rasgava e recomeçava. Depois pegava num envelope, colocava a morada, colava um selo que havia tido o cuidado de comprar antes. E levava-a aos correios, a uma caixa de correio onde estava inscrita a última hora de levantamento, ou a um marco no exterior. 
A carta partia, chegava, mais ou menos depressa, para um país estrangeiro, podia levar algumas semanas. Ah, no seminário, em Cucujães, tínhamos todos um amigo virtual em Moçambique ou Angola com quem correspondíamos, o meu correspondente tinha uma caligrafia perfeita e invejável. Talvez por essa razão ainda tenha hoje uma pequena paixão pela caligrafia. Não sabíamos quando é que o destinatário a recebia. O processo completo (compra, escrita, envio) levava algumas horas. Nessas cartas, falava da minha vida, dava notícias, talvez banais, também as solicitava, falava dos meus sentimentos, era capaz de descrever as minhas atividades dum dia completo, quando os dias ainda eram longos, contar tudo o que fazia. Escrevia a amigos que tinham emigrado, a alguns que se mantinham na aldeia. Escrevia ao meu pai em França, à família ou timidamente a alguma rapariga que me despertava interesse. E lembro-me da alegria de receber uma carta, quando ela é assim bem pesada, inchada dentro do envelope e onde há leitura.
A excitação no momento de a abrir, sem a rasgar, e lê-la, e relê-la, dobrá-la, desdobrá-la, guardá-la, olhar para ela ou queimá-la. Algumas cartas dizem o amor. É um prazer lê-las e relê-las. Há este tipo de cartas que só se recebe uma vez na vida. Há-as que são sinceras, apaixonadas e sedutoras. Outras recheadas de repreensões e azedume. Outras ainda, anunciadoras de algo novo. Há-as visionárias e algo loucas. Há aquelas que nos derretem. Através duma carta, duas pessoas singularizam-se numa forma de introspeção, para manter uma relação, para se manter em contacto, para dizer que pensam uma na outra, que precisam uma da outra, e esta ausência materializa-se pela carta.
Quantas cartas eram lidas às esposas dos emigrantes, quantos casamentos aconteciam a partir dessa correspondência epistolar. Isto é muito forte. O papel estala, e ao abri-la, é como se se espreguiçasse, feliz pela felicidade de ser desdobrada. Alguns anos mais tarde, quando as relemos continuamos intrigados, surpreendidos e emocionados. O papel, espesso, resistiu, a escrita da caneta permanente com as letras bem ligadas e um pouco inclinadas mantem-se legível; denunciam o tempo que passa, a tinta que se apaga, as letras rodadas soltas e desvanecidas. Adivinham-se certas palavras que se vão tornando quase invisíveis e se tornarão pouco a pouco uma espécie de palimpsesto só meu. Acaricio o papel já algo amarelado, vejo-o de forma transparente, cheiro-o, respiro-o, e é toda uma vida que regressa; à imagem da madalena de Proust.
Uma carta é verdadeira, é autêntica, é real. Agora, a minha caneta dorme no seu estojo, e espera que lhe pegue e a acaricie novamente. Mas, para quê enviar cartas? Nem sei já muito bem o que contava nelas: passo bocados a responder aos emails. Não tenho muito tempo, nem vontade de escrever uma carta, não sei a quem escrever, não tenho força para ir buscar um selo, um envelope, nem ficar na fila nos correios. Até estes se fazem raros e distantes. Para quê sair à rua para enviar a minha missiva, quando posso escrever um email, e num pequeno clique enviar a mensagem para outro endereço email, instantaneamente?
Hoje, não vou escrever nenhuma carta, contudo, gostaria tanto de as receber.

Adriano Valadar

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