Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Não sou de pressas. Corro devagar. Lá chegarei.
E se não chegar, terei tido fôlego para respirar o que é belo.
A minha alma não tem urgência de rasgos aflitos. Sou feita de lembranças. Miudezas guardadas em cada emoção onde me afundo. Sorrio ao tempo que vem de longe para me cumprimentar. Apertamos as mãos, cordiais, e tratamo-nos por tu como velhos amigos.
Ontem contei-lhe do segredo escondido debaixo daquela pedra. Quem sabe, no futuro, uma criança pobre lhe dedique um pontapé e faça dela uma bola. As crianças só brincam a sonhar. Mas tu já te esqueceste da beleza desse suspiro, não é?
Entretanto, ainda bem que há homens grandes que sabem fazer girar o mundo como uma roda veloz. Dizem que é para acontecermos. Reconheço-os e abençoo-os. Se calhar, sem eles eu não existiria. Só gostava de não morrer infeliz como uma máquina de tanto fazer. É que, enquanto uns inventam sabedorias, outros conhecem as palavras pelo corpo e casam com elas para lhes dar um nome. Olha a sorte que temos por todos sermos presentes da vida!
Hoje, acordei-me tarde, porque sabe bem a preguiça quando é lenta. O sabor das coisas é mais visível quando os sentidos não estão cansados e o paladar tem outro timbre para provar o que haverá de ser saudade.
Quando abri a janela do quarto havia dois pássaros a cantar no quintal. Escutei-os, sozinhos, depois da névoa que amanheceu. Também eles gostam de ficar na cama à espera dos braços do sol. Pareciam namorar por cima do vento e dos homens, mas nenhum lhes prestava atenção. Porque os homens, e as mulheres também, vivem instantes importantes onde as grandezas inúteis são tudo o que os leva a um estranho lugar chamado nada. Acreditam que sabem da felicidade porque a conhecem só assim.
A menina, arrastada pela mão do pai, a caminho da escola, chorava os vazios que ele não compreendia. Não chores, minha pequena, é um tudo dor e um tudo passa. Amanhã serás mais bonita, sem as tuas tranças e o teu vestido bem posto e saudarás as recordações desse chão quente que os teus pés, agora, tocam.
O cão da Alice ladrou três vezes e o gato da D. Marta espirrou, arrepiado (já viste um gato espirrar?). É o que acontece sempre, quando o carteiro Luís aparece. Conhecem-lhe de cor os passos e acho que inventaram esta coincidência só para se avisarem um ao outro, nos cantos opostos onde moram.
A Alice sonha com o carteiro Luís quase todas as noites e há anos que arranja coragem nos olhos para o convidar a tomar um café com ela.
A D. Marta não sonha com ninguém. O marido era sargento. No trabalho comandava as tropas e, em casa, a mulher. Como não podia bater nos soldados, batia nela. Ela tornou-se a tela de um pintor sádico. Já ele, um dia, acordou morto. A D. Marta voltou a vestir-se de branco, guardou os sonhos numa gaveta velha sem memórias e fechou-se nas paredes do silêncio com o seu gato. Só a veem quando vai à missa, espaçadamente, e cumprimenta o padre com respeito e sem palavras.
O jardim da Dra. Aurora chegou-me da janela, entreaberta, à espera que a tarde descesse. Ela nunca está em casa mas as flores da cidade decidiram habitar todas ali. São luz e cheiro. Possivelmente algum jardineiro encantado (porque nunca o vi) lhes dê as mãos. Invisível aos olhares e sempre atento ao que torna os dias mais lindos.
Gosto de jardineiros. Falam com as plantas e não são tratados como loucos. Não há loucura por trás do exercício de uma função que se pratica com desvelo. Os loucos, como eu, falam apenas sozinhos e ouvem o que os outros não vislumbram. A loucura que não é normal, assusta.
Uma vez, roubei uma rosa negra ao jardim da Dra. Aurora e coloquei-a numa jarra. Ofereci-a, como se fosse uma prece de agradecimento, àqueles que já me partiram. Como a D. Marta, sou viúva. Afinal, a viuvez mais feliz, é ser ausente de todos os que não se amam. Será por isso que também gosto de me vestir de branco.
O velho relógio de pêndulo do Sr. Tomé, que está acomodado paredes meias com o meu quarto, fez soar nove badaladas. Desprendeu-se a noite. É hora de abraçar as sombras e agasalhar tudo o que puder no lado de dentro da voz. Aquilo que talvez possa vir a construir-se som infinito, como as letras dos poetas incógnitos que, quando morrem, se tornam deuses.
Quando cerrar o pensamento, vou querer sonhar com o carteiro Luís e as cartas de amor que a Alice nunca lhe escreveu. Dizem que o amor é o único ponto da alma que nunca foi final. E eu acredito.
E se não chegar, terei tido fôlego para respirar o que é belo.
A minha alma não tem urgência de rasgos aflitos. Sou feita de lembranças. Miudezas guardadas em cada emoção onde me afundo. Sorrio ao tempo que vem de longe para me cumprimentar. Apertamos as mãos, cordiais, e tratamo-nos por tu como velhos amigos.
Ontem contei-lhe do segredo escondido debaixo daquela pedra. Quem sabe, no futuro, uma criança pobre lhe dedique um pontapé e faça dela uma bola. As crianças só brincam a sonhar. Mas tu já te esqueceste da beleza desse suspiro, não é?
Entretanto, ainda bem que há homens grandes que sabem fazer girar o mundo como uma roda veloz. Dizem que é para acontecermos. Reconheço-os e abençoo-os. Se calhar, sem eles eu não existiria. Só gostava de não morrer infeliz como uma máquina de tanto fazer. É que, enquanto uns inventam sabedorias, outros conhecem as palavras pelo corpo e casam com elas para lhes dar um nome. Olha a sorte que temos por todos sermos presentes da vida!
Hoje, acordei-me tarde, porque sabe bem a preguiça quando é lenta. O sabor das coisas é mais visível quando os sentidos não estão cansados e o paladar tem outro timbre para provar o que haverá de ser saudade.
Quando abri a janela do quarto havia dois pássaros a cantar no quintal. Escutei-os, sozinhos, depois da névoa que amanheceu. Também eles gostam de ficar na cama à espera dos braços do sol. Pareciam namorar por cima do vento e dos homens, mas nenhum lhes prestava atenção. Porque os homens, e as mulheres também, vivem instantes importantes onde as grandezas inúteis são tudo o que os leva a um estranho lugar chamado nada. Acreditam que sabem da felicidade porque a conhecem só assim.
A menina, arrastada pela mão do pai, a caminho da escola, chorava os vazios que ele não compreendia. Não chores, minha pequena, é um tudo dor e um tudo passa. Amanhã serás mais bonita, sem as tuas tranças e o teu vestido bem posto e saudarás as recordações desse chão quente que os teus pés, agora, tocam.
O cão da Alice ladrou três vezes e o gato da D. Marta espirrou, arrepiado (já viste um gato espirrar?). É o que acontece sempre, quando o carteiro Luís aparece. Conhecem-lhe de cor os passos e acho que inventaram esta coincidência só para se avisarem um ao outro, nos cantos opostos onde moram.
A Alice sonha com o carteiro Luís quase todas as noites e há anos que arranja coragem nos olhos para o convidar a tomar um café com ela.
A D. Marta não sonha com ninguém. O marido era sargento. No trabalho comandava as tropas e, em casa, a mulher. Como não podia bater nos soldados, batia nela. Ela tornou-se a tela de um pintor sádico. Já ele, um dia, acordou morto. A D. Marta voltou a vestir-se de branco, guardou os sonhos numa gaveta velha sem memórias e fechou-se nas paredes do silêncio com o seu gato. Só a veem quando vai à missa, espaçadamente, e cumprimenta o padre com respeito e sem palavras.
O jardim da Dra. Aurora chegou-me da janela, entreaberta, à espera que a tarde descesse. Ela nunca está em casa mas as flores da cidade decidiram habitar todas ali. São luz e cheiro. Possivelmente algum jardineiro encantado (porque nunca o vi) lhes dê as mãos. Invisível aos olhares e sempre atento ao que torna os dias mais lindos.
Gosto de jardineiros. Falam com as plantas e não são tratados como loucos. Não há loucura por trás do exercício de uma função que se pratica com desvelo. Os loucos, como eu, falam apenas sozinhos e ouvem o que os outros não vislumbram. A loucura que não é normal, assusta.
Uma vez, roubei uma rosa negra ao jardim da Dra. Aurora e coloquei-a numa jarra. Ofereci-a, como se fosse uma prece de agradecimento, àqueles que já me partiram. Como a D. Marta, sou viúva. Afinal, a viuvez mais feliz, é ser ausente de todos os que não se amam. Será por isso que também gosto de me vestir de branco.
O velho relógio de pêndulo do Sr. Tomé, que está acomodado paredes meias com o meu quarto, fez soar nove badaladas. Desprendeu-se a noite. É hora de abraçar as sombras e agasalhar tudo o que puder no lado de dentro da voz. Aquilo que talvez possa vir a construir-se som infinito, como as letras dos poetas incógnitos que, quando morrem, se tornam deuses.
Quando cerrar o pensamento, vou querer sonhar com o carteiro Luís e as cartas de amor que a Alice nunca lhe escreveu. Dizem que o amor é o único ponto da alma que nunca foi final. E eu acredito.
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