A linguagem no seio da qual me fiz gente, já se sabe, tem diferenças substanciais em relação ao português padrão. Por isso, em momentos em que dou a palavra à gente do povo, usei uma grafia que procura reproduzir a sua pronúncia, servindo−me das letras do abecedário português. Isso pode trazer algumas dificuldades a quem não esteja calhado com essa pronúncia. Mas as alternativas não me entusiasmavam. Uma alternativa seria usar os símbolos de um qualquer alfabeto fonético internacional — há vários. Mas quantos dos Leitores estão preparados para descodificar esses símbolos? Outra alternativa seria desistir de mostrar o modo como o povo do Nordeste realiza foneticamente o seu linguajar. Mas não seria isso empobrecer as contas? Fiz a opção que fiz, fiado em que as dificuldades do Leitor se irão dissipando aos poucos até chegar a um ponto em que conseguirá fruir o sainete da pronúncia popular. Oxalá tenha feito a opção correcta.
Mas não abandono o Leitor à sua sorte. Na suposição de que o maior problema estará em alguns casos de homonímia, dou-lhe desde já a chave:
A forma ‘ou’ tanto vale a conjunção disjuntiva como o pronome pessoal ‘eu’ (exemplo: ‘Ou gosto munto de flores’).
A forma ‘num’ tanto vale a contracção de ‘em um’ como o advérbio de negação ‘não’ antes de verbo (exemplo: ‘Num sei onde estou.’).
A forma ‘sou’ tanto vale a forma do verbo ‘ser’ como o possessivo ‘seu’ (exemplo: ‘Cada mocho a sou souto.’). Por coerência, ‘mou’ vale por ‘meu’ e ‘tou’ por ‘teu’).
A forma ‘dou’, do verbo ‘dar’, tanto vale para a primeira pessoa do singular do presente do indicativo como para a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito (exemplo: ‘O Diabo dou [= deu] um estouro.’).
A forma ‘sim’ tanto vale o advérbio de afirmação como a preposição ‘sem’ (exemplo: ‘Stebe toda a manhã sim dar palabra.’).
Tenha-se ainda em atenção que o fonema ‘v’ é sistematicamente substituído por ‘b’ (exemplo: ‘Ou bem-no bejo bir’ por ‘Eu bem o vejo vir’).
Um glossário no final do livro dará também o seu contributo para a compreensão dos textos.
Outro aspecto que tem os seus melindres é que alguns termos usados nas contas são susceptíveis de ferir os ouvidos de certos Leitores mais sensíveis. Quer dizer, palavras malsoantes. Mas esses termos têm lugar cativo no falar do povo nordestino. Em nome de quê iria fingir que não? Confesso que ainda hesitei: uso, não uso esses termos? Mas o fantasma de Gil Vicente visitou-me para me encorajar. Fez-me ver que eliminá-los ou substituí-los por eufemismos era ferir de morte as contas. E reclamo para mim a mesma indulgência que todos têm para com Gil Vicente, que não se ensaiava nada para usar a linguagem forte e escatológica que os autos requeriam, ainda quando representados na presença de bispo ou rainha. Farei esta prevenção em momentos em que esses tais Leitores ainda estarão muito a tempo de devolver o livro à prateleira ou saltar umas quantas linhas ou parágrafos. Esteja o Leitor à vontade para o fazer. Acredite que não me zango.
(Continua.)
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