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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Manoel de Oliveira e Junqueiro, o Realizador e o Poeta

 O mais conceituado realizador português, e um dos mais premiados em todo o mundo, evoca o poeta de “Os Simples”, no âmbito de uma longa-metragem de documentário.


Estávamos em 2009, a um ano do centenário da implantação da República em Portugal, quase ainda no início da rodagem do que viria a ser a longa-metragem de documentário “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro”, realizada por quem assina estas linhas e produzida pela Escola das Artes da Universidade Católica do Porto.

O filme era mais do que parte integrante do Revisitar/Descobrir Guerra Junqueiro, projeto de maior amplitude, paulatinamente apoiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, CLEPUL, CITAR, RTP 2, Antena 1, Câmara Municipal de Freixo. Na verdade, “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro”, apresentado, com livro homónimo, em 15 de novembro de 2011, no auditório Ilídio Pinho, da Católica do Porto, foi a génese de todo o projeto .

Um documentário não é uma tese, mas há uma tese neste documentário. “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro” foi uma eloquente evocação e resgate da figura, obra e pensamento do autor da Pátria. Do número de pessoas e instituições envolvidas no filme dão conta os seus créditos finais. Desnecessário é sublinhar a reputação dos entrevistados, mais de três dezenas, entre os quais Eduardo Lourenço, Mário Soares, Nuno Júdice, Miguel Real, Maria Helena da Rocha Pereira, D. Manuel Clemente; além da participação especial de Eunice Munõz, Ruy de Carvalho, Pedro Abrunhosa e Manoel de Oliveira.

Visionando-se o filme, fácil é entrever o que representou descobrir, reunir e recuperar registos sonoros, fílmicos e fotográficos, desconhecidos ou dados como perdidos. Fácil será também adivinhar o muito que, das mais de 100 horas de filmagens, se deixou de fora. É talvez esse aspeto documental, aliado a uma não cedência a facilidades que eventuais manipulações podiam propiciar, o ponto que melhor consubstancia a satisfação da equipa que o realizou.

A entrevista que adiante se publica ocorreu, recordo, em 2009. Também em julho do ano seguinte Manoel de Oliveira, motu proprio, teve a generosidade de se juntar a nós na apresentação do livro “À Volta de Junqueiro: Vida, obra e Pensamento”, no Auditório Carvalho Guerra da Universidade Católica do Porto. O YouTube guarda registo integral dessa tarde extraordinária. Memória, vénia e gratidão ao realizador de “Palavra e Utopia”.

A publicação desta despretensiosa entrevista, diria conversa, além de despretensioso documento, tem o duplo sentido de assinalar a passagem dos 100 anos sobre a morte de Guerra Junqueiro (1850-1923) e configurar uma homenagem ao Poeta e ao Realizador.

Conhecido pelo seu íntimo diálogo com a literatura – haja em vista as adaptações de autores como João Rodrigues de Freitas (“Aniki-Bobó”, 1942), Camilo Castelo Branco (“Amor de Perdição”, 1979), Eça de Queirós (“Singularidades de uma Rapariga Loira”, 2009), Raul Brandão (“O Gebo e a Sombra”, 2012), José Régio (“Benilde ou A Virgem Mãe”, 1975), com destacado lugar para a obra de Agustina Bessa-Luís (entre outros: “Francisca”, 1981, “Vale Abraão”, 1993, “O Convento”, 1995, “O Princípio da Incerteza”, 2002, “Espelho Mágico”, 2005) –, Manoel de Oliveira nunca se debruçou sobre a obra de Guerra Junqueiro (1950-1923). Não admira, mesmo porque Junqueiro era um poeta, e nunca o cinema, no formato longa-metragem, encontrou na poesia particular fonte de inspiração. Mas tal não significa que o realizador ignorasse ou fosse indiferente ao poeta de Freixo de Espada à Cinta. Não por acaso, é com versos de Junqueiro, “Regresso ao Lar”, do livro “Os Simples”, musicados por Tomás Borba e interpretados por sua mulher, Maria Isabel de Oliveira, que abre “O Porto da minha infância” (2001):

“Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?… há trinta?... Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, deceções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...”

E aquele “Regresso ao Lar” continua, entrecortado pela memória falada de Manoel de Oliveira, com uma casa ofendida pelo tempo a encher o plano.

Portanto, o mais conceituado realizador português evoca Guerra Junqueiro, no âmbito de um documentário sobre o Poeta. De resto, Manoel de Oliveira, ainda em off, de câmara desligada, começa a recitação de O Melro…

Henrique Manuel Pereira: Como era “O Melro” de Guerra Junqueiro?

Manoel de Oliveira: O Melro? O Melro era luzidio… O meu pai tinha um camarote alugado no Teatro Sá da Bandeira e tinha outro camarote alugado no Teatro S. João. Nesse tempo havia ópera todos os anos e havia ópera para quem tinha assinatura e outro dia para quem não tivesse assinatura. Em geral, de dois em dois dias mudavam a ópera, que era no Teatro S. João. E as companhias lisboetas iam todos os anos ao Teatro Sá da Bandeira ou ao teatro antigo, o Teatro Rivoli, que é na rua do Bonjardim. E eu lembro-me de que havia um ator extraordinário que era, que era…

HMP.: Provavelmente o duplamente “grande” Chaby Pinheiro…

MO.: Exatamente! Ele era mesmo um homem grande e gordo, não é? E, às vezes, quando vinha representar ao Porto, ia à Brasileira, tomar um chá e não sei quê. E, bom, ele tinha um amigo, um amigo que era do Porto. E quando vinha ao Porto, andavam sempre os dois. O amigo tinha exatamente a altura dele, mas era magro. O Chaby era gordíssimo, o outro era magríssimo. E isso realçou aquele par estranho. E então, ouvi-o a recitar uma ou duas vezes O Melro do Guerra Junqueiro. E então, dizia assim (eu digo de memória): “O Melro era negro e luzidio, / repenicava finas ironias, / Mas o velho padre-cura / Não gostava daquelas cortesias.”

HMP.: Julgo que Chaby Pinheiro dizia também uma outra composição de Junqueiro: “O Fiel”.

MO.: Pois, misturava “O Melro” com o cão “Fiel”, é verdade, o cão que “não usava coleira nem pagava imposto”… E metia essa graça, sim. E na altura era muito aplaudido. Depois, como sabe, o Chaby morreu e o Vasco Santana (conheci-o, ainda era eu um miúdo, não é?) começou, por imitar o Chaby Pinheiro com essa mesma recitação. O Vasco apresentava-se de casaco, ele era gordo, mas era mais pequeno, era pequenino em relação ao Chaby que era muito grande. E no Sá da Bandeira, lá dizia: “O melro era negro, vibrante e luzidio, / Logo de manhã cedo / Repenicava finas ironias / Mas o velho padre cura/ Não gostava daquelas cortesias.” E o cão vadio “não usava coleira nem pagava imposto” e continuava por ali fora. E assim, se fez notar o Vasco repetindo e imitando o…

HMP.: … Chaby Pinheiro com os versos de Guerra Junqueiro.

MO.: Ele tinha uma outra coisa, mas já na ópera. E dessas óperas todas que eu vi, uma ficou-me na memória, não sei porquê, porque na minha memória já falha muita coisa, até nomes de familiares, às vezes passa o nome.

HMP.: Isso até a mim, senhor Manoel de Oliveira, e não tenho ainda metade da sua gloriosa idade…

MO.: Mas há outras coisas que ficam. E ficou-me, imagine, A Carmen: “Eu sou toureiro bandarilheiro, toureador, farpeador.” Eu até cantei isto num filme…

HMP.: Em “O Porto da Minha Infância”.

MO.: Pois, exatamente, e depois lá cantavam os cantores como deve ser. Eu nunca fui cantor, nunca tive esse jeito. Ao contrário de mim, a Maria Isabel, a minha mulher, tinha essa vocação de cantar e imitava uma série de atrizes e cantoras do cinema. Ficava-lhe no ouvido e exercitava-se inventando uma música qualquer e uma letra qualquer, e cantava à maneira dela.

HMP.: E desses exercícios constava muito provavelmente uma canção com letra de Guerra Junqueiro, o “Regresso ao Lar” de “Os Simples”…

A “Velha Ama”, não é?

MO.: Sim, é uma das evocações do poema. Mas é exatamente essa a canção.

E ela gostava muito dessa canção… da “Velha Ama”. E eu também. Por isso, pedi-lhe para ela cantar essa canção em off n’ “O Porto da Minha Infância”. É uma canção extremamente comovente, ela sentia-a profundamente, porque se lembrava da tia, porque se lembrava da mãe e porque tinha essa vocação natural para cantar. E depois cantou já uma vez, mas já com mais idade, e já mais perdida da letra, no “Cristóvão Colombo”.

“Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?… há trinta?... Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Isto é muito bonito!

HMP.: Que ideia guarda de Guerra Junqueiro?

MO.: Eu gosto muito da poesia dele, mas não sou, infelizmente, um conhecedor profundo. O tempo não chega para tudo, mas gosto muito de poesia, como gosto muito de música! Eu não percebo nada de música, mas gosto muito de ouvir música. E gosto de ouvir a Maria Isabel cantar.

Henrique Manuel Pereira
 (Universidade Católica do Porto, Escola das Artes)

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