Estávamos em 2009, a um ano do centenário da implantação da República em Portugal, quase ainda no início da rodagem do que viria a ser a longa-metragem de documentário “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro”, realizada por quem assina estas linhas e produzida pela Escola das Artes da Universidade Católica do Porto.
O filme era mais do que parte integrante do Revisitar/Descobrir Guerra Junqueiro, projeto de maior amplitude, paulatinamente apoiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, CLEPUL, CITAR, RTP 2, Antena 1, Câmara Municipal de Freixo. Na verdade, “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro”, apresentado, com livro homónimo, em 15 de novembro de 2011, no auditório Ilídio Pinho, da Católica do Porto, foi a génese de todo o projeto .
Um documentário não é uma tese, mas há uma tese neste documentário. “Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro” foi uma eloquente evocação e resgate da figura, obra e pensamento do autor da Pátria. Do número de pessoas e instituições envolvidas no filme dão conta os seus créditos finais. Desnecessário é sublinhar a reputação dos entrevistados, mais de três dezenas, entre os quais Eduardo Lourenço, Mário Soares, Nuno Júdice, Miguel Real, Maria Helena da Rocha Pereira, D. Manuel Clemente; além da participação especial de Eunice Munõz, Ruy de Carvalho, Pedro Abrunhosa e Manoel de Oliveira.
Visionando-se o filme, fácil é entrever o que representou descobrir, reunir e recuperar registos sonoros, fílmicos e fotográficos, desconhecidos ou dados como perdidos. Fácil será também adivinhar o muito que, das mais de 100 horas de filmagens, se deixou de fora. É talvez esse aspeto documental, aliado a uma não cedência a facilidades que eventuais manipulações podiam propiciar, o ponto que melhor consubstancia a satisfação da equipa que o realizou.
A entrevista que adiante se publica ocorreu, recordo, em 2009. Também em julho do ano seguinte Manoel de Oliveira, motu proprio, teve a generosidade de se juntar a nós na apresentação do livro “À Volta de Junqueiro: Vida, obra e Pensamento”, no Auditório Carvalho Guerra da Universidade Católica do Porto. O YouTube guarda registo integral dessa tarde extraordinária. Memória, vénia e gratidão ao realizador de “Palavra e Utopia”.
A publicação desta despretensiosa entrevista, diria conversa, além de despretensioso documento, tem o duplo sentido de assinalar a passagem dos 100 anos sobre a morte de Guerra Junqueiro (1850-1923) e configurar uma homenagem ao Poeta e ao Realizador.
Conhecido pelo seu íntimo diálogo com a literatura – haja em vista as adaptações de autores como João Rodrigues de Freitas (“Aniki-Bobó”, 1942), Camilo Castelo Branco (“Amor de Perdição”, 1979), Eça de Queirós (“Singularidades de uma Rapariga Loira”, 2009), Raul Brandão (“O Gebo e a Sombra”, 2012), José Régio (“Benilde ou A Virgem Mãe”, 1975), com destacado lugar para a obra de Agustina Bessa-Luís (entre outros: “Francisca”, 1981, “Vale Abraão”, 1993, “O Convento”, 1995, “O Princípio da Incerteza”, 2002, “Espelho Mágico”, 2005) –, Manoel de Oliveira nunca se debruçou sobre a obra de Guerra Junqueiro (1950-1923). Não admira, mesmo porque Junqueiro era um poeta, e nunca o cinema, no formato longa-metragem, encontrou na poesia particular fonte de inspiração. Mas tal não significa que o realizador ignorasse ou fosse indiferente ao poeta de Freixo de Espada à Cinta. Não por acaso, é com versos de Junqueiro, “Regresso ao Lar”, do livro “Os Simples”, musicados por Tomás Borba e interpretados por sua mulher, Maria Isabel de Oliveira, que abre “O Porto da minha infância” (2001):
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?… há trinta?... Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Só achei enganos, deceções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...”
E aquele “Regresso ao Lar” continua, entrecortado pela memória falada de Manoel de Oliveira, com uma casa ofendida pelo tempo a encher o plano.
Portanto, o mais conceituado realizador português evoca Guerra Junqueiro, no âmbito de um documentário sobre o Poeta. De resto, Manoel de Oliveira, ainda em off, de câmara desligada, começa a recitação de O Melro…
Henrique Manuel Pereira: Como era “O Melro” de Guerra Junqueiro?
Manoel de Oliveira: O Melro? O Melro era luzidio… O meu pai tinha um camarote alugado no Teatro Sá da Bandeira e tinha outro camarote alugado no Teatro S. João. Nesse tempo havia ópera todos os anos e havia ópera para quem tinha assinatura e outro dia para quem não tivesse assinatura. Em geral, de dois em dois dias mudavam a ópera, que era no Teatro S. João. E as companhias lisboetas iam todos os anos ao Teatro Sá da Bandeira ou ao teatro antigo, o Teatro Rivoli, que é na rua do Bonjardim. E eu lembro-me de que havia um ator extraordinário que era, que era…
HMP.: Provavelmente o duplamente “grande” Chaby Pinheiro…
MO.: Exatamente! Ele era mesmo um homem grande e gordo, não é? E, às vezes, quando vinha representar ao Porto, ia à Brasileira, tomar um chá e não sei quê. E, bom, ele tinha um amigo, um amigo que era do Porto. E quando vinha ao Porto, andavam sempre os dois. O amigo tinha exatamente a altura dele, mas era magro. O Chaby era gordíssimo, o outro era magríssimo. E isso realçou aquele par estranho. E então, ouvi-o a recitar uma ou duas vezes O Melro do Guerra Junqueiro. E então, dizia assim (eu digo de memória): “O Melro era negro e luzidio, / repenicava finas ironias, / Mas o velho padre-cura / Não gostava daquelas cortesias.”
HMP.: Julgo que Chaby Pinheiro dizia também uma outra composição de Junqueiro: “O Fiel”.
MO.: Pois, misturava “O Melro” com o cão “Fiel”, é verdade, o cão que “não usava coleira nem pagava imposto”… E metia essa graça, sim. E na altura era muito aplaudido. Depois, como sabe, o Chaby morreu e o Vasco Santana (conheci-o, ainda era eu um miúdo, não é?) começou, por imitar o Chaby Pinheiro com essa mesma recitação. O Vasco apresentava-se de casaco, ele era gordo, mas era mais pequeno, era pequenino em relação ao Chaby que era muito grande. E no Sá da Bandeira, lá dizia: “O melro era negro, vibrante e luzidio, / Logo de manhã cedo / Repenicava finas ironias / Mas o velho padre cura/ Não gostava daquelas cortesias.” E o cão vadio “não usava coleira nem pagava imposto” e continuava por ali fora. E assim, se fez notar o Vasco repetindo e imitando o…
HMP.: … Chaby Pinheiro com os versos de Guerra Junqueiro.
MO.: Ele tinha uma outra coisa, mas já na ópera. E dessas óperas todas que eu vi, uma ficou-me na memória, não sei porquê, porque na minha memória já falha muita coisa, até nomes de familiares, às vezes passa o nome.
HMP.: Isso até a mim, senhor Manoel de Oliveira, e não tenho ainda metade da sua gloriosa idade…
MO.: Mas há outras coisas que ficam. E ficou-me, imagine, A Carmen: “Eu sou toureiro bandarilheiro, toureador, farpeador.” Eu até cantei isto num filme…
HMP.: Em “O Porto da Minha Infância”.
MO.: Pois, exatamente, e depois lá cantavam os cantores como deve ser. Eu nunca fui cantor, nunca tive esse jeito. Ao contrário de mim, a Maria Isabel, a minha mulher, tinha essa vocação de cantar e imitava uma série de atrizes e cantoras do cinema. Ficava-lhe no ouvido e exercitava-se inventando uma música qualquer e uma letra qualquer, e cantava à maneira dela.
HMP.: E desses exercícios constava muito provavelmente uma canção com letra de Guerra Junqueiro, o “Regresso ao Lar” de “Os Simples”…
A “Velha Ama”, não é?
MO.: Sim, é uma das evocações do poema. Mas é exatamente essa a canção.
E ela gostava muito dessa canção… da “Velha Ama”. E eu também. Por isso, pedi-lhe para ela cantar essa canção em off n’ “O Porto da Minha Infância”. É uma canção extremamente comovente, ela sentia-a profundamente, porque se lembrava da tia, porque se lembrava da mãe e porque tinha essa vocação natural para cantar. E depois cantou já uma vez, mas já com mais idade, e já mais perdida da letra, no “Cristóvão Colombo”.
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?… há trinta?... Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Isto é muito bonito!
HMP.: Que ideia guarda de Guerra Junqueiro?
MO.: Eu gosto muito da poesia dele, mas não sou, infelizmente, um conhecedor profundo. O tempo não chega para tudo, mas gosto muito de poesia, como gosto muito de música! Eu não percebo nada de música, mas gosto muito de ouvir música. E gosto de ouvir a Maria Isabel cantar.
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