Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
A primeira vez que me socorri de tal receita, foi logo um ou dois meses após o casamento. Como notava que mantinha e empolava os tiques de menina mimada, que não aceitava um “ não” e que ficava de beiças à mínima contrariedade, chegando mesmo a ter tiques de opulência! e, querendo eu, atalhar enquanto era tempo, numa pequena discordância, fui curto e duro, quis fazer-lhe ver logo no início com que bois lavrava.
- Ó rapajinha! Tãe-te na raiz! Aqui num é a casa dos teus Pais. Num m´arrebites o catchimo, porque em casa do Gonçalo, só canta um galo!
- Galo?! Hum...Galaró – disse num gesto de indiferença e desprezo, encolhendo os ombros.
Aquilo era só para me humilhar, a cadela!
- Dubidas? A ti faltou-te lubares dois bofardos bem dados nas bentas, na altura certa, mas inda ´stás em boa ocasião di os lubares.
Ficou amuada durante três ou quatro dias, sem eu dar o braço a torcer. Era preciso impor a autoridade masculina. Então?! Matcho é matcho... Era só “ bôs dias, inté logo e boas noutes “. Num sábado de manhã, enquanto tomávamos o pequeno almoço em casa, sugeriu:
- Podíamos ir almoçar fora. Que achas?
- Boa ideia – disse naturalmente, camuflando, com dificuldade a alegria interior que me invadiu. Só me apetecia deitar foguetes, mas tive que me conter para manter a autoridade. ( Quanta falsidade, hipocrisia e cinismo escondemos nas nossas vidas, quando deveríamos era mostrar júbilo, alegria e paixão ). Maldito orgulho transmontano que nos persegue pela vida fora.
Apanhámos o eléctrico e fomos até ao Castelo do Queijo. Almoçámos numa marisqueira e passámos a tarde a passear à beira mar e sentados nas rochas, sempre de mãos dadas, como dois apaixonados que verdadeiramente éramos. Quando chegámos a casa arrabeirámos as pazes, e que pazes! Seladas com o lacre inviolável da paixão. (Vejam qual o significado de arrabeirar em transmontano e não se ponham com ideias...!).
Faço aqui um esclarecimento de satisfação: as coisas para mim até que me correram melhor do que ao Antunes Coradinho. Quando o Antunes manifestou o desejo de namorar e casar com a Laurinda Castanheiro, foi avisado pelos amigos e familiares:
- Antunes...Olha qu´ela é arisca! Num sabes no abespereiro em que te bais meter!
- Deixendia-a comigo – dizia com fanfarrice.
- Olha que nem os Pais fizeram bô dela!!
- Mas faço eu, caralhitchos. Carbalho ma recontrafoda se num a hei-de amansar. (Peço desculpa aos mais sensíveis pela linguagem mas, por uma questão de credibilidade, tento ser o mais fiel possível ao que ouvi contar). Haben-des de ber! Num há-de tardar quinze dias que no ´steja assossegada e amotchada c´muma borreguinha mansa – dizia cheio de prosápia.
- Isso é o que tu dizes...! duvidavam os amigos, conhecendo a peça.
- O quê?! Arrebento -los toutiços num derrepente que nem tãe tempo de tchamar a Mãe.
- Arrebentas, arrebentas – duvidavam os que conheciam bem que aquela era um osso de roer e que não seria uma simples vergastada que a deitaria ao chão. Por outro lado, também conheciam o mau génio do Antunes, que era mais retrocido do que a baraça de um pião.
- Inté as éguas, as mulas e a potras s´amansam... q´anto mais uma mulher!!! Mulhers, mulas e moletas, ´screbem-se todas co as mesmas letras, c´mo já dezia o Questódio!- argumentava.
Laurinda era uma rapariga toda cheia de “ eu cá sou eu”, filha única e habituada, desde sempre, a fazer o que bem lhe apetecia.
Na primeira noite de casados, quanndo se deitaram, disse o Antunes para o candeeiro a petróleo:
- Apaga-te. Num b´oubistes? Apaga-te, já to dixo.
Como o candeeiro continuava mudo e quedo, repetiu agora numa voz mais autoritária:
- Apaga-te, candieiro. Ai num t´apagas?! Bais ber só o qu ´acontece a quem num móbedecer...Por a última bez. Apaga-te!
Antunes, perante a insubmissão inaceitável do candeeiro, perdeu a paciência e deu-lhe um grande bofetão. O candeeiro caiu, o petróleo derramou-se e começou um pequeno incêndio. Caíram umas labaredas para a loja, onde havia palha, feno e dois machos e rapidamente se transformou num grande incêndio. Aflitos, vieram os dois para a rua a gritar:
- Fogo, fogo. Água, água.
Logo os vizinhos acudiram com cântaros e baldes de água e tentaram apagar as chamas. O Ti Zé Maneta “ Faço mais eu só c´um braço do que muntos penalbilhas com dois “- segundo palavras dele ) teve o sangue frio e a coragem de salvar os machos e pô-los a salvo! O Ti Luís da Eira tocou os sinos a rebate e depressa a aldeia toda ajudou com o que podia e conseguiram debelar o incêndio. A casa ficou inabitável e foram viver para uma casa vazia dos Pais da Laurinda.
O Antunes ficou de tal modo envergonhado, que pediu à mulher para nunca contar o sucedido. Laurinda – como mulher, aproveitou para lhe lançar um repto : “ Nunca direi uma pabra sobr´isto se tu me prometers que nunca me dás maus tratos e me deixas ser Senhora do meu nariz”. Antunes coçou a cabeça, engoliu em seco e disse : “ Atão ´sta bem. Fazemos atão assim”. E para incompreensão da aldeia, viveram uma vida em harmonia e amizade, para espanto e admiração de todos!!
Após cinco anos de casados, eis que regressámos às origens! Que bom para todos! Nada mais reconfortante do que voltar a sugar o peito da Mãe, mesmo que ressequido. Qualquer gotinha, mesmo que imaginária, dá-nos uma invencível e concreta felicidade, que se transforma em força e coragem para vencermos todos os medos. Alugámos uma casa no fim da Rua dos Sapateiros, com uma vista magnífica sobre os montes, de onde se via o Sabor e a Quinta da Portela. Julieta passou a ser a Directora Técnica da Farmácia Leite, onde trabalhava o carismático Senhor Viriato e eu empreguei-me na Câmara, com técnico de qualquer coisa, cujo Presidente era o estimado Dr. Sobrinho, meu Professor de Português na Escola Industrial. (Quem tem padrinhos não morre Mouro).
Comprámos um 2 cavalos e íamos quase diariamente ao Larinho, para os avós abraçarem os netos e aproveitávamos para trazer uns garrafões cheios de água pura do chafariz, da Serra do Reboredo, ou da Quinta das Lamelas, como preferirem.
Ainda hoje me sensibilizo quando entro em casa, ao fim de um dia de trabalho e sou recebido pela minha princesa com um sorriso meigo e um olhar luminoso cheio de felicidade. Além do abraço carinhoso com que me recebe, é claro!
Agora , se me permitem, quero fazer uma prece : como sei que a minha mulher não é nada atreita às redes sociais, espero desesperadamente que não leia este texto, ou que , de qualquer modo, lhe não chegue ao conhecimento. Aí, com toda a certeza, teria as malas à porta, ou então, mandava-me ir dormir para a loja, como fazia a Tia Elvira ao Rosinha. Como ela tem sido a minha enfermeira há cerca de 40 anos a tratar-me dos males do corpo e da alma, desejo ardentemente que continue a sê-lo até ao fim dos dias. Bom...mesmo que o leia, com esta declaração inequívoca e de profundo amor, julgo que estarei perdoado.
Aprendam com quem sabe!
Fontes de Carvalho
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Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
Como disse, ou dizem que disse, o Leonardo da Vinci "a experiência faz a ciência". O Luis Abel Carvalho é mestre a "juntar" as palavras para lhes dar o sentido telúrico que nos leva, a todos, à terra, à infância e adolescência, aos cheiros aos rostos, aos recantos... saudades. O Luís também vai, com toda a certeza, arranjar maneira de que a sua esposa leia os 4 capítulos com que nos presenteou. Sabe pouco... sabe! Forte abraço e obrigado.
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