quinta-feira, 29 de junho de 2023

O Povo de Barinak - Na Madrugada dos Tempos – Parte 11

Ninguém reprovará o seu irmão por ele ser o que é; 
mas com paciência e persistência, com inteligência e com amor, 
procurará levá-lo ao nível mais alto.

Agostinho Silva
    Filósofo, poeta, ensaísta, professor e filólogo português
   
 (1906-1994)
Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Apesar de vitoriosos, o entusiasmo com que foram recebidos esmoreceu rapidamente assim que viúvas e órfãos aperceberam-se de que os corpos dos seus entes queridos nunca regressariam, reduzidos a cinzas algures nas montanhas inóspitas. Se a maioria os felicitava pela vitória total e maravilhava-se com os colares e artefactos vários saqueados no ataque, as famílias dos falecidos resmungavam revoltadas pelo ultraje.

Erem tentou acalmá-los o melhor que soube e explicou virem todos esgotados e feridos, sem forças para arrastar os mortos. Foi Zia quem acabou por vir no seu auxílio, prometendo que fariam uma cerimónia especial pelos caídos e enterrariam no santuário os seus objetos pessoais em sua honra. Seria um agradecimento a Tharun por tão retumbante vitória, a Swol por permitir que sobrevivam aos inimigos e aos que fizeram o sacrifício último pelos seus vizinhos.
A promessa agradou à maioria e pareceu transmitir algum contentamento a parte dos ofendidos, mas havia uma coisa de que ninguém falava, como se não tivessem reparado, mas que era uma grande questão que começava a incomodar; onde estava o resto dos alimentos roubados?
Fora grande a quantidade de víveres furtada dos armazéns, era de esperar poderem recuperar uma boa parte deles na gruta dos infames homens-macaco, mas a verdade era que não encontraram peças de carne seca nem cereais dignos de nota. Não era possível que tivessem comido tudo no espaço de tempo entre o roubo e o ataque, apesar de serem muitos. Lemi sugeriu que teriam provavelmente escondido noutro local, mas Alim aventou que seriam poucos para transportar a totalidade do haviam roubado e que a maioria poderia estar enterrada algures a meio caminho para ser resgatada mais tarde… se assim era, o segredo estava morto como os seus donos. Fosse qual fosse a razão, o clã estava despojado dos seus recursos para o inverno e a sua sobrevivência estava ameaçada.
A neve já não caía com a intensidade de há uns meses, tinha períodos mais ou menos longos, mas já não durava sequer um dia inteiro. A chuva que normalmente a seguia lavava a pouca que se agarrava nos locais expostos à luz do sol tímido que se filtrava pelas nuvens, restando apenas aquela em sítios sombrios ou mais húmidos, já transformada em gelo. Era este alívio das condições atmosféricas que permitia que os grupos de caça estendessem a sua ação, mesmo assim com pouco sucesso. O comércio com as outras povoações já não era tão frutífero; também elas racionavam os alimentos. Só o degelo dos rios permitia alguma pesca. Mais alguns migrantes engrossaram o número de tendas fora dos limites da aldeia, mas estes, ao contrário dos anteriores, eram miseráveis empurrados pela necessidade. Foram obrigados a ter grupos de dois homens a guardar a armazenagem dos víveres noite e dia, devido a pequenos roubos que aconteciam. O espectro da fome pairava sobre a aldeia e a primavera ainda estava longe. Medidas como a que Erem instituíra anos atrás, de entregar uma parte das caçadas para as viúvas e órfãos que não tinham meios de obter o seu alimento, começavam a ser contestadas. Para agravar tudo, nas noites menos nubladas, conseguia ver-se uma estrela gigante que parecia arrastar as outras atrás de si.
Depois de algumas queixas, Erem mandou chamar Alim e recebeu-o na recém-terminada Casa da Reunião, usando a pele cerimonial com a cabeça de leão, sentado num banco feito com troncos cortados grosseiramente, mas cobertos com alvas peles. À sua esquerda, em pé, estavam Zia e Lemi e à direita, com a lança e o machado de caça, Naci e Fikri.
Alim, que se fazia acompanhar do seu filho Beki, surpreendeu-se com a presença de Tailan e outro homem que mal conhecia e que aguardavam em pé à entrada. Sentiu a frieza e a majestade da receção, muito diferente da informalidade habitual entre eles. Não havia nada para se sentarem e a fogueira que costumava aquecer o espaço era apenas uma braseira que deformava o ar em ondas de calor. Como que combinados, os quatro homens avançaram para lá da fogueira, ficando a uns poucos metros de distância do chefe e da sua comitiva.
— Chamaste-me, Erem? — Interrogou o homem mais velho, que não era pessoa de andar à volta dos problemas nem de evitar conflitos. Entretanto, deitou um olhar interrogativo aos outros dois que, com ele, pareciam estar a ser julgados.
— Sim, meu amigo. — Começou o chefe sem se levantar. — Tenho assuntos desagradáveis para falar contigo e com Tailan, como representantes dos estrangeiros que aqui vivem.
— Espanta-me que me chames amigo e logo a seguir digas que sou um estrangeiro. — O rosto de Alim pareceu ficar cinzento, enquanto o de Erem corou. — Eu e a minha família fomos os primeiros a juntar-nos a esta aldeia e damos um grande contributo para o bem de todos.
— Também eu e todos os outros, estrangeiros como nos chamas, contribuímos com o nosso esforço em tudo o que se construiu e a partilha da caça e da pesca! — Tailan também estava corado, mas de indignação. — Não entendo esta… receção, nesta casa onde tantos “dos meus” trabalharam ao lado “dos teus”. De que nos acusas?
As vozes na casa atraíam a atenção e já vários curiosos se amontoavam timidamente junto da parede da entrada.
— Estrangeiros, sim! — Atirou Naci inesperadamente. — Antes de vocês chegarem, todos se respeitavam e cuidavam uns dos outros. Tudo podia estar à vista de todos, que ninguém mexia no que não lhes pertencia. — Ele apontava a lança acusadoramente. — Agora há queixas de desaparecimento de vasilhas, comida ou mesmo peles!
— Espera Naci. — Interveio Erem.
— Todas as noites alguém é visto a rondar os armazéns e, da última vez que perseguimos um desses intrusos, fomos parados à chegada às vossas tendas por homens com lanças. — Continuou Naci ignorando a interrupção do pai.
— Cala-te! — Ordenou o chefe fazendo valer o seu estatuto. — Por causa disto que está aqui a acontecer é que não chamei mais ninguém, além daqueles que reconheço como representantes. Para nos entendermos e não para gritar. — Fez-se um silêncio sepulcral por uns segundos antes dele tornar a falar: — Tailan, ouviste as palavras do meu filho. Não gostei de saber que os homens que deixamos a guardar a aldeia não puderam perseguir um ladrão porque vocês não deixaram. Apareceram com lanças a fazer frente aos guardas, como se de inimigos se tratassem.
— Erem. — Começou o representante dos estrangeiros, erguendo orgulhosamente a cabeça. — Reconheço-te como amigo e como chefe deste povoado que se desenvolve a olhos vistos. As tuas decisões são, na sua grande maioria, sábias e tomadas para o bem de todos, mas não podes esperar que um povo separado se comporte como um só. — Como não o interromperam, ele compôs a pele de lobo grisalha que lhe cobria os ombros e continuou: — Aceitas o nosso trabalho no santuário e as nossas vidas em combate, mas não permites que vivamos entre os teus, nem que construamos casas de pedra… nem os nossos mortos podem repousar ao lado deles. Quando definiste as guardas, fizeste-o na aldeia e deixaste de fora o acampamento onde estão aqueles que partilham contigo o fel, mas não o mel. Quando os homens-macaco atacaram da última vez, morreu um dos vossos, mas também dois dos nossos! Também temos de nos proteger e defender, que achas que pensaram os nossos guardas quando viram três ou quatro homens a correr para as tendas deles, armados de lanças e machados, a meio da noite?
Lemi sussurrou próximo do ouvido do chefe, mas de forma que a restante “corte” escutasse. Naci, atirou um braço ao ar num gesto de desprezo.
— Erem. — Interveio Alim. — O que vejo aqui é um mal-entendido causado pela desconfiança que deixas que habite entre os teus. Além disso, este problema podia ser resolvido com uma conversa entre vocês e não com esta exibição de poder e humilhação com que nos ofendes. Aqui estamos nós, apenas o povo de Barinak[1], mas dividido em dois; os aldeões e os estrangeiros.
— Não somos um só povo! — Gritou Naci incapaz de se conter. — Nós, somos filhos do Clã do Rio Brilhante, das grandes planícies do lago salgado! Vocês são montanheses sem-terra, deserdados dos deuses e que procuram agradar-lhes ajudando na homenagem que lhes fazemos. — Erem estendeu a mão para o silenciar, mas ele continuou: — Como se não bastasse, trazer a má-sorte até nós, agora também roubam a nossa comida.
— Acalma-te, filho do chefe! — Tailan evitou propositadamente o nome do jovem. — Não acrescentes acusações falsas à ofensa que já é esta cerimónia.
— Mas que tens a dizer sobre a verdade de que há roubos de comida? — Foi a vez de Lemi, que todos respeitavam como mais velho, intervir. — Já explicaste a razão para impedir o avanço dos guardas, que tens a dizer sobre os roubos, já que impediste a captura dos ladrões?
O tio de Erem ultimamente caminhava cada vez mais curvado e apoiado num cajado de que nunca se separava, mas ali, deu um passo em frente sem apoio e cheio de majestade, apoiou a mão sobre o braço do sobrinho. A figura esquelética impunha autoridade com a grande calva, o cabelo que lhe restava e as barbas intrincados de brancas, repousando sobre uma túnica negra de pele de urso que lhe descia quase até aos pés calçados com as sandálias de madeira.
— Não têm muito valor estas acusações, para além da ofensa de nos serem dirigidas… — Tailan olhou para o chão com uma expressão de tristeza. — … os roubos são feitos por gente de fora, que se esgueiram na floresta antes que os possamos apanhar. Na noite passada tentamos segui-los, mas perdemos-lhes o rasto. Talvez sejam das cascatas lá para Ner[2], mas não temos a certeza. Vimos que usam facas de cobre, um dos nossos aproximou-se demais tendo sido ferido. Não está nada bem…
— Chamaram Nehir? — Perguntou Erem.
— Vocês não nos querem por perto, por que iriam deixar ir a vossa curandeira? — Rosnou o acompanhante de Tailan que se mantivera calado até aí.
— Nunca vos foi recusada ajuda! — Atirou Zia rompendo também o silêncio. — Vou dizer-lhe que procure o ferido para o tratar.
— Como veem, — começou Alim —, o grande problema aqui é de não falarmos. Esses ladrões, já podiam ter sido apanhados, se falássemos entre nós, em vez de lutar.
— Que te faz pensar que sejam das cascatas? — Interrogou Erem.
— Consta que têm lá um artífice a trabalhar o cobre e a fazer armas. — Esclareceu o companheiro de Tailan.
— O que tem sido roubado não chega para uma aldeia inteira… — estranhou o chefe —… nada parecido com o que levaram os homens-macaco.
— Se calhar porque não conseguiram ainda entrar na casa onde guardamos tudo depois do roubo deles. — Naci esclareceu. — Agora temos guardas e já não há alimentos espalhados por várias casas.
— Podíamos ir lá exigir-lhes que parem com os roubos. — Aventou Lemi. — O chefe da aldeia pode nem saber do que se passa.
— Rir-se-ão de nós. — Sentenciou Naci com uma careta. — Vão achar que somos uns fracos!
— Então? — Tailan estava mais colaborante. — Vamos com um grupo de homens para lhes mostrar que estamos prontos para a guerra?
— Isso seria ameaçá-los. Ficarão ofendidos e zangados. — Disse Erem pensativamente. — Vamos lá acusá-los e nem temos a certeza de que sejam eles.
— Porque não fazemos uma armadilha? — Sugeriu Alim. — Se apanharmos os ladrões e os fizermos dizer de onde são… — Sim! — O rosto de Erem iluminou-se, enquanto se erguia e aproximava dos outros. — Essa é a melhor solução! Vamos reduzir os guardas, ter apenas dois na casa dos alimentos que se afastam por vezes. Mas mais dois lá dentro, que nunca saem. Se alguém os vir antes não pode dar o alarme, apenas corre a avisar os outros em silêncio. Temos de os apanhar vivos.
— Isto, sim, é agir como somos: como irmãos, povo, o povo de Barinak! — Tailan estava obviamente satisfeito e deu um abraço a Erem.
— Esta nossa conversa fez-me ver coisas que não estavam bem. — Concluiu o chefe com um sorriso. — E quando um homem acha que não está a agir bem, deve corrigir as suas maneiras; este plano para apanhar os ladrões deve ficar apenas entre nós, mas a partir de hoje, todos saberão que não há proibições para construir casas de pedra.
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[1] Do turco, santuário ou abrigo.
[2] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal Norte) por oposição ao sol do meio-dia
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Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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