Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Podia ser, amenamente, num banco solitário de um qualquer jardim, ao final da tarde, ou na pastelaria que o recebia para um café e uma conversa melancólica com os seus botões, quando se deslocava, para o trabalho, todas as manhãs, quase aos tropeções por entre a multidão. Podia até ser num breve momento em que o relógio lhe pedia uma pausa no cansaço e ardor do dia, enquanto os braços e as pernas faziam as pazes com o corpo e lhe ditavam que já só lhe faltavam umas poucas horas para a lide terminar.
Vidas tecidas por estórias que os olhos lhe contavam sobre o tempo e os espaços dos que passam dentro e à margem da vida. As estórias dos outros que eram muitas vidas na sua própria vida.
Escutava, atento, os movimentos na pele transparente dos que com ele se cruzavam. E dentro de si, como quem soletra letras invisíveis a que dava forma, lentamente, penteava fio a fio, desenlaçava, compunha, enfeitava mundos e pintava o mundo interior de si mesmo.
Tantas vezes, eram as estórias alheias que vinham ao seu encontro, confidenciavam com ele e nelas se entendia. Davam-lhe a certeza da sua própria existência.
As estórias que podiam ser o seu amigo imaginário nas noites em que, mais assustado, se sentia criança outra vez, mas sem colo para onde correr a agasalhar os medos e desamparos.
Falavam-lhe, ao ouvido, de segredos mal contados, à espreita da revelação perfeita, da metamorfose necessária para se tornarem vivas. E ele pegava no seu caderninho, a quem tratava como velho companheiro, para as fazer voar numa viagem com muitos destinos: a alma que habitava o seu peito; o coração dos seus leitores.
Vidas velozes e vidas de atropelos. Vidas que correm céleres mesmo quando os dias são todos iguais e vidas que se descartam com indiferença, mesmo quando o amor lhes bate à porta todos os dias. Vidas com um horizonte e muitos sentidos e vidas sem sentido, à procura de um horizonte. Vidas de encontros marcados ou adiados, vidas que se completam em olhares cruzados, cheios de vida ou sem vida nenhuma. Vidas de esperanças ou de tristezas acumuladas, como punhados de destroços desencontrados. Vidas de pertença ou vidas sem porto de abrigo, numa terra de ninguém. Vidas que se perdem, vidas que se repetem e vidas que se reescrevem. Vidas que acrescentam e alimentam e vidas com pontos finais. Vidas construídas de pequenos nadas e vidas consumidas em grandes tudo. Vidas de amores imensos, vidas de muitos amores e vidas de longos desamores. Vidas que crescem vestidas de luz e vidas mortas, enfeitadas de sombras.
Poderia parecer estranho aos demais se lhe adivinhassem o olhar quando os olhava, assim, do fundo do seu pensamento. Talvez se sentissem invadidos numa intimidade que gostariam de preservar. Mas as vidas que nos cabem, não são terreno fértil à privacidade, para quem nos escuta com aquela sabedoria sagaz da qual ele era capaz, sem afronta nem confronto. Uma sabedoria de quem compreende que os silêncios podem dizer mais do que todas as palavras.
Uma sabedoria de quem consegue nunca ser apanhado de surpresa quando lê, discreto e prudente, esse sítio em que, aos bocadinhos, nos desarrumamos sem escolha possível: o lugar dos afetos, o lado principal onde (todos) nos desejamos perceber humanos.
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021: Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) e Nunca é Tarde (poesia).
Prefaciadora do romance Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021) e da obra poética Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021).
Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança, da Revista HeliMagazine e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.
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