sexta-feira, 15 de setembro de 2023

As sete diferenças do planalto de Carrazeda

 Há dias conversei sobre saudades com o António Manuel Barbosa, numa esplanada nas bombas de gasolina de Carrazeda de Ansiães, e, se não fosse estarmos a uma hora demasiado matutina, não nos teríamos despedido sem fazermos saúdes com o seu ímpar Trovisco, das Areias, o vinho que há décadas é a bandeira dos Vinhos de Trás-os-Montes neste planalto singular do Alto Douro. Singular em muitas coisas, até na saborosa recordação das batateiras arran banner e kennebec que, no chão areento e pulverulento de Zedes, com micas brilhantes ao sol, esverdeavam hortas regadas em sulcos pelo pé, de onde sairiam batatas para encher sacos e sacos, vendidos para fora… e que, cozidas, descascadas com o garfo já no prato, fio de azeite por cima, regalavam qualquer vontade de comer. 
Carrazeda é uma palavra agreste de se pronunciar, mas a terra dá amidos suaves e saborosos e vinhos perfumados e contrastantes, uvas de encostas para o Douro, para o Tua, para a Vilariça. Algumas das adegas estão lá em cima, discretamente aninhadas na paisagem de mosaicos de macieiras, granitos, pinhais e videiras antigas. 
Numa delas passeei, nessa manhã, como quem passeia nas últimas décadas eruptivas de história dos vinhos do Douro e do Porto, as décadas pré e pós-adesão à CEE, da antiga destilaria da Cockburn´s com os cobres ainda no sítio (o que faz a sugestão: diria que cheirava ainda!), invejáveis madeiras de tonéis Barão de Vilar, precioso nome Andresen a fazer parte dos pergaminhos. Nos conteúdos dos modernos inoxes e nas barricas de estágio pontifica Ricardo Simão que, com incógnitas que lhe resolve Álvaro Van Zeller, solucionam muito bem essa equação porque o Baltazar´s, que pudemos testar com distinção em nossa casa, acaba de ser premiado interpares. 
Um dos livros mais importantes nas nossas estantes em Latães é uma reedição comemorativa dos 250 anos da Vila de Carrazeda de Ansiães, tradução de Maria João Pacheco de Amorim e capa de Hélder de Carvalho, do I Gathered no Moss, Não Criei Musgo, de John Gibbons (John Gibbons of Hornsey, escritor inglês), escrito na Coleja como uma reportagem autobiográfica. A perspicácia e visão de viajante com que o escritor vive e nos conta a vida numa aldeia de encosta sobre o Douro, a vida em Carrazeda, em Miranda, em Trás-os-Montes e no Portugal de Salazar, são mais do que um retrato de uma aldeia trasmontana, são um pedaço vivo da nossa alma de então. A pequena casa dele era com varanda de madeira e telha vã, servia de poiso a caçadores na época de Outono, nela esteve sozinho nesses meses de Inverno de 1938-39. Na da Senhora Serafim e família, tomava as refeições. Como o pequeno-almoço não era inglês e se resumia a uma fatia de pão duro e café sem leite, depois duma manhã a escrever à máquina, o nosso homem almoçava uma sopa tão cheia de legumes que a colher espetada se mantinha em pé, um bacalhau com vegetais, um arroz com bocados de carne e perdiz ou coelho (estufados ou guisados numa panela de ferro, adivinhamos…), marmelada ou uvas secas de sobremesa, vinho à discrição e café! Ao jantar, repetiam-se alguns dos pratos e acrescentavam-se ovos. Numa ida à afamada Pensão da Isaura, na vila (em que nada escapou ao olho do nosso inglês, até a presença dos polícias à paisana de então!), pôde verificar e provar duma ementa com entremeses variados; filetes e peixe com salada; vitela assada com legumes; bife com batata e ovos mexidos; fruta e vinho grátis! O nosso inglês não era um fã incondicional de bacalhau e, por isso, foi experimentando as carnes de porco e o leitão, as enguias e os peixes do rio. Acompanhou e ajudou o seu anfitrião Serafim numa pescaria à noite, com rede, no Douro, e a preparar os barbos e outros peixes, espetados em paus para vender, carregados numa mula! A sua descrição dum lagar de seiras é notável de realismo, mas desconhecemos se chegou – é obrigatório que tenha chegado! – a provar umas torradas com azeite. E foi saboreando os ovos cozinhados de várias maneiras, ou em macarrão (que não é só típico de Itália!), ou em peixe do Douro, ou numas bolinhas de massa, aliás bastante agradáveis ao paladar.       
Outros forasteiros, neste planalto recôndito de Portugal, foram fazendo a fama do cabrito assado, da marrã da Lavandeira, do polvo e dos peixes do rio na Estação do Tua, omnipresentes nas viagens e nos transbordos dos comboios. Hoje os cabritos tornaram-se raros, porque praticamente desapareceram as numerosas cabradas que dantes pastavam entre os carrascos e fragas do planalto, e a Páscoa ainda vem longe para o festival revivalista deste assado. Permanecem o polvo e os peixes do rio em fritadas épicas e escabeches inesquecíveis – haja vontade! Dizem-me para tentar um pouco de tudo, ainda assim. E nesse tudo tentar uma marrã, mas de que apenas resta a fama, desaparecida que está dos cardápios.
Todas as terras evoluem no tempo, mudam costumes, adaptam-se aos gostos e ao progresso que sopra, inexoravelmente, provocando esplendores e declínios. Nem todas têm a possibilidade de poder fazer consigo um jogo real de sete diferenças, daqueles de assinalar com cruzinhas numa página de jornal. Carrazeda tem.  Às setecentas diferenças, com um livro magnífico que foi Prémio Camões em 1939! Com copos de vinho na mão. Ou mais de setecentas. E nós podíamos ter começado nessa manhã a anotá-las, raparigas e rapazes a entrar e sair no pequeno bar das bombas, estacionadas as motos em vez dos cavalos e mulas, pousados os capacetes em vez das cestas, mini-saias, tatuagens, será que gostariam dum Trovisco ou dum Baltazar’s?

Manuel Cardoso
Consultor e escritor

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